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Textões e ficções. Tretas e caretas. Histórias e tramóias.
by J. G. Gouvêa

A Dama Pé de Cabra

Publicado em: 16/08/2014

Conforme promessa antiga, eis minha primeira tentativa de transformar a antiga lenda portuguesa da Dama Pé de Cabra em um conto de terror ao gosto moderno. Preservei o tratamento em segunda pessoa para dar um ar medieval ao texto (que é, de fato, ambientado na Idade Média), e procurei evitar, ao máximo, toda modernização que violasse o espírito do original. Sendo assim, as personagens do sexo feminino são deixadas em segundo plano a ponto de nem terem nome. Esta versão, porém, expande a história original em vários pontos que ela abrevia em frases secas como “e assim foi”. Ainda é uma versão bem grossa, mas poderá servir de base para uma mais cuidada.

Diego Lopes era um caçador dos melhores. Estava um dia com a sua guarda esperando a caça em um monte quando ouviu cantar uma voz forte de mulher, que parecia vir de um rochedo. Surpreso, e logo desinteressado do porco que tardava, deixou seus companheiros ao pé do monte e o subiu. Lá encontrou uma mulher, de fato, muito formosa e bem vestida como uma senhora de mais alta nobreza. Não lhe ocorreu que pudesse haver qualquer coisa errada nela, sozinha naquele lugar deserto, naqueles trajes e cantando tão inocentemente. Apaixonou-se, em vez disso, e quando lhe dirigiu a palavra já foi com a voz trêmula de um galanteador.

— Quem és?

— Sou uma dama da mais alta linhagem, temporariamente nestas terras.

— Pois se és uma dama de princípios e linhagem, desejo casar-me contigo, se me aceitas. Sou o senhor de toda a terra que tua vista alcança e tudo isto será teu.

— Não me consta que esta terra pertença à algum homem, mas tu és belo e forte. Caso-me contigo, sim, caso me prometas nunca santificar-te. Não apenas não comungarás, como não te persignarás, não clamarás a Deus ou aos santos. Esta é a condição que imponho em troca de minha mão.

Diego Lopes concordou com o estranho pedido, e mulher, estendendo-lhe a mão, declarou que estavam assim acertados e firmou-se em seu braço para se levantar da pedra em que estava sentada. Quando o fez, Diego Lopes percebeu, para seu espanto, que, apesar de toda a formosura de seu rosto e de quase todo o seu corpo, a mulher tinha pés fendidos, como os de uma cabra, e manquitolava ao andar.

Tal constatação, porém, não lhe demoveu da determinação de com ela se casar. Considerou que era justamente por essa deformidade que muito homem a rejeitara antes, mas ele não era de recuar por tão pouco. Em vez disso, deu-lhe o braço para que se apoiasse e ela o acompanhou até o castelo, para espanto de seus camaradas.

Unidos sem as bênçãos da Santa Madre Igreja, para escândalo do populacho, passaram a coabitar no castelo e viveram felizes por vários anos, durante os quais tiveram dois filhos, o primogênito, um menino que foi Dom Iñigo Guerra, e uma menina que teve o mesmo nome de sua mãe. E Diego Lopes era muito ligado a seu filho, e o assentava ao seu lado direito durante as refeições. Sua mulher, porém, sentava-se do lado oposto da mesa, com a filha ao seu lado esquerdo.

Um dia Diego Lopes foi aos montes e matou um porco muito grande, trouxe-o para casa e o preparou para si e os seus homens. Sua mulher veio ter com eles e estavam todos sentados em uma grande mesa, devorando o assado, quando alguém atirou um osso ao chão, atraindo a atenção de dois cães da casa que dormiam no borralho. Estes eram uma mansa podenga e um grande caçador alano, que se atiraram sobre o osso ao mesmo tempo, e a podenga, não querendo ceder, rosnou alto e de repente se atirou ao pescoço do alano com tamanha decisão que rompeu a garganta do alano com os dentes, com o que ele logo desfaleceu e morreu. E Dom Diego Lopes, vendo isto, achou que era algo admirável, um verdadeiro milagre, e persignou-se dizendo “Santa Maria, valha-me, que nunca se viu tal coisa!”

Tão logo o fez a sua mulher se levantou da mesa, agarrou a filha e tentou agarrar também ao menino, mas Diego Lopes, pressentindo que algo mau estava por ocorrer, agarrou-se ao menino como à própria vida, com o que ela não o pode segurar. Então ela retrocedeu e saltou pela janela com a filha e fugiu para as montanhas, para não mais ser vista.

Depois de lamentar-se por um tempo, Diego Lopes resolveu esquecer suas mágoas fazendo mal aos mouros. Durante a batalha foi ferido e preso, e os mouros o levaram em ferros a Toledo, onde o exibiram como um troféu, para grande desgosto dos cristãos.

Iñigo Guerra, a essa altura já um rapaz bem crescido, sofria muito a ausência do pai e da mãe, e andava solitário pelas ameias do castelo. Um dia, caminhando entre os camponeses e servos, começou a perguntar-lhes, cheio de dor e lágrimas, se não havia entre eles nenhum homem de valor que pudesse buscar o seu pai, que estava humilhado nas mãos dos infiéis. Ninguém se dispôs a tal heroísmo, e fizeram troça do menino perguntando-lhe por que não ia ter com a sua mãe nas montanhas, para que ela lhe dissesse o que fazer.

O garoto levou o conselho a sério e partiu do palácio sozinho em seu cavalo e percorreu os montes durante dias sem nada achar, até que um dia, ao amanhecer, ouviu o som de uma forte voz de mulher que cantava uma cantiga em uma língua estranha. Iñigo seguiu a voz e achou a sua mãe e a sua irmã sentadas em cima de um rochedo. Sua mãe o viu e o chamou dizendo: “Filho meu, Iñigo Guerra, venha até mim que eu bem sei o que queres, queres saber como salvar teu pai das correntes dos mouros.”

Depois muito chorar e abraçá-las, Iñigo lhes contou também da crueldade dos campônios. Sua mãe então se levantou e chamou um cavalo que andava solto pelo monte, por seu nome o chamou, e ele se chamava Pardal. Quando o cavalo se aproximou da Dama, ela tirou de sua bolsa um freio que tinha consigo e lhe prendeu. Depois deu-o a Iñigo dizendo:

— Este será teu companheiro mais fiel por toda a vida. Nunca perderás uma batalha enquanto o cavalgares, e nenhuma arma adversária o ferirá enquanto estiveres sobre ele. Mas para isso, nunca o selarás e nunca lhe tirarás o freio, nem mesmo para lhe dar de comer ou bebe, e nunca o ferrarás.

— Mas em que este cavalo me ajudará a buscar meu pai? Devo fazer guerra aos mouros?

— Não, filho meu, que não tens tal poder. Não farás mal aos mouros enquanto viveres. Mas este cavalo lhe será fiel. Monte-o agora e ele o levará como o vento através das planícies e montanhas, ele o conduzirá a Toledo e o deixará diante da porta por onde acharás o teu pai nesse momento. Ali descerás e entrarás e verás teu pai em uma paliçada com outros prisioneiros, pronto a ser vendido como servo. Tu fingirás interesse em comprá-lo e pedirás para falar com ele, mas quando o tiveres pela mão, correrás até a porta onde o cavalo estará esperando e o montarás logo, pondo seu pai diante de si. Tão logo o fizeres o cavalo retornará pelo mesmo caminho, tão rápido quanto foi, e ainda esta noite estarás em casa com o teu pai.

Ainda um pouco desconfiado, Iñigo montou o cavalo em pelo. Tão logo o fez, o animal relinchou como um demônio e pôs-se a correr como uma besta sobrenatural. Por onde passava, o seu trotar e os seus relinchos causavam medo ao povo, porém mal o viam passar, tão rápido ia. E assim foi que ainda antes que o sol passasse do pino ele já estava diante das muralhas de Toledo.

O cavalo parou diante de um poço e Iñigo lhe deu água e feno, sem lhe tirar o freio, conforme o conselho de sua mãe. Depois, entrou na cidade por uma porta estreita que ficava logo em frente ao poço, e para seu espanto ali encontrou seu pai, tal como sua mãe o dissera: dentro de um curral, como um animal à venda. Ele parecia imensamente cansado e tinha uma barba de meses. Estava sujo, seminu e tinha as costas marcadas por chibatas. Não parecia capaz de suportar uma corrida, mesmo que fosse por uns metros.

Mas Iñigo confiou no que lhe dissera sua mãe e o tomou pela mão, retirando-o do curral diante dos olhos dos comerciantes mouros, que o interpelaram em sua algaravia. Somente então o pai de Iñigo o reconheceu. Um brilho atravessou os olhos de Diego Lopes, que disse:

— Sinto-me agora como se as minhas forças voltassem por um momento.

— Então usa esta força e corre como nunca, corre pela vida!

Os dois desabalaram a correr e os mouros a gritar, mas não estavam armados com flechas, com o que não os abateram, apenas chamaram os guardas para perseguir os dois fugitivos. Iñigo então montou o cavalo com o seu pai e novamente o animal desabalou a correr, tão rápido como antes, relinchando hediondamente ao trotar os cascos pelos caminhos. E antes de anoitecer estavam de volta em casa, ao lado da lareira, para grande espanto dos servos e dos vilões, que muito temeram por sua insolência e foram prestar-lhes respeito.

Diego Lopes ainda viveu alguns anos, mas as feridas de sua prisão nunca sararam de todo. Com o tempo, foi definhando até não poder suportar mais e morreu em sua cama, antes dos cinquenta anos de idade. Com a morte do pai, Iñigo, que já se tornara um cavaleiro famoso sobre a sela de Pardal, herdou as terras e a liderança do pai, e eis que vieram os senhores da terra pedir-lhe que os levasse a fazer mal aos mouros. Tal fez Iñigo, que se afastara de sua mãe durante o tempo em que estivera ao lado do pai enfermo e se esquecera da advertência dela sobre a guerra.

Nas primeiras batalhas, apesar de Pardal andar indócil, os cristãos venceram e causaram grande mal ao reino dos mouros, tomando para si grandes extensões de terra. E Iñigo Guerra se fez famoso entre o povo.

Uma noite, estavam a comer um porco em torno de uma fogueira quando um dos cavaleiros disse a Iñigo que era muita crueldade dele nunca tirar o freio do animal, nem ferrar-lhe — e que seria por isso que o cavalo andava tão arisco. Iñigo não lhe podia dizer a razão de nunca tirar o freio de Pardal, pois receava que os cristãos o rejeitassem por seu acordo com a sua mãe Pé de Cabra. Estavam a discutir isto quando um outro cavaleiro os interrompeu, dizendo:

— Basta de conversa, todos vós. Se teu escudeiro não sabe tratar a um animal tão belo, tratei eu de ceder-lhe os serviços de Vasco Nunes, meu melhor serviçal.

Neste momento ouviram-se gritos na cavalariça e Iñigo e se levantou como um raio e correu para lá, junto ao rio. Lá estava o Pardal, solto e sem freios. Vasco Nunes jazia aos seus pés, pisoteado, e o animal, cujas ventas avermelhavam com uma respiração que resfolegava infernalmente, coiceava como se quisesse fazer saltar de suas costas algo que o incomodava. E eis que ele tinha uma sela ainda mal atada, e uma cocheira de feno diante de si.

Em vão tentou Iñigo subjugar seu animal. Quando apenas se aproximou dele, Pardal o contemplou com olhos flamejantes e saiu trotando pelas campinas e montes, como um vento sobrenatural. Os demais cavaleiros ficaram muito medrosos com isso, e se afastaram de Iñigo por temerem que o demônio estivesse com ele.

No dia seguinte foram ter com os mouros, e Iñigo cavalgou uma montaria emprestada a contragosto por outro cavaleiro. Quando os dois exércitos se encontraram os mouros cobriram o céu de flechas e os cristãos se protegeram sob suas couraças. Mas uma flecha encontrou uma greta entre as chapas de aço da armadura de Iñigo Lopes, sobre seu ombro esquerdo, e penetrou certeiramente por ela, alcançando o seu coração.

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