Números nos parecem mágicos. Pitágoras ensinava que a realidade em si mesma seria expressa por números. Os povos antigos, em geral, acreditavam que operações numéricas tinham caráter mágico e seriam prerrogativa divina. Em um de seus muitos ensinamentos contra a idolatria, a Bíblia conta, por exemplo, que o rei Davi foi “punido” com a mortandade da população pela peste (o “Anjo do Senhor”) porque tentou fazer um recenseamento. Contar o povo era uma tentativa de compreender e controlar, o que só Deus poderia legitimamente fazer.
Outras sociedades antigas, que tinham relação diferente com os deuses, aceitavam a manipulação dos números como uma maneira de buscar o entendimento da essência divina e das relações entre a terra e o céu: assim contavam as horas do dia, os dias da semana, as semanas em um ano, os meses em um ano, os dias em um mês, a duração das fases da Lua, as estações do ano, as fases de Vênus e várias outras efemérides.
As complicadas relações entre os “planetas” e os fenômenos da natureza pareciam poderosas porque refletiam na vida humana sobre a terra. As mulheres, por exemplo, menstruavam segundo um ciclo que seguia a Lua. Povos pastores observaram que os animais se acasalavam em determinadas épocas do ano, mas não em outras. Em cada lugar havia uma estação de chuvas e uma de seca.
Para os antigos, os números, expressão dos astros — e estes, dos deuses — governavam cada aspecto de nossas vidas. Conhecer e manipular os números era conhecer e prever as pessoas porque o que vivemos é a vontade dos deuses. Um mapa astral supostamente revela a psicologia (e até o futuro) de um indivíduo através de números e gráficos relacionados aos planetas. Assim surgiu a numerologia, raiz primordial do fetiche que ainda temos pelos números.
Conhecer números a respeito das coisas seria, então, conhecer a coisa em si, através de sua essência mais profunda e abstrata. Então, em sua ânsia por conhecimento, o ser humano sempre buscou “recensear” a natureza e a si mesmo, obtendo números com que descrever o mundo e a si próprio. Os números relativos a uma pessoa seriam mais importantes que sua aparência, sua voz, sua história e até mesmo sua personalidade — exatamente porque tudo isto era determinado por números, dos quais os mais relevantes estavam contidos no mapa astral.
O Quociente de Inteligência é um número que supostamente descreve a personalidade e — mais que isso — a importância de um indivíduo ao medir seu valor intelectual. Ser detectado com um alto QI é obter para si uma distinção que lhe permite, literal e objetivamente, colocar-se acima dos demais mortais; considerar-se especial e poder jactar-se disso. Ser detectado com um baixo QI é receber uma sanção moral e social extrema; é ser considerado um burro, um limítrofe, um ser humano de segunda ou terceira classe, imerecedor de qualquer atenção ou direitos.
Houve até regimes políticos que propuseram exterminar fisicamente os “idiotas”, ou seja, os que fossem tidos como incapazes de aprender plenamente e, por conseguinte, incapazes de oferecer à sociedade uma contrapartida justa pelo investimento social feito em cada um. Historicamente, baixo QI também foi associado a determinados povos e não a outros. Negros, por exemplo, ainda são considerados estúpidos e há até mesmo obras “científicas” que provam isso. Você já deve ter ouvido falar da “Teoria da Curva do Sino”, que defende a tese segundo a qual se pode generalizar para negros e brancos médias diferentes de quociente de inteligência. É óbvio que os brancos recebem o número maior. Entre outors motivos, isto é porque os próprios autores do estudo são brancos.
A curiosidade e a fixação pelo número do QI revela apenas esta insegurança sentida por pessoas que temem ser associadas a “inferiores”. Por supostamente ocorrer sem relação com a classe social, o QI é uma forma de meritocracia por predestinação: alguns nascem com o potencial de se tornarem gênios, enquanto outros já são concebidos para “dar n’água” em todos os seus projetos. O racismo é uma forma de elitismo socialmente rejeitado porque generaliza pessoas em grandes grupos e assim é facilmente demonstrável como falso pela existência de indivíduos brilhantes; mas o fetiche do QI é mais insidioso porque se baseia em uma mescla de individualismo (nada mais pessoal que os números que se referem a nós mesmos) e misticismo, mas também exala uma pretensa objetividade científica.
Obter um alto resultado no teste de QI seria comprar passagem de primeira classe para a vida ou, pelo menos, o direito de se dizer “primeira classe” — ainda que, conforme lembrou Nietzsche, não basta o talento sem a permissão para para exercê-lo.