26
fevereiro
há 15 anos
Às vezes as pessoas me perguntam como consigo dormir em paz. Não compreendem que eu possa ser feliz sem conviver com o mesmo medo seu. Eu só lhes respondo que sei dormir tranquilamente, na verdade sou eu que não entendo como podem dormir à noite certas pessoas que dizem que encontraram sua paz. Lhes digo que durmo pacificamente porque tenho limpa a consciência de que não fui o culpado por nem um sofrimento infligido propositalmente a um semelhante meu, ainda que possa ter sido causador […]
23
fevereiro
há 15 anos
Era alta noite e eu estava na estrada, ouvindo uma rádio que oscilava e chiava de interferências, enquanto o carro escavava um túnel na escuridão da serra. Meus pés doíam de acelerar há tantas horas, os pneus roncavam na irregularidade do asfalto e eu me sentia profundamente só. De repente uma estação estranha interferiu com a rádio comercial: um som eletrônico longo e agudo irritou-me o suficiente para que levasse a mão ao controle para desligar. Tomei um choque ao fazê-lo e levei a mão […]
16
fevereiro
há 15 anos
Existe algo de muito cruel na Internet: ela nos expõe demais, cedo demais. Quando eu tinha dezesseis anos eu também escrevia e me achava uma reencarnação de Rimbaud (fazia poemas, lógico). A diferença é que minhas pobres páginas datilografadas não iam muito longe. Xerox era caro, mimeógrafo, trabalho. Os jornais da cidade só publicavam as coisas que os caras ricos escreviam, por mais bosta que fosse. Bosta de rico é perfume. Então só me sobravam as gavetas e a esperança. As gavetas foram enchendo e […]
6
fevereiro
há 15 anos
Não quero moedas verdes, já sei qual foi o dia de meu casamento. O de minha morte, não sou Idi Amin para querer saber. Não quero convites para o Novo, não preciso de alongar meu pênis, não me interessa comprar pílulas azuis e nem retirar, sem pagar a dívida, o meu nome do SPC. Eu quero é paz de espírito — ah, se vendessem isso a quilo! Eu quero saber apenas o que todo mundo sabe, mas que EU ainda não sei. Gosto de coisas […]
25
janeiro
há 15 anos
Odeio terminais rodoviários, o cheiro de gente e de óleo diesel derramado, os banheiros sem qualquer traço de personalidade, as pessoas exclusivamente preocupadas em retornarem ou irem, andando de um lado para outro com suas malas. Detesto ônibus, trens e aviões. Detesto estações e aeroportos. Custa-me pôr em movimento a minha vida, ter de retirar meus pés do chão. Tornei-me meio árvore, tanto tempo estando nesta mesma cidade e nesta rua mesma. Quando escuto os veículos que passam levando gente atrás de seus destinos, lembro-me […]
21
janeiro
há 15 anos
Judah Stevens ganhou os primeiros trocados escrevendo discursos para políticos e anúncios de xaropadas curativas no jornaleco local. Tinha sido bom em redação na escola e por isso o haviam recomendado a um cargo na Prefeitura, por influência de sua família relativamente influente. Com o tempo tornou-se o braço direito de ambos os partidos. Na calada da noite, como vampiros, homens de terno o procuravam com encomendas ilegais: “queremos discurso contra a privatização da rodovia”. No dia seguinte outros homens, de ternos iguais e voz […]
23
dezembro
há 15 anos
Se os vivos ferem, não tenhas pranto, não queiras tanto acidentes: por enquanto não resolvem lágrimas. Seque-as em outros portos porque tudo se conserta quando partem: todos são felizes quando sobram e ninguém odeia os mortos.
21
dezembro
há 15 anos
Inspirado em um cartão que recebi, quando ainda adolescente, de um amigo por correspondência romeno. Como se sabe, comunistas de verdade não são como a Heloísa Helena, carolas e cheios de fé, mas monstros ateus comedores de criancinha. Portanto, nada de referência a Natal e Ano Novo: natal de comunista é uma festa secular.
16
dezembro
há 15 anos
Ler é prazer, é busca, encontro. É satisfação, inquietude e desencontro. Leio porque preciso De um jeito impreciso Sorver antônimos e cores Nas formas das letras e nomes. Lendo me abro portas, quando fecho os olhos E me abro a mente para outros modos, Dissonantes, alheios, diferentes. Quando a porta se abre na alma A mente se desprende E meu olhar se transforma. Lendo conheci países, Bebi de fontes desconhecidas, Estranhas, fascinantes. Não leio por qualquer coisa: Leio apenas porque preciso, Porque livros são o […]
9
novembro
há 15 anos
“Como você ousa dizer que andou deprimido?” — perguntou-lhe o amigo de muitos anos. Custódio abriu os braços num gesto largo e insignificante, deixou uma palavra no trampolim da língua, mas fechou os lábios crispados de raiva sem ter dito coisa alguma. O amigo continuou: “Com um emprego como o que você tem, uma família linda, cheio de saúde…” Dava vontade de matar o amigo. Como era possivel que alguém com quem convivera durante tantos anos se mostrasse incapaz de compreender justamente uma confidência tão […]