Letras Elétricas
Textões e ficções. Tretas e caretas. Histórias e tramóias.
by J. G. Gouvêa

A Força da Palavra Exata

Publicado em: 14/09/2021

Escritores, de qualquer gênero (e filósofos são uma subcategoria de escritores), se caracterizam por escrever de maneira dedicada, enquanto pessoas comuns escrevem aquilo que precisam escrever e nada mais. Escrever de maneira dedicada, desde cedo e por toda a vida — especialmente se você se submete à crítica de outros que também escrevem de maneira dedicada — costuma contribuir para a clareza do raciocínio e da expressão do mesmo.

O profissionalismo necessariamente produz capacidade superior. Escritores, então costumam possuir uma grande capacidade de dizer coisas que chamam a atenção. Nisso consiste o trabalho do autor. Uma frase escrita por um grande talento costuma ter mais impacto que a mesma coisa dita por uma pessoa aleatória porque os que se dedicam profissionalmente a um métier adquirem conhecimentos e habilidades que só estão disponíveis para quem pratica muito. Estas habilidades profissionais resultam em efeito mais forte e maior engajamento.

Na literatura, esse efeito e esse engajamento se manifestam na forma do burburinho que era causado por uma grande obra. Antes, quando não havia redes sociais, o escândalo era necessário e só os gênios conseguiam provocá-lo.

Os estratagemas usados pelos escritores têm nomes complicados (frequentemente em grego), mas se referem a coisas simples do dia a dia. Em geral, você só tem dificuldade para entender o que são as tais “figuras de linguagem” porque precisa focar em lembrar os seus malditos nomes técnicos (em grego ou latim). Escritores, via de regra, não precisam conhecer esses nomes, eles desenvolveram o “fazer” da coisa a partir do treino e do instinto, tendo ou não esse conhecimento teórico. Muitos grandes autores foram péssimos alunos exatamente na matéria escolar que se propõe a ensinar o uso da língua porque a habilidade literária não se ensina na escola e porque o que se ensina ali costuma ser desinteressante para quem quer ser escritor. Mas disso não se faça regra, claro.

Mário Quintana, poeta brasileiro, chegou a dizer que “não é o leitor que descobre o seu poeta, mas o poeta que descobre o seu leitor.” Ou seja: o autor consegue impacto porque escreveu coisas que as pessoas queriam ler, ele apenas identificou a demanda que pairava no ar. Ninguém escreve para outra coisa que não ser lido. O que costuma ocorrer é que o autor não quer que todos leiam o que ele escreve.

Então, se parece, às vezes, que o texto é denso e impenetrável, lembre-se de que ele pode não ter sido escrito para você. Assim como o preço da entrada de uma festa seleciona quem o organizador quer que a frequente, a preciosidade de um texto exige certa cultura e inteligência do leitor, o que leva à seleção automática do público. Isso é frequente no texto técnico. Há algum tempo tive aqui no Quora uma interessante discussão com um homem que afirmava que os textos de Paulo Freire eram sem sentido. Ele até postou um trecho para “provar” e eis que o trecho era simples de entender, só fora escrito para ser analisado, em vez de lido de maneira fluida. Era um texto de estudo, não para leitura lúdica.

Isso faz com que cada escritor tenha seu público — o que inclui escritores de décadas, séculos, milênios atrás. Você, meu jovem, pode não ser o tipo de pessoa a quem o autor se dirigiu, então, a sua decisão de ler ou não aquele autor não pode se basear num critério raso de preferência e entendimento. Por exemplo, eu não sou um aristocrata russo do século XIX embebido pela culpa cristã de viver em uma sociedade sexualmente reprimida, politicamente autoritária, economicamente desigual e eticamente perversa. Isso quer dizer, então, que Dostoiévski não tem que ser acessível para mim, eu é que tenho que tentar acessá-lo se quero usufruir do que ele tem a oferecer.

A consequência direta do argumento acima é que toda pessoa que critica os clássicos e diz que os escritores contemporâneos são o que há de bom é uma pessoa inculta, porque está pensando no texto e no autor somente por um lado e ponto de vista. Ela vê o texto somente como algo a se ler de maneira fluida e irrefletida, buscando satisfação imediata. A superficialidade é característica marcante da incultura.

Uma pessoa comum e inculta diria que “o mundo está cheio de gente estúpida”. Pode ser verdade, mas não é algo que lhe faça parar a pensar. Um escritor pode dizer a mesma coisa de maneira mais divertida ou expressiva:

Os idiotas tomarão conta do mundo; não pela capacidade, mas pela quantidade. Eles são muitos. — Nélson Rodrigues.

O drama da internet é que ela promovou o idiota da aldeia a portador da verdade. — Umberto Eco.

A democracia é a crença patética na sabedoria coletiva da ignorância individual. — H. L. Mencken.

As três frases, ditas por autores profissionais, conseguem dar um tom mais forte a algo que o senso comum declara de maneira quase inócua: que os tolos são maioria no mundo.

Essas frases parecem simples porque são geniais. São obra de pessoas que se treinaram para dizer o que é importante com economia de palavras, mas ainda assim dizer isso com elegância e impacto. Parece algo que qualquer pessoa diria porque foi escrito para parecer algo que qualquer um diria. “Qualquer um”, se tentasse escrever uma quantidade semelhante de palavras sobre um tema complexo poderia, no máximo, produzir uma resposta do Quora.

Há autores que, no entanto, buscam ser acessíveis a mais pessoas do que aquelas que normalmente os leriam. Esses autores costumam introduzir frases de efeito que resumem de maneira efetiva os seus postulados. Estas frases, desconectadas de seu contexto (frequentemente sem que a pessoa conheça o contexto) podem ser, então, transformadas em posts nas redes sociais, criando um verniz de cultura aparente:

Nietzsche

Nietzsche, que se julgava à frente de seu tempo e que afirmava escrever, ao mesmo tempo, para todos e para ninguém, curiosamente teve o cuidado de salpicar suas obras de inúmeras frases de fácil assimilação — os tais aforismos — que hoje podemos apropriar para citação nas redes sociais.

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