“Sociedade dos Poetas Mortos”, uma obra tão radical que é até difícil imaginar que tenha sido concebida e realizada por americanos (e pelo menos um australiano, o diretor Peter Weir). Os Estados Unidos não são um país muito receptivo a ideias de rebeldia — nunca foram, muito menos na época retratada pelo filme e ainda menos no início dos anos 1990, ápice da ideologia yuppie e momento em que a cultura pop americana estava cheia de triunfalismo por causa da vitória na Guerra Fria.
O enredo do filme consiste, basicamente, de um ensaio sobre a diferença que a arte em geral (e a poesia, em particular) tem sobre a personalidade humana. Temos um professor de literatura recém formado que vem lecionar em uma escola altamente elitista da Nova Inglaterra, onde estudam jovens da mais alta classe, que têm a perspectiva de ingressar em uma universidade de ponta; como Harvard, Princeton, Caltech, Stanford, MIT etc. Rapazes oriundos de famílias bem-sucedidas cujo futuro já parece traçado em detalhes pelas mãos poderosas de seus pais.
Neste futuro parece haver pouco espaço para a literatura enquanto arte que se pratica e se vive. Os jovens são ensinados através de livros áridos e prescritivos, em que as obras são analisadas segundo critérios positivistas rígidos. As obras são encaradas como objeto de estudo, apenas. O que este jovem professor quer ensinar é que a literatura foi criada primordialmente para nos proporcionar experiências emocionais: através da experiência fria e intelectual da leitura ela quer criar (ou recriar) um momento quente e subjetivo relacionado à vida do próprio autor ou a algum momento relevante da história humana. O professor quer ensinar aos seus alunos que a arte existe para ser sentida.
Quem deseja sentir o impacto da literatura, em vez de meramente construir um gráfico da “importância” e da “qualidade” de uma obra, precisa se libertar de critérios tecnicistas, retirar as obras de seu pedestal, apropriar-se delas como elementos que dão significado à sua vida pessoal e, principalmente, interpretar livremente o tema e a intenção do texto. Isso só é possível se o leitor se livra da tirania da crítica, momento que o filme representa pelo rasgar das páginas introdutórias.
Muito já se disse em favor e contra a abordagem pedagógica do professor Keating; especialmente no que diz respeito ao seu patente anti-intelectualismo, ao ordenar a seus alunos que rasguem do livro-texto o ensaio crítico de “J. Evans Pritchard”; mas o maior mérito desta obra não está nesta discussão pueril sobre a necessidade — ou mesmo a possibilidade — de trazer os jovens de hoje para “dentro” de obras literárias escritas há séculos, em contextos que eles não tenham conhecimento suficiente para compreender. O que há de mais importante em “Socieade dos Poetas Mortos” é sua abordagem do suicídio.
O que o professor Keating se propunha a fazer era desenvolver um pouco a autoestima dos alunos, fortalecendo sua identidade e permitindo que tivessem a coragem de fazer escolhas ousadas no futuro, se isto fosse necessário. Embora o filme apresente isto como uma coisa desejável em si mesma e uma maneira de dar sentido à vida, oferecendo aos jovens uma chance de viver plenamente, em vez de apenas cumprirem rituais sociais vazios, conforme a orientação paterna; o que não se menciona é que esta elevada autoestima, esta identidade fortalecida, esta capacidade para tomar decisões difíceis não são qualidades “poéticas”, mas habilidades sociais valiosas em uma sociedade competitiva e cruel, que opera com base no mérito pessoal. Os valores que Keating incute em seus alunos são os valores do self-made man, a variante norte-americana do Übermensch nietzscheano.
Uma característica do self-made man é fazer tábula rasa dos conhecimentos herdados, produzindo e reproduzindo relações novas a partir de sua experiência empírica. O passado “velho” precisa, ao mesmo tempo, ser ignorado em suas convenções e reinterpretado em sua herança. Assim os Estados Unidos produzem nos movimentos de “reavivamento cristão” uma curiosa mescla de livre-exame e fundamentalismo bíblico. O que Keating está ensinando aos seus alunos é essencialmente o livre-exame do cânone literário ocidental, sem usar Evans Pritchard de intermediário, o que leva por consequência a um “literalismo literário” (por analogia ao bíblico) atado ao fundamentalismo textual (negando valor às intepretações posteriores). Digo que esta mistura é curiosa porque, ao mesmo tempo em que se nega valor ao fictício Evans Pritchard (posterior às obras e anterior aos leitores), esta postura oferece aos estudantes a oportundiade para ler os textos originais e formar suas próprias interpretações deles.
O que o filme não explicita é que, se as interpretações intermediárias não têm valor, a interpretação feita pelos alunos tampouco tem, porque eles logo deixarão de ser alunos e se tornarão versões atualizadas de Evans Pritchard. A consequência não intencional da abordagem do professor Keating é tornar a literatura um conhecimento sem sentido, que se esgota na própria fruição estética.
Em uma sociedade profundamente conformista e conservadora, o resultado disto é a criação de um conflito, no qual os mais jovens não têm como se impor aos mais velhos. O resultado é a infelicidade e até mesmo o suicídio de um jovem, o que destrói o projeto (e a carreira) do professor. Se a morte de um jovem por suicídio é uma tragédia, pior ainda é o que ocorre na situação inversa: em uma sociedade profundameente ansiosa por mudanças (ainda que superficiais) e pretensamente inovadora (na verdade reformista). Uma sociedade tal tenderá a idolatrar a estética da novidade, da mudança. Então os jovens e suas leituras desembasadas não serão mais impelidos ao suicídio: eles criarão perfis em redes sociais para distribuir suas platitudes, farão podcasts para difundir suas inanidades e logo o conhecimento se dissolverá numa geléia geral de superficialidade e ignorância.
Mas ao fim e ao cabo é exatamente isto o que a arte faz em nossas vidas: ela nos comanda a pensar por contra própria, ela nos faz inquietos, nos faz questionar. Viver isto sem conhecimento é vicejar na ignorância. Haverá situações em que daremos com a cara na porta e não saberemos a senha. Alguns se sentirão de tal maneira tristes com a decepção que talvez percam a alegria de viver e se matem. Mas a destruição é muito menor assim, do que permitindo o triunfo dessa vontade tola, porque o ignorante só faz mal a si mesmo, mas uma sociedade ignorante caminha para a própria destruição coletiva.
De tudo isto, porém, se extrai o progresso, que é a superação do conformismo cinza que também causa decepções (e cujos suicídios são atribuídos a qualquer coisa menos a tristeza imperial do mundo).