Esta é uma frase curta; portanto assimilável, “memeficável”, e necessariamente falsa. Toda frase curta que serve como slogan é falsa em si mesma e só se tornaria verdadeira se analisada em determinado contexto. É esse contexto que pode validá-la ou não. Frases isoladas costumam ser usadas para fins de propaganda, e a propaganda, via de regra, é uma ferramenta para difusão do que é falso, uma vez que a verdade se impõe naturalmente.
Imagino que você conheça estas frases. Elas são a “ideologia” do “INGSOC”, o partido único que governa totalitariamente a Oceânia de “1984”, no romance de George Orwell.
Estas frases precisam estar em toda parte na distopia orwelliana porque ninguém que esteja em seu estado mental normal aceitaria tal coisa. Somente uma extensa lavagem cerebral poderá convencer indivíduos adultos e mentalmente sadios de ideias tão tolas.
Estas frases não ficam tão isolados da realidade. Atualmente há, nos Estados Unidos, por exemplo, há todo um aparato ideológico a justificar as guerras que o país promove sem cessar, dizendo que são para assegurar a sua paz. Os mesmos Estados Unidos propagam a tese de que estruturas políticas diferentes da americana, que incluem sistemas públicos de saúde e direitos trabalhistas, são formas de “socialismo” (termo empregado no sentido depreciativo) e, portanto, de “servidão”. A intervenção do estado na economia é literalmente chamada de “Caminho para a Servidão” na obra mais famosa de Frederick Hayek, economista fundador do pensamento que hoje é chamado de “neoliberal”. Por fim, difunde-se pelo país, e este difunde pelo mundo, uma forma de cultura de entretenimento, imediatista e rasa, que nega espaço à reflexão e à maturidade.
Aquilo que Orwell concebeu como uma forma extrema e inimaginável de propaganda foi adotado como sua ideologia oficial pela maior potência mundial — eles só não a propalam explicitamente.
A frase “Imposto é Roubo” é estruturalmente semelhante às frases que expressam a ideologia de “1984”. Portanto, pertence e serve ao mesmo propósito se usada vadiamente. Isto fica até mais fácil de ver em inglês, porque no original se emprega um efeito sonoro aliterativo, para auxiliar na fácil memorização: “TAX IS THEFT!” Repita isso apenas algumas vezes e notará como se torna cada vez mais fácil lembrar.
Isto é lavagem cerebral.
A ideia de que o imposto é roubo nega o contratualismo, uma das bases da democracia e um dos valores do iluminismo. Por isso, se você a aceitar, necessariamente rejeitará as bases teóricas do consenso filosófico da civilização. Se ainda não acha que isto é grave, vou lhe demonstrar de maneira que não reste dúvida.
“Contratualismo” foi uma saída encontrada pelos filósofos que se ocupavam da política na tentativa de legitimar o poder estatal e a organização social sem recorrerem às explicações tradicionais, que vinculavam a legitimidade do soberano à religião (princípios da “vontade divina” e da “cidade de Deus”), à tradição (conceito de “império”) ou à força pura e simples (direito de conquista).
Todos os estados primitivos, antigos e medievais recorriam a uma destas vias de legitimação. Desde o Egito, que derivava dos seus deuses o poder do faraó, até os estados medievais, que recorriam aos remanescentes simbólicos de Roma ou ao direito de conquista. Estas formas de entender a política nunca fugiram das categorias propostas por Aristóteles na “Política”. O filósofo classificou as cidades em três tipos: monárquicas, aristocráticas e baseadas em consenso. Cada tipo se relaciona a uma forma degenerada: dado que a tirania é uma monarquia imposta pela força, a oligarquia é uma aristocracia do dinheiro e a democracia (ou demagogia) é uma sociedade baseada na vontade das multidões. Para Aristóteles, as formas naturais de governo se caracterizam por serem “aceitas” e as formas degeneradas, por serem impostas. Ele empregava o termo “governo constitucional” querendo dizer “governo consensual”, já que a “constituição” a que se referia não era um documento, mas um conjunto de normas e costumes aceitos tacitamente na cidade.
Claro que Aristóteles idealizou bastante seu entendimento, mas o seu sistema é bastante útil para classificar as formas clássicas de governo. Porém, quando se dissolveram as ideologias medievais e rompeu-se a uniformidade religiosa da Europa com a Reforma, os estados se viram órfãos de legitimidade. Com que base poderia um soberano se afirmar, sem uma tradição milenar que lhe amparasse. Até Carlos Magno, que havia obtido seu poder pela força, através do direito de conquista, aceitou ungir-se de símbolos antigos do Império Romano a fim de obter mais legitimidade. Destruindo todo o aparato ideológico e religioso anterior, a Renascença obrigava a um novo sistema.
Os contratualistas gradualmente recuperaram a noção aristotélica de “governo consensual” e dela extraíram que o consenso derivava da troca de favores entre estado e povo. A primeira descrição do novo conceito foi feita por Thomas Hobbes, em seu “Leviatã”. Ele concebeu a ideia de que o povo ao mesmo tempo tolera e deseja um poder central porque através dele se protege de perigos externos maiores que os inconvenientes da restrição de liberdade. Essa é uma ideia tirada da Bíblia, aliás: foi com esse argumento que os israelitas pediram a Jeová que lhes ungisse um rei.
Para Hobbes, o rei detém legitimamente o poder enquanto é capaz de exercer suas funções, das quais a mais importante é manter o povo em segurança. Se o rei é fraco, perde a legitimidade porque não é capaz de proteger o país, então quem o depuser poderá até reivindicar legitimidade em seu lugar.
Dois séculos e meio depois de Hobbes, os iluministas Montesquieu e Rousseau, este último criador do termo, propuseram que haveria um “contrato social” implícito na relação entre o governante e o seu povo. Por esse contrato, o governante receberia privilégios, como o monopólio do uso da força e o direito de cobrar impostos, em troca de oferecer serviços ou “direitos”, não mais limitados à “segurança”. Os iluministas determinaram que a “segurança” só poderia existir na presença de três direitos fundamentais: vida, liberdade e propriedade.
Cada um desses direitos somente seria revogado se o cidadão, que a eles fazia jus naturalmente (isto é, pelo simples fato de ter nascido) faltasse com as suas obrigações inerentes à comunidade. O direito à vida seria revogado em caso de sedição porque atacar o estado seria atacar a comunidade (portanto, nenhum crime seria maior) e assassinato. A liberdade seria tirada em caso de crimes menores, menos danosos aos direitos dos outros. A propriedade só seria expropriada se lhe fosse dada uma destinação criminoso ou, em alguns casos, no interesse público.
Para ter a capacidade de proteger os direitos dos seus cidadãos, o estado precisaria necessariamente de cobrar impostos, para que pudesse custear funcionários e serviços. Até mesmo para revogar esses direitos é preciso haver estrutura, uma vez que a rebelião dos prejudicados só pode ser debelada pelo aparato de repressão.
A defesa dos direitos básicos dos cidadãos já exigia a formação de uma estrutura que não existiria magicamente. Alguém precisava trabalhar nesta estrutura e havia insumos a se comprar.
A Revolução Americana e a Francesa adicionaram mais direitos aos três originais. Os cidadãos de um estado de direito gozariam de prerrogativas como liberdade de expressão, direito à integridade física, dignidade pessoal, inviolabilidade do lar, etc. Direitos que exigiram mais estrutura para codificá-los e protegê-los, bem como para identificar suas violações e punir os ofensores deles.
Ocorre que o estado, à medida que cresce e adquire complexidade, foge à compreensão do homem médio. Surge, então, a ideia baseada no senso comum segundo a qual seria preciso reduzir o tamanho do estado para aumentar sua eficiência. De fato, essa ideologia de estado mínimo tem mais a ver com tornar o estado compreensível por quem não consegue vislumbrar a complexidade das funções nele encarnadas do que com uma melhora da “eficiência”.
Esta é, aliás, uma ideia carregada de sinais contraditórios. Não existe “eficiência” em absoluto, porque tudo que é eficiente de certa forma é ineficiente de outra. Uma faca, por exemplo, pode ser muito eficiente para fatiar carne em um açougue, mas péssima arma de guerra. Uma metralhadora pode ser muito eficiente para a guerra, mas inadequada para abater galinhas num aviário.
O problema com a busca do estado mínimo é que se torna, cada vez mais, impossível definir onde cortar. Na época em que a política ainda tinha certa decência e o povo não aceitava compassivamente o papel de gado indo feliz para o açougue, não se podia falar em tirar certos direitos. Só ditaduras, como o Chile pinochetista, se erguiam abertamente contra os direitos civilizatórios.
“Imposto é roubo” foi uma das peças de propagada criadas pelos defensores do estado mínimo para preparar o povo, a longo prazo, para o momento em que o próprio gado desejaria um matadouro mais rápido e eficiente.
Por meio desta ideologia, o que era celebrado como conquistas da civilização passou a ser visto como peso. Escolas públicas agora deixaram de ser motivo de orgulho nacional para serem estruturas decadentes de opressão. Agora se fala em educar filhos em casa, com professores particulares, como se fazia no tempo do… Império Romano. A aposentadoria dos idosos deixou de ser vista como uma obrigação da sociedade para com aqueles que passaram a vida toda a trabalhar e se tornou “privilégio de vagabundos”, como disse o notório vagabundo FHC, aposentado antes de encanecer.
Esses direitos são atacados para que se possa reduzir impostos, porque, na ideologia inversa do capitalismo selvagem, conceitos abstratos (como o de “estado mínimo”) têm precedência diante das necessidades humanas concretas. Aceita-se assim que os pobres se tornarão miseráveis para que se atinja uma meta concebida dentro de um gabinete por gente que não arcará com nenhuma consequência das “reformas”. Mais que assegurar a dignidade dos velhos, ou um futuro às crianças, importa o orçamento fiscal “enxuto”, próximo de um ideal frio concebido por um simpatizante do fascismo.
Em um mundo ideal, frases como “imposto é roubo” ruborizariam os que as ouvissem. Como nosso mundo não é ideal, temos de ver tais ideias abstratas feitas em metas concretas, em detrimento de objetivos reais e humanistas.
A sociedade que se destrói com isso, a república iluminista, vai ceder lugar a um sistema anárquico, em que certamente não haverá impostos, mas tampouco quaisquer direitos assegurados, imperando a lei do mais forte, de maneira semelhante à da Europa entre os séculos V e X. Não haverá medicina, vacinas, direitos humanos, escolas, segurança pública, nada disso. Mas também não haverá a “indústria da multa”, nem impostos, nem leis que impeçam os pais de deixar os filhos à míngua (ou de vendê-los).
Esta frase representa um ideal tão odioso quanto o nazismo.