Letras Elétricas
Textões e ficções. Tretas e caretas. Histórias e tramóias.
by J. G. Gouvêa

Phantasmagoria

Publicado em: 12/04/2014

Um conto baseado em fatos reais. Ou pelo menos virtuais, sei lá. O texto contém a chave de sua própria interpretação. E não está em latim.

Guilherme construíra a sua casa sobre as ruínas desconhecidas que ocupavam um excelente terreno urbano. Doze trabalhadores com suas máquinas removeram os restos, arrancaram os arbustos e aplainaram cada metro de chão. A construção teve percalços porque havia quem achasse certa importância histórica no lugar, mas não foi longe a questão: a casa estava esquecida, parecia impossível de recuperar e tinha uma fama de assombrada.

A obra transcorrera sem sustos, claro. Os infiéis engenheiros não teriam visto nada de anormal. Os únicos incômodos materiais foram os mendigos que haviam habitado as ruínas e insistiam em aparecer ao entardecer, caçando abrigo no belo prédio que subia. No começo a presença deles incomodou, Guilherme quisera expulsá-los, limpar o terreno das ervas e dos homens, mas preferiu não causar uma tão ruim impressão na vizinhança e resolveu permitir que passassem as noites em troca de arrancar a grama, marretar paredes ou qualquer outra tarefa pequena.

Logo os mendigos eram operários na obra, mas não operários iguais aos outros. Os engenheiros compraram os apartamentos superiores e os operários, antigos mendigos, no máximo puderam contemplar como cidadãos a construção ereta. Quando muito, poderiam entrar no bar do térreo para um lanche rápido ou passar pela galeria acelerado, para não dar na vista e atrair a segurança. Assim que o prédio se deu por terminado, a velha divisão pronunciou-se, e Guilherme, já mudado para a cobertura, montado em um patrimônio crescente, pôs se a atrair os melhores moradores para o condomínio.

Entre eles artistas, como Guilherme fora na juventude, e não eram poucos. A razão de sua vinda era meio indefinida, cada um tinha a sua história, mas vários se disseram atraídos pela ideia de morar em um prédio construído sobre ruínas mal-assombradas. O estabelecimento do Edifício Esperança como um solar das artes não foi nem repentino e nem demorado. Foi apenas impreciso: entre dois e três anos depois de ter sido inaugurado, Guilherme se viu ilhado entre artistas e até redescobriu o gosto pela pintura.

Mesmo assim, parecia que não haveria nada digno de ser narrado na história do Edifício até que o Fantasma dos Bilhetinhos deixou na soleira da porta de Guilherme a sua primeira missiva, em elegante estilo minúsculo carolíngio, tão cheio de abreviações que ninguém pôde entender. Mas a simples aparição daquele curto bilhete já se mostrara um portento, embora escrito em papel-ofício comum, com o emprego de uma hidrocor vagabunda: quanta gente conhece latim neste mundo perdido de Deus?

O texto estava dobrado e muito bem dobrado, dentro do bolso da camisa que Guilherme poria para o trabalho naquele dia. Foi então se pôde perceber a prevalência de escritores no Edifício. Na investigação sobre bilhete, Guilherme e seu namorado não só se surpreenderam por serem reconhecidos, como artistas que eram, mas acharam muitas teorias do significado da algaravia:

— “Meo primo trato” pode significar “o meu primeiro trabalho”, em algum tipo de latim bárbaro. Acho que o autor disso é simultaneamente um escritor e um adepto de enigmas — teorizou uma moça cujo olhar era permanentemente protegido por grossas lentes de vidro.

— “Ergo abuterit illae reglae meae” é totalmente estúpido, parece uma adolescente de quinze anos com um dicionário de latim e muita merda na cabeça tentando confessar que desobedeceu a mamãe.

— Porém — observou um outro — “Quia est locus meus” é inteligível e transparente, apesar de ser um latim pior que o de um padre dos piores anos de decadência da Idade Média. Certamente quem escreve estes bilhetes está reivindicando a posse do lugar onde os deixa.

— Ou algo assim.

Mas os bilhetes continuaram aparecendo, cada vez num lugar, muito sutilmente ocultos, cada vez com um conteúdo ligeiramente diverso do outro. “Ego fac. quo ego voluo in hoc situs. Delero pag. cum reg. absurdus et nulla obstat.”

Com o tempo os bilhetes perderam o caráter de novidade, Guilherme se acostumou a ocasionalmente achá-los e sempre jogar fora. Todos os conhecimentos travados, porém, acabaram tendo um efeito claro: todo morador com uma veia artística e morador do Esperança passou a encontrar-se regularmente com os outros, para falar de qualquer coisa, de nada ou até de literatura. E nesses encontros raramente se falava em fantasma ou bilhetes em pseudo latim.

Os bilhetes pararam. Ou pelo menos ninguém mais os percebia. Tudo parecia ter retornado à normalidade no Edifício Esperança. Mas as mãos do morto ainda pregariam outra nos moradores durante uma das mais promissoras discussões do ano, sobre os benefícios de viajar no tempo e seus perigos envolvidos. Na saída e passando pelo hall de entrada, viram mãos invisíveis acabando de escrever a tinta na parede branca, como os dedos de Javé na festa de Baltazar:

NULLA OBLITERAT NULLAM.

Este evento foi bem mais portentoso que os bilhetes, não apenas só porque não se pode jogar fora uma parede mas também porque ninguém poderia negar que o sentido da pichação ectoplásmica era claro.

— Que raio de texto é esse? — perguntou a mais jovem do sarau, toda inocente como só se pode ser aos quinze anos.

— Um tipo de baixo latim. O fantasma, além de porcalhão, também se dá ao trabalho de nos propor enigmas.

Mas mesmo esta intromissão não interrompeu os planos do grupo, que resolveu apresentar conjuntamente seus mais recentes trabalhos, em uma exposição nos corredores do edifício. A inauguração envolveria até um econômico coquetel, e o sorteio de uma obra de algum autor estrangeiro, devidamente certificada.

Estavam todos prestes ao início da envernizagem quando ele surgiu em pessoa, o misterioso fantasma escritor de bilhetes em latim. A sua presença não foi detectada de imediato, porque ele se materializara na figura de um antigo morador do terreno, um dos paupérrimos populares que muitas vezes dormiam sob as ruínas, sendo até confundidos com mendigos. Mas o simples fato de ele estar ali não tinha explicação lógica, não naquele prédio tão exclusivo.

Bem vestido, o fantasma distribuía sorrisos e cartões. Os primeiros não tinham nada de especial, mas os segundos eram diferentes, bem diferentes do que se espera: em vez de detalhes do indivíduo que os distribuía, tinham na frente apenas um “interrobang” e no verso, um curto texto em baixo latim renascentista:

Attemptus primus meum non bonum receptus erat, ergo abutero regulatii cum secundæ historiæ. Sum proprietor hoc situs, ergo puo facere cum credo. Delero pagina cum regulationes contestii præ revelationem solui. In loco positionam dispudero, cum texto malum, eram secundus. Quis ego sum?

Depois de distribuir uma dúzia ou mais destes curiosos cartões de visita, o fantasma foi identificado por Guilherme, e iniciou-se um debate entre os proprietários para decidir sobre o que fazer. Por fim, devidamente decididos, cinco residentes se acercaram do fantasma e lhe pronunciaram palavras de exorcismo:

— Reprobus estis.

O fantasma não ficou surpreso. Apenas retrucou:

— Temporibus mutatis. Nova ordo incipita consumata est. Ibo.

O fantasma saiu pacificamente, levando seus cartões. Não olhou para trás. Em vez disso, abriu a porta de um carro prateado e voou para o outro lado do céu, deixando uma trilha de bolhas de sabão pelo ar.

— Devíamos tê-lo deixado ficar — sugeriram.

— Não para criar problemas. Se pagasse o aluguel como todos, poderia ficar. Temos 56 apartamentos. Mas se ele não concorda em ser apenas um visitante comportado, que se vá.

E assim seguiu a vida no estranho Edifício Esperança, onde logo ninguém mais se lembrava do fantasma, e nem dos antigos moradores do terreno abandonado. Apenas ocorria de, quando em vez, passar pela janela a voar uma máquina prateada deixando um rastro de bolhas de sabão. E os que viam passar, sem saber o que era, sentiam o impulso estranho de conhecer o que havia fora das confortáveis portas e do seguro ar condicionado.

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