Uma Tarde no Hospital

Amanheci com náuseas. Não é infrequente que isso aconteça comigo: mesmo depois de ter removida a vesícula eu ainda passo por esses perrengues ocasionais. Especialmente depois de comer chocolate, ou frituras. Mas quem disse que eu vou deixar de comer um belo pastel de queijo só por causa de um fígado? Pois é, rendi-me à gula e amanheci mareado como um marujo de primeira viagem. Só não vomitei. Talvez tenha sido o meu azar: os males materiais, tanto quanto os espirituais, nos deixam de atormentar […]

Caça às Bruxas

“Severo Snape” (nome fictício) era proprietário de uma empresa que ia razoavelmente bem. Era, no entanto, dotado de um ego maior do que sua grandeza e de uma insegurança que lhe obrigava a reinar sozinho. Por isso tratava de aproveitar-se do poder de todas as formas, submetendo seus empregados a um regime de intimidação e represálias, cuja principal finalidade era impedir que algum deles se destacasse mais que o proprietário. Era também amante de três funcionárias (e supostamente de um funcionário também). Seus relacionamentos se […]

Velocípede

Uma semelhança entre a realidade e sonho é que as duas coisas não tem começo. Da mesma forma como não nos recordamos das primeiras cenas de um sonho, tampouco nos recordamos das primerias coisas que vimos, sentimos, cheiramos, bebemos, pensamos. Cada um de nós vive como em um interminável sonho, do qual talvez acordemos um dia bêbados do cansaço da noite. E se morrer em meu sonho, o que acontecerá comigo na invisível cama na qual, calmamente, eu repouso? Eu não sei exatamente quem sou. […]

Ismaël

“O passado nos condena, Ismaël.” Ainda posso ouvir rasgando minha alma essas palavras pro­fe­ri­das pelo velho, com seu porte de capitão Ahab, como se estivesse à amurada de um velho navio con­tem­plando o mar absoluto, à espera de alguma incompreensível fera. Chamo-me real­mente Ismaël, mas ele não se chamava Ahab, e não estávamos embarcados em navio algum, mas per­di­dos nas montanhas poeirentas do Teto do Mundo, fugitivos da impiedosa inquisição de um inimigo invisível e quase incompreensível. Eu piso o chão destas montanhas, e Ahab […]

O Sarau do Valdir

>Texto classificado para a fase final do II Festival Cultural Banco do Brasil — Mulher, não é justo. — O que não é justo, Valdir? — Tinha que chover? Justo hoje, agora!? A mulher deu de ombros, conformada: — Paciência. Marque para outro dia. — Como assim? «Marque para outro dia»? Vendi convites, reservei bar. Não dá para desmarcar em cima da hora e «marcar para outro dia». Vai ser um fiasco. — Então enfrente, homem. — É o que vou fazer. Então Valdir deixou a mulher em casa com as crianças […]

A Montanha

De qualquer ponto da cidade se pode ver a Montanha com sua ampla face de granito, uma larga presença a esconder o horizonte. Seu cume coberto de ralas árvores e rochas menores não é tão imponente, a não ser por estar tão alto. Subindo imponente como uma muralha, firmeza de séculos, sem flores nem poemas, é mais que um acidente geográfico, tornou-se parte da personalidade de Santa Cruz do Monte. Ao pé da montanha cresceu a cidade, contemplando o granito e se agarrando à lama […]

Queridos Filhos da Pátria Amada

Vão dizer que sou viúva da Ditadura só por eu dizer isso, mas a verdade é que tenho saudades dos antigos desfiles do Sete de Setembro, dos desfiles que havia quando eu era moleque de escola lá em Cataguases. Eram os tempos da Ditadura, sim, e muita gente sofria, mas eu era criança e não tinha que saber disso. O que me importa nessa saudade é que, naquela época, o Sete de Setembro era algo bonito de se ver, e não esse espetáculo desorganizado e […]

Pregando na Praça

Dia desses eu vi uma cena deprimente. Saindo do banco vi um pastor pregando na praça. Ele tinha uma bíblia esgarçada, um terno puído e uma gravata vários números maiores que o dele pendendo do pescoço magro. Eu conheço esse pastor, é um homem solteiro e solitário, já além dos quarenta anos de idade, que trabalha como marceneiro. Todos os domingos e eventualmente durante a semana ele pega sua velha bíblia, um caixote de madeira e seu terno preto já quase perdido e vai para […]