Letras Elétricas
Textões e ficções. Tretas e caretas. Histórias e tramóias.
by J. G. Gouvêa

Temei àquele que leu um livro só

Publicado em: 26/07/2019

Há quem diga que um pouco de conhecimento é mais perigoso do que nenhum, porque quem sabe um pouco não sabe o bastante para saber que só sabe um pouco. Como o Thomas Huxley, eu não tenho certeza de quanto alguém teria de aprender para ficar fora de perigo, mas acredito fortemente que o conhecimento faz mal em doses muito pequenas porque nós vivemos, ao vivo e cada dia, as consequências de um mundo em que a maioria lê somente um livro.

O mundo em que vivemos é uma prova suficiente de que os valores e métodos que o têm governado fracassaram redondamente. O sucesso de nosso sistema político e econômico não deriva de suas virtudes, mas de sua imensidade. Assim como um caminhão sem freios não se detém diante de um semáforo, a marcha da insensatez não se detém diante da racionalidade. Se queremos consertar um mundo imenso e imensamente errado, precisamos de choques imensos. Não se derruba um elefante com um peteleco.

Individualmente há pouco que possamos fazer e talvez não haja tempo para que nossas ações individuais se traduzam em mudanças coletivas da sociedade, mas temos que tentar. Comece seguindo a sugestão de Krishnamurti e entenda que não é prova alguma de sanidade ajustar-se a uma sociedade profundamente doente. Depois comece a abandonar a ideia de que há um livro que lhe possa dar todo o conhecimento necessário. Porque a raiz de muito do mal que impera no mundo está em ver o conhecimento como algo pesado, de que se deve somente adquirir o mínimo o que você precisa, ou um labirinto, de onde você deve sair através de um guia.

O conhecimento não é um peso para você querer carregar pouco e não é uma provação que você deve atravessar. Essas ideias inerentes à nossa cultura popular são uma forma antiga de reverenciar a ignorância.

Mas eu suponho que você compreende bem o valor do conhecimento, apenas deseja atalhos. A notícia ruim é que não há atalhos, a notícia boa é que a estrada é longa, mas o caminho não é deserto.

Não haver atalhos quer dizer que ninguém vai lhe “passar a perna” no verdadeiro conhecimento. Possivelmente vão, mas usando artimanhas e imperfeições do mundo, não o conhecimento em si.

A estrada ser longa quer dizer que a busca do conhecimento não é um prazer que terá fim, ou limites. O caminho não ser deserto quer dizer que o bom conhecimento é aquele que você construirá interagindo com outras pessoas que também buscam o conhecimento.

Mas, atenção, para se elevar culturalmente você não precisa ler os livros que alguém lhe recomende. Deve, aliás, justamente, desobedecer a quem lhe recomenda livros. Você é quem deve buscar ler o que precisa e que lhe interessa, tendo, porém, o cuidado de não ler somente aquilo que lhe é útil e que faz parte de sua “zona de conforto” intelectual.

Então leia o que quiser, leia variadamente, leia com frequência, leia muito. Não acredite, nunca, que um só livro lhe baste para entender o mundo. Não acredite, principalmente, que você deve evitar os livros que pessoas em posição de poder lhe dizem que você não deve ler. Esses são os primeiros que você deve procurar.

Nenhum livro é perigoso em si mesmo quando você adquire o hábito de confrontar ideias. Os livros só se tornam perigosos quando passamos a buscar em algum deles a resposta para tudo, sem confrontar com outros ou, principalmente, com a realidade.

Há uma tradição segundo a qual São Tomás de Aquino teria confessado temer ao que lê um livro só (timeo hominem unius libri). Esse adágio é uma entre muitas frases de duplo sentido com que a filosofia nos brinda.

Ler um livro só simplifica a realidade e pode fazer com que o leitor encontre dentro de tal obra um sistema lógico inatacável, que só pode ser refutado por quem também leu o livro. Para quem não a leu, a razão de seu sucesso é incompreensível e para quem somente leu a ela, qualquer argumento contrário é inadmissível. Quando uma obra atinge esse nível de santificação, chega-se ao ponto de sua leitura se tornar uma obrigatoriedade, contribuindo para torná-la mais vendida.

Por isso é dever do intelectual não ler uma obra para simplesmente aderir à necessidade que a moda dita. Não é necessário ser picado por uma cobra para saber como tratar tal acidente e é muito mais proveitoso evitar as serpentes do que aplicar-se soro antiofídico.

O homem que lê um livro só é um debater temível sobre esse livro porque sabe tudo dele, sabe citá-lo de cabo a rabo e aleatoriamente. Se o debate ocorre diante de uma plateia que também leu somente esse livro, ela será capaz de apoiá-lo, e ele poderá construir a narrativa de que o confronto com a realidade é uma estratégia para “desviar o assunto”. Quando isso acontece o debate foge definitivamente à realidade e se torna um debate estéril sobre um mundo artificial que só existe naquele livro.

É assim que opera a lavagem cerebral nas igrejas fanáticas, é assim que opera Olavo de Carvalho.

Abra sua mente, leia muitos livros diferentes e você perceberá que o mundo não é simples e que esses vendedores de ilusões somente querem enganá-lo. O indivíduo que crê seriamente que há um livro que contém toda a leitura necessária para não ser um idiota já é um idiota e não há livro que, sozinho, consiga mudar isso.

A palavra significava originalmente “aquele que vive para si mesmo”. Alguém que vive a partir de um livro só certamente o escolheu porque este lhe é confortável, está de acordo com sua própria visão de mundo. Entãose pode dizer que essa pessoa vive a partir de um só livro vive, na verdade, com base em suas próprias ideias e preconceitos, que vê legitimados nesse livro único.

Alguém que vive exclusivamente conforme suas ideias é um idiota. Mudar de livro não é mudar de estado.

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