O Sarau do Valdir

>Texto classificado para a fase final do II Festival Cultural Banco do Brasil

— Mulher, não é justo.

— O que não é justo, Valdir?

— Tinha que chover? Justo hoje, agora!?

A mulher deu de ombros, conformada:

— Paciência. Marque para outro dia.

— Como assim? «Marque para outro dia»? Vendi convites, reservei bar. Não dá para desmarcar em cima da hora e «marcar para outro dia». Vai ser um fiasco.

— Então enfrente, homem.

— É o que vou fazer.

Então Valdir deixou a mulher em casa com as crianças e se enfiou na capa de chuva, abotoou a gola bem firme e botou debaixo do braço o livro de partituras. O violão, esse já ia devidamente ensacado às costas.

— Vai a pé, Valdir? Olha a chuva que vem aí!

— Vou sim. Perdido, perdido e meio — ele respondeu, enigmaticamente.

Afinal, Valdir José da Silva, sambista interiorano, paladino da cultura nacional, não teria medo de qualquer chuva. Não na noite de lançamento do seu disco, gravado ao preço de quase um carro. Tinha de chegar ao bar, talvez houvesse gente à espera. Mesmo que não houvesse, tinha de estar lá.

Quando chegou à rua o coração já estava apertado. Não de medo, mas de decepção e tristeza. O céu coriscava e as nuvens gordas regurgitavam trovões e ameças. Um ventinho frio soprava do sul. As primeiras gotinhas, ainda leves, caíam de um céu que parecia pronto a rasgar-se num dilúvio.

Valdir apertou o passo, pensando nos fãs que talvez esperassem. Andava apressado, por uma rua imensa de tão vazia, povoada de corajosos cães que aproveitavam a última chance de revirar lixeiras e por estúpidos carros que não sabiam aonde esconder-se. Um relâmpago mais forte arrebentou no céu, de um canto a outro, trazendo um rugido áspero. Estava escuro e o ar cheirava a umidade e a elétrons.

Entrou na Avenida, rezando para o rio não subir com a chuva. Felizmente o rio era grande e vinha de bem longe. Mas a avenida, mesmo assim, virava outro rio se chovesse muito — e a chuva de verão prometia muita água. Enquanto pensava nisso a tempestade veio, grossa e gelada, batucando nos telhados como um milhão de bolinhas de gude, molhando até a alma de quem estava na rua.

Chegou mais triste e molhado que um pinto sem mãe. Os sapatos vazavam pelas solas que já descolavam, a barra da calça tinha meio metro de uma mancha de umidade escura que esfriava as canelas. Olhou em volta, sentindo a boca amarga como se tivesse andado mastigando boldo: não havia nenhuma viva alma. Estaria, aliás, bem contente se houvesse alguma alma morta pelo menos, mas nem isso.

Chovia a ponto de se poder perguntar se alguém fizera uma arca. A enxurrada vermelha descia dos morros e afogava a avenida. Carros passavam esguichando água a dois metros de altura, entortando na correnteza. Os coriscos faiscavam de todo lado, transformadores explodiam e as árvores loucamente balançavam seus braços contra o céu. Mas sobre o palco de madeira, calmamente, Valdir Silva desembrulhava seu violão, depositava o livro de partituras e abria o caixote cheio de discos que havia deixado lá durante a tarde, após o último ensaio.

Depois de pigarrear para tentar ouvir o eco no salão vazio, folheou o álbum de partituras e achou ali alguma inspiração. Começou a cantar um clássico. Clássicos fazem bem numa hora destas. Toda vez que terminava um verso, ouvia outro trovão. Cada hiato trazia um relâmpago, cada dedilhado respondia ao chuá-chuá da tempestade.

Valdir chorava. A garganta seguia firme, os dedos não se enrolavam, mas os olhos não aguentavam a decepção. As cinquenta mesas, cobertas de impecável branco, encaravam, cruéis, os seus olhos que já começavam a empanar com a idade.

Mas a chuva passou, meia hora ou quarenta minutos depois, tempo apenas o suficiente para acabar com o programa. Deixou no ar aquele delicioso cheiro de terra, e de sangue. A enxurrada foi passando, junto com a sexta canção. A sétima encontrou lá fora o silêncio, começando a ser cortado pelos primeiros carros. Valdir parou de cantar, pegou o copo de água mineral, como se estivesse diante de uma grande plateia, e ligou o violão à tomada.

O dono do bar se aproximou, tão respeitosamente como quem visita um defunto:

— Seu Valdir. Se o senhor não se importar, vou abrir para o meu público. O senhor sabe, eles talvez não venham mais…

Valdir, impotente, assentiu com a cabeça. Enquanto o dono do bar se afastava par ir dispensar o serviço de portaria e levantar as portas, contemplou as cinquenta mesas, com suas impecáveis toalhas brancas. Continuou cantando, cada vez com a voz mais branda e o peito mais estreito.

Chegaram alguns fregueses. Desconhecidos que ocuparam a mesa que seria da Ana e do Alfredo, colegas de agência. Chegaram mais pessoas, frequentadores normais do lugar. Sentaram-se na mesa do José Carlos e da Rute, vizinhos do prédio. Apareceram estudantes da faculdade, gente que nunca vira, com quem nunca falara. Trataram de juntar as mesas que Valdir tinha reservado para Jurema e Miguel, que tinham uma loja no mesmo prédio em que ele trabalhava de segunda a sexta feira. Valdir cantava para os desconhecidos, consolando-se em ter, pelo menos, quem o ouvisse — e eles o ouviam, distraídos, bebendo suas cervejas.

Era impossível continuar. Mas ele continuava desfiando sambas melancólicos de Cartola, Clara Nunes, Paulinho da Viola e Jackson do Pandeiro. Lá pelas nove e meia, o salão estava quase cheio. Poucos rostos reconhecíveis, nenhum realmente familiar. Todos ocupados com suas conversas e com suas cervejas.

Terminou a décima canção, ouviu aplausos tímidos. Começou outra, acompanhada de um ligeiro murmúrio. Terminou-a ainda diante de palmas que tinham medo de se ouvir.

O dono do bar se aproximou de novo. Pediu licença do palco. Valdir humildemente curvou a cabeça, preparado para ser expulso. Mas quando já se empertigava para empacotar o violão, seus ouvidos o fizeram erguer de novo o rosto:

— Amigos, como vocês sabem pelo cartaz lá fora, hoje é o lançamento do primeiro disco de Valdir Silva, cantor e compositor de nossa terra, que está aqui se apresentando para vocês e autografando sua obra para os que vieram prestigiá-lo. O show vai ser interrompido agora para os autógrafos, mas ele vai retornar mais tarde para vocês, se vocês aplaudirem o suficiente! Agora, aplausos para nosso artista, Valdir Silva!

Aplausos soaram, densos como a chuva. Foi só então que Valdir se deu conta de que o lugar estava quase cheio. Era a hora em que normalmente o bar abria para o movimento regular. Aquelas pessoas que ali estavam, nenhuma especialmente convidada para assisti-lo em sua grande noite, aplaudiam com a sinceridade dos desconhecidos. Valdir chorava ainda, mas não mais de decepção ou revolta contra deus e o mundo. Chorava a calma alegria dos desavisados que se surpreendem consigo mesmos.

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