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Textões e ficções. Tretas e caretas. Histórias e tramóias.
by J. G. Gouvêa

Parasitas, Humanos e Monstros

Publicado em: 03/06/2021

“Parasita” (寄生獣 セイの格率, Kiseijū: Sei no Kakuritsu), é uma série japonesa de animação (“anime”) produzida em 2014, a partir do mangá de mesmo nome, publicado entre 1988 e 1990. Neste post tento analisar o que considero ser o principal aspecto da trama, em três níveis: individual, social e geral (com suas implicações éticas, políticas e filosóficas).

Meu contato com a animação japonesa moderna (animê) sofreu muito efeito negativo das produções que passavam na televisão durante meus anos de infância e juventude. Apesar de alguma lembrança de obras de qualidade; como Nausicaä do Vale do Vento, Castelo Cagliostro, Honey, Honey! e a Patrulha do Espaço; o que eu realmente associava aos animes eram séries como Yu Yu Hakusho, Yu Gi Oh!, Dragon Ball e Guerreiras Mágicas de Rayearth. A minha visão da animação japonesa se caracteizava pelo predomínio de obras de qualidade duvidosa, mas havia casos excepcionais.

Minha visão dos animes começou a mudar quando convenci as minhas filhas a assistir Nausicaä comigo, logo que o filme apareceu à disposição na Netflix. Elas simplesmente amaram a história e o estilo de animação e passaram a procurar outros filmes do Studio Ghibli e séries de animação de outros estúdios japoneses. Bastou comentar isso na internet e choveram sugestões de conteúdos para assistirmos. Tudo isso, claro, ajudado pelo confinamento forçado pela pandemia. Inicialmente recusei os convites, dizendo gostar de conteúdos “mais adultos”, com subtextos mais profundos. Então uma alma caridosa se dedicou a me explicar, com espírito aberto, que eu conhecia apenas uma parte dos animês, justamente a pior e a mais rasa, cheia de fan service e notável pela interferência dos produtores sobre a liberdade dos criadores. Essa boa alma me convenceu de que havia, além do Ghibli, outros bons estúdios de criação capazes de produzir excelentes filmes e séries de grande qualidade. Comecei, então, a pesquisar um pouco sobre o gênero e a fazer listas de séries para assistir. “Parasita” estava desde o começo entre os destacados, ao lado de “Cowboy Bebop”, “Ghost in the Shell”, “Attack on Titan”, “Akira” e alguns títulos menos conhecidos.

“Parasita” foi a primeira série de animação japonesa que assisti por inteiro e do começo ao fim, acompanhando a trama com atenção aos detalhes. Depois dele já assisti mais de vinte outras, porém ele continua, até o momento a série de animê de que mais gostei, e talvez até uma das criações da cultura pop contemporânea que me impactaram mais. Por causa dele eu decidi escrever esse texto e não teria continuado a assistir outros animes.

Temática

Em um primeiro nível, “Parasita” é uma ficção científica do tipo soft1 a respeito da invasão de uma cidade japonesa de porte médio por criaturas de origem desconhecida — os “parasitas” do título. Tramas do tipo correspondem ao que o inglês Bryan Aldiss chamou de cosy catastrophes, narrativas em que forças cósmicos atingem cenários geográficos restritos. No caso de “Parasita”, a misteriosa invasão, embora possa ter acontecido no mundo todo, é mostrada em dois municípios do Japão, chamados, respectivamente, Fukuyama Oeste, onde vivem os personagens principais, e Fukuyama Leste, (onde vivem outros personagens importantes e acontece uma grande parte da ação a partir do primeiro terço da série). Essa limitação faz com que o efetivamente conhecido sobre a invasão seja um recorte estreito de um contexto mais amplo — o que, já de início, impede que tenhamos uma interpretação completa do que realmente acontece no plano geral.

Em um segundo nível, porém, “Parasita” contém duas reflexões que surpreendem pela profundidade, apesar de ser uma obra nascida da cultura pop contemporânea:

  1. O que diferencia um ser humano de um “parasita” alienígena insensível e focado somente na autopreservação?
  2. Qual a finalidade da existência humana no planeta, uma vez que a humanidade passou a destruí-lo?

Da segunda reflexão necessariamente surge uma oposta: “qual será o propósito da existência dos parasitas neste planeta?”

Estas reflexões parecem ecoar a filosofia budista, especialmente na fase final, quando o protagonista sai da cidade e vai sozinho para uma região isolada. Em contato com a natureza e reconectado à religião tradicional do país, Shinichi compreende que aceitar a autoaniquilação é um passo necessária para restaurar a paz. Da mesma forma, ao se entregar ao sacrifício, ele percebe que a sua sobrevivência não é um prêmio, mas uma missão, e que seu triunfo não será sobre um inimigo vil, mas sobre a própria natureza.

O desfecho da história nos conduz, bem devagar, a concluir que o ser humano pode ser mais monstruoso que os monstros e mais vil que os vilões.

Níveis de Interpretação

Em um nível raso, o grande assunto em “Parasita” é a luta humana para sobreviver à invasão de criaturas parasitas. Esta, porém, é uma leitura muito pedestre e até pouco válida; afinal, mesmo com o choque visual e conceitual oferecido pelos parasitas, eles não parecem capazes de causar mais que um aumento localizado da taxa de crimes violentos, o que até pode criar pânico, mas não ameaça de maneira palpável a sobrevivência da espécie humana.

O segundo nível de leitura parte da discussão da diferença entre os humanos (人間) e os “monstros” (バケモン). Esse é o tema mais abordado em todos os capítulos da série, chegando até o epílogo. A trama nos dá a oportunidade de analisar este questionamento em quatro níveis:

  1. No nível individual, temos a dificuldade de Shinichi Izumi, o protagonista, para lidar com uma forma de vida parasita a habitar seu corpo;
  2. No nível político, temos a resposta da humanidade à gradual descoberta de “parasitas” assassinos entre nós, disfarçados de humanos e prontos para nos caçar e comer;
  3. No nível ético, temos as indagações a respeito da origem, o propósito, as características e os possíveis direitos que os parasitas teriam;
  4. No nível filosófico, a grande pergunta: “quem é monstro?”

Se você ainda não se deu conta disso, faço questão de dizer, com todas as letras: esta análise tem SPOILERS. Se ainda não viu “Parasita”, faça isto antes de ler a partir daqui. São somente 24 episódios de 25 minutos, em média. Você consegue maratoná-los em cerca de uma semana e meia.

Tendo avisado, não fico com remorsos se a leitura estragar o seu prazer de assistir a melhor de todas as séries japonesas de animação.

Os Arcos de Personagens

Não sou fã da Jornada do Herói,2 mas sempre será relevante mencioná-la ao analisar uma obra de ficção. No caso, mencionar a fim de dizer que esta não é uma obra que segue o Monomito, mesmo tendo elementos dele (os inevitáveis, é claro). Isto não quer dizer que os personagens não se desenvolvam, antes o contrário: exatamente porque o roteiro não segue um esquema pronto que os personagens podem evoluir, e evoluem com credibilidade porque os passos de seu caminho não são coreografados. Cada personagem tem um arco próprio, de sentido divergente. Alguns são interrompidos bruscamente, adicionando um elemento de aleatoridade que ajuda a criar o suspense.

Shinichi Izumi Shinichi Izumi : O protagonista era um jovem tímido e fisicamente frágil, que sequer tinha coragem de se declarar a uma colega que sabe estar interessada em si. Seu arco de personagem tem a marca do acaso: ele é mais um entre milhares ou milhões de pessoas do mundo todo que foram infectadas por parasitas. Ele não sobreviveu por causa de um dom especial, mas porque coincidiu estar deitado a ouvir música quando. O parasita tentou primeiro entrar por seu ouvido, mas os auriculares impediram, depois tentou entrar no nariz, mas ele espirrou, arrojando longe o invasor. Então o parasita tentou entrar na veia de seu braço, mas ele usou o fio dos auriculares para improvisar um torniquete, que impediu a chegada do parasita à cabeça. Tudo que Shinichi tem de especial surge na história em momentos posteriores e muito de seu heroísmo se deve às mudanças causadas pela presença do parasita em seu corpo.

Até o fim da série, Shinichi oscila entre se sentir um monstro e herói, sua epifania ocorre num movimento suicida que resgata sua humanidade ao mesmo tempo que o faz simpatizar com Migi e com os monstros. A vitória de Shinichi só acontece porque ele aprende a respeitar seu inimigo em um nível moral. Somente quando deixa de sentir neles apenas o aspecto monstruoso é que ele se capacita a derrotá-lo. Isto não deixa de ser curioso porque matar sem ódio, de maneira fria e racional, é o que os parasitas fazem. Então, a vitória da humanidade em Shinichi ocorre ao mesmo tempo em que ele aceita seu próprio lado monstruoso.

Kana Kimishima Kana Kimishima : Personagem secundária que participa de poucos episódios, Kana é muito importante para o entendimento da história. Seu arco de personagem é marcado pela tragédia da inocência, ainda que ela se ache esperta e, no começo, olhasse para Shinichi de forma condescendente.

Kana não estudava na mesma escola, não o conhecia e sequer vivia na mesma cidade. Em vez disso, vivia na vizinha Fukuyama Leste e namorava Mitsuo, líder de uma gangue de valentões que atacava os colegas de Shinichi na saída da escola.

Kana foi testemunha do momento-chave na evolução moral do herói, quando ele concluiu que a diferença entre o humano e o “bakemon” seria a capacidade de ter empatia pelo próximo, uma vez que Migi dissera que sua única preocupação era se autopreservar e que não se solidarizava nem com os de sua própria espécie. Ela viu o dia em que Shinichi, na saída da escola, se deparou com a gangue de Mitsuo espancando Kazuki Nagai — um colega com quem acabar de se desentender por causa do afeto de Satomi Murano. Kana com seu namorado, assistindo a tudo e se divertindo com a violência, que Shinichi tentou impedir, apesar de sua rivalidade com Nagai.

Kana ficou impressionada com o destemor de Shinichi e viu nele a marca de alguém especial. Ela imediatamente sente algo diferente nos olhos dele — e depois se dá conta de que consegue perceber sua presença próxima. O que pressentia, de fato, eram emanações psíquicas dos parasitas, mas em sua cabeça romântica, a sensação seria um tipo de “laço espiritual” entre os dois. Assim iludida, apaixonou-se por Shinichi, deixou o namorado e passou a viver em torno da ideia de ficar com ele.

Como Kana haviam outros “sensitivos”, capazes de detectar que um parasita estava por perto. Shinichi compreendeu rapidamente qual o perigo disso e tentou alertá-la, mas Kana não o escutou.

Reiko Tamura Reiko Tamura : Inicialmente usava o nome de Ryoko Tamiya, a humana cujo corpo tomara. Por sua inteligência, conseguiu assumir a identidade e a profissão da falecida Ryoko — professora primária.

Desde cedo ela tivera curiosidade pela condição humana, enquanto os demais parasitas viam os seres humanos só como gado. Ainda no início da história ela experimenta o sexo, para saber como é, e desta relação nasce uma criança.

Sendo a parasita mais inteligente, Reiko adquiriu uma capacidade de sentir emoções humanas. Ela aprende a perceber a ironia e o medo, consegue rir e possivelmente chegou a sentir afeto materno pela criança que gestara e, por um tempo, amamentara.

Seu arco é tão relevante para a trama quanto o do protagonista, porque é ela quem propõe primeiro as questões mais importantes a respeito dos parasitas, sua origem e natureza; sendo também quem primeiro experimenta sensações humanas e busca se aproximar dos humanos para observar seu comportamento. Como ela será o assunto principal desta análise, falo pouco dela neste ponto.

Shirō Kuramori Shirō Kuramori : Um detetive particular que investigava casos simples, enquanto sonhava em ser famoso. Reiko o contratou para seguir Shinichi e relatar o que visse, sem chamar a atenção. Bastante mais esperto do que ela supunha, Kuramori descobriu os parasitas e acabou não conseguindo lidar com esta informação, o que teve consequências terríveis.

Seu arco de desenvolvimento é marcado pela fatalidade. Ele não é um homem forte psicologicamente e não tem preparo para enfrentar o que descobre, mas é ambicioso e sonha em um dia obter dinheiro e fama na profissão. Por causa disso, aceita casos controversos, envolvendo pessoas poderosas e não é benquisto pela polícia.

Em momento algum da investigação ele está no controle, nem mesmo no fim, quando seus atos levam a uma aparente vitória da polícia contra um parasita. Sempre movido pelas circunstâncias, Kuramori é um personagem trágico que acredita ter agência, mas que apenas exemplifica o desamparo da maioria das pessoas diante da ameaça dos parasitas.

Nos capítulos 17 e 18, ele acaba sendo o pivô de um dos momentos mais importantes para a compreensão da filosofia da história, ao raptar e ameaçar o filho de Reiko.

Goto Gotō

: Este é o principal oponente de Shinichi, e também o personagem com a evolução mais complexa. Psicologicamente, apesar do rosto quase sempre inexpressivo (característica marcante dos parasitas que subjugaram corpos humanos), é um dos poucos que compreendem a arte: Reiko lê literatura e Gotō toca piano clássico. Mantém a expressão neutra do rosto por uma questão de personalidade: Gotō realmente apresenta traços de uma indiferença, de uma melancolia e de uma alienação completa em relação à humanidade, que só fica maior depois do seu enfrentamento com a polícia de Fukuyama.

Seu arco de personagem inclui transformação física, iniciada com o ataque à sede da Yakuza; psicológica, depois do enfrentamento com a polícia e fisiológica, depois de deixar a cidade e ir para a floresta, assumindo de vez uma aparência monstruosa.

Urakami Urakami : Este é o outro antagonista da série e o contraponto humano dos parasitas. Por meio dele a história indaga o que aproximaria os seres humanos de criaturas não humanas, como os parasitas.

Urakami é um assassino serial que estupra, retalha e devora suas vítimas. Possivelmente inspirado pelo caso Issei Sagawa, ainda recente quando o mangá começou a ser publicado, Urakami pode ter sido também, inspirado parcialmente em Hannibal Lecter, o grande vilão de “O Silêncio dos Inocentes”.

Se os parasitas, no começo, se alimentam dos seres humanos, a primeira aparição de Urakami é uma cena em que esfaqueia e mata uma jovem a quem supostamente havia estuprado (isto não fica evidente no anime). Enquanto o faz, ele lambe o sangue e parece ter prazer. Se os parasitas podem se reconhecer à distância, Urakami é capaz de detectá-los quando os vê — talento que ele acredita ser devido ao fato de ele próprio ser um assassino. Se os parasitas são assexuados e assumem o gênero do corpo humano que controlam; Urakami parece impotente e obter prazer somente a partir da violência, um erotismo monstruoso então. Quanto mais vemos paralelos entre Urakami e os parasitas, mais duvidosa fica a tentativa de delimitar características da psicologia e cultura dos parasitas, porque tudo o que eles fazem nós também fazemos, ou pelo menos alguns de nós fazem.

Urakami, por outro lado, acredita que o ser humano se define por atos de violência e que viver em sociedade, aceitando limitações morais, nos torna menos que humanos.3

Mais tarde na história, Urakami tem uma série de interações com o policial Katsumata nas quais observa a lenta transformação de Yamagishi, o líder da operação, que não hesita em matar qualquer cidadão que resista às suas ordens. Talvez por isso, ele adquire gradualmente a capacidade de identificar os parasitas. No começo de sua colaboração com a polícia, Urakami dissera crer que a sua capacidade de detectar parasitas seria por haver um laço entre a sua mente e a deles, um laço criado por ele ser um assassino com emoções e atitudes inumanas. Ao observar a maneira desenvolta de Yamagishi no começo da operação, Urakami sugere, com ironia, que o policial era, ou se tornara, um psicopata como ele próprio.

Os parasitas e o devoramento de humanos

Antes de mais nada, quem são os parasitas?

Parabéns se você tem a resposta, porque em momento nenhum isso é esclarecido. As cenas que mostram seu aparecimento são obscuras. Há uma cena em que estão flutuando no céu, como se caíssem lá do espaço, mas nada indica que eles vieram de fora da Terra. Talvez sejam alienígenas caídos do céu, mas podem ser outra coisa. Nós os vemos sair do que parecem esporos de fungos, mas seus corpos são como vermes ou insetos e tem cor verde como de plantas. Toda essa ambiguidade ajuda a criar mistério sobre o que seriam. Num dos capítulos iniciais, o parasita “Migi”, depois de ter lido os livros da biblioteca de Shinichi, e até uma enciclopédia inteira na internet, afirmou não ter achado coisa alguma que remetesse à sua espécie. Então, quando Shinichi pergunta se são alienígenas, Migi faz uma busca na internet pelo termo, porém não se satisfaz com os resultados. Como parasitas não têm história, cultura nem tradição própria; não podem dizer.

Inclusive, parte da trama consiste na indagação disto.

Reiko é o primeiro dos parasitas a se dar conta de que são um “beco sem saída evolutivo”, porque não conseguem se reproduzir e parecem se alimentar unicamente de uma espécie que, mesmo frágil fisicamente, é numerosa e pode ser quase tão agressiva quanto os parasitas.

Este é realmente um problema muito sério, porque a morte de cada parasita é uma perda irreparável para seu conjunto, porque eles não se reproduzem. Ao mesmo tempo, canibalizar a humanidade pode ser perigosíssimo, porque os humanos são inteligentes e dotados de um sentido fortíssimo de autopreservação. Fatalmente os seres humanos se darão conta da existência dos parasitas e organizarão alguma maneira de exterminá-los. Na prática, os parasitas são só vampiros mais fáceis de derrotar.

Diferente dos demais parasitas, que não se procupam com quase nada e se julgam superiores à humanidade, Reiko percebe que eles terão fim rapidamente. Em suas palavras, os parasitas são formas de vida muito frágeis e incompletas, apesar de sua aparência de força.

A fragilidade e a incompletude que Reiko enxerga a faz procurar aliados e tentar arrebanhar os parasitas. Seu principal objetivo é viver sem matar humanos, porque somente assim os parasitas se tornarão capazes de se esconder. No capítulo dezoito ela afirma, algo chocantemente, que matara trinta e oito pessoas, nem todas para comer. Em vez disso, havia explorado alimentar-se de coisas que parasitas normais não comiam e descobrira que a carne humana não era essencial para sua sobrevivência.

O canibalismo parece também resultar de um mal-entendido. Muitos seres unicelulares se alimentam de outros, não somente da mesma espécie. Quando assumem o corpo humano, sem saber coisa alguma da fisiologia humana ou do preparo de alimentos, a alimentação canibal parece uma escolha óbvia, analisando as capacidades que os parasitas têm.

Então toda a identidade e até mesmo a inteligência dos parasitas é essencialmente humana, ou condicionada pela humanidade. Eles podem ser matadores mais eficientes que nós, podem ser canibais; mas não são essencialmente diferente de nós: estes instintos são parte da cultura humana4 — como Urakami lá está para demonstrar. Nas palavras de Reiko Tamura, os parasitas são parte da própria essência humana. Ela os descreve com expressões como “metades de um todo indivisível”, “membros da mesma família” e “filhos da humanidade”.

A mosca aprende a voar sem que lhe tenham ensinado e aranha aprende a tecer sua teia sem que lhe tenham ensinado. Por que? Moscas e aranhas apenas seguem uma diretriz. Acredito que toda forma de vida na terra recebe algum tipo de diretriz. Então os humanos não têm uma diretriz? Quando tomei o cérebro humano eu recebi uma diretriz: “Devore esta espécie!”.

Aqui temos uma segunda diferença essencial entre os humanos e os parasitas: somos diferentes de parasitas porque não nascemos com um propósito de vida, não seguimos a nenhum tipo de instinto ou, como o chama Reiko, “diretriz”. Ao buscar viver sem comer outros humanos, o que Reiko busca é, enfim, viver em desacordo com sua diretriz. Isto quer dizer que os parasitas se “humanizam”, isto é, se aproximam da humanidade, quando negam seus instintos — o que não deixa de ser o mesmo processo pelo qual os hominídeos se humanizaram um dia.

Quando Gotō decide eliminar uma célula da Yakuza, ele o faz para testar sua força contra matadores humanos experientes. Parece-me bem claro que os parasitas, apesar de se sentirem superiores aos humanos, de fato agem instintivamente como humanos melhorados no que os humanos fazem melhor: matar. Assim como Urakami considera a violência como a característica fundadora do homem verdadeiro, os parasitas parecem focados nesse talento.

Inicialmente os parasitas matam e devoram as suas vítimas (ainda que não por inteiro), exceto, claro as pessoas que escolhem como novos hospedeiros; destas tomam os corpos. Eles parecem capazes de se alimentar somente de carne e sangue frescos. Assim, quando se lançam na política, por um partido “ecologista”, estabelecem “locais seguros de alimentação”, aonde levam aqueles que matarão para comer.

Shinichi: um herói filosófico

O tipo de personalidade “heróica” de Shinichi Izumi somente pode ser entendido no contexto da filosofia. Diferente dos heróis que a literatura pop modela a partir da mitologia, ele parece vir da reflexão filosófica. Em vez de ser um herói do tipo que “faz” ou que “luta”, ele é um herói que pensa. De fato, durante a maioria dos capítulos, vemos o diálogo entre Shinichi e Migi a respeito do que está havendo e suas possíveis implicações. Poderíamos até dizer que a história contada é mais análise que aventura, porque em diversos momentos importantes da ação Shinichi é meramente um espectador dos fatos.

Devo citar alguns momentos em que o “herói” participa de maneira passiva dos fatos ao seu redor.

  1. Capítulo 1 (“A Metamorfose”). Shinichi está deitado na cama a ouvir música quando a larva de Migi tenta penetrar em seu corpo. É por causa de dois acasos — os auriculares e um resfriado — que ele sobrevive ao ataque inicial e tem a chance de lutar.
  2. Capítulo 15 (“Algo Mau Vindo Para Cá”). Shinichi decide fugir de um parasita para não lutarem em lugar público. Durante todo o episódio, ele apenas se defende e tenta escapar.
  3. Capítulos 17 (“A Aventura do Detetive Moribundo”) e 18 (“Mais que Humano”). Durante a confrontação entre Kuramori, Tamura e os policiais, Shinichi apenas observa, ouve e — no fim — recebe o filho de Ryoko Tamura nos braços.
  4. Capítulos 19 (“A Sangue Frio”), 20 (“Crime e Castigo”) e 21 (“Sexo e o Espírito”). Depois de acompanhar o acontecido a Ryoko no parque, Shinichi é chamado a cooperar com a polícia, no papel de “consultor”, devido à sua suposta capacidade para detectar os parasitas. De fato ele não participa da ação, apenas a contempla de dentro de um furgão enquanto a tropa de choque age.
  5. Capítulos 22 (“Calma e Despertar”) e 23 (“Vida e Promessa”). Nesses capítulos Shinichi abandona a vida urbana e vai viver num vilarejo, onde se resigna a enfrentar Gotō a qualquer custo.

Todos os capítulos até o 20 tem títulos de obras literárias cujo contéudo é eminentemente filosófico:

  1. A Metamorfose, de Franz Kafka.
  2. O Diabo no Corpo, de Raymond Radiguet.
  3. O Simpósio, de Platão.
  4. Cabelo Emaranhado, de Akiko Yosano.
  5. O Estrangeiro, de Albert Camus.
  6. O Sol Também se Levanta, de Ernest Hemingway.
  7. O Fim de uma Noite Escura, de Shiga Naoya.
  8. Ponto de Congelamento, de Ayako Miura.
  9. Além do Bem e do Mal, de Friedrich Nietzsche.
  10. Que Louco Universo, de Fredric Brown.
  11. O Pássaro Azul, de Maurice Maeterlinck.
  12. Coração, de Natsume Souseki.
  13. Alô Tristeza, de Françoise Sagan.
  14. O Gene Egoísta, de Richard Dawkins.
  15. Algo Mau Vindo Para Cá, de Ray Bradbury.
  16. Família Feliz, de Lu Xun.
  17. A Aventura do Detetive Moribundo, de Arthur Conan Doyle.
  18. Mais que Humano, de Theodore Sturgeon.
  19. A Sangue Frio, de Truman Capote.
  20. Crime e Castigo, de Fiódor Dostoyevski.

Porém, quando Shinichi sai de casa, disposto ao confronto final, usa um agasalho peculiar:

As roupas de Shinichi parecem, ao longo de toda a série, trazer mensagens importantes para entender a ação, mas a maioria destas está em japonês, então não comento. Mas aqui a mensagem está em romaji. Mais que isso, a transcrição da palavra grega, então não pode ser casual que o protagonista use um agasalho contendo a inscrição “philosophia”.

Além disso, conforme uma thread do reddit, os capítulos do 21º ao 23º são intitulados segundo um interessante padrão: pares de palavras de sentidos contrastantes que são homófonas em japonês. Os três podem ser lidos como “Sei to Sei”, e essa palavra, “to”, corresponde à conjunção aditiva — esquema que parece seguir o título do 20º, último que tem título de obra literária famosa:

Além disso, esta palavra “Sei” (que pode ter trinta significados diferentes conforme o kanji empregado), aparece até no título do próprio anime: 寄生獣. Tudo leva a crer que os nomes dos cinco últimos capítulos foram decididos como uma série de trocadilhos, que aproveitam o grande número de palavras homófonas em japonês, assim como a ambiguidade de muitos kanjis.

Isto sugere que esses capítulos são mais do que o mero desfecho, eles contém algum tipo de reflexão. Algo anunciado pelo agasalho de Shinichi contendo a palavra “filosofia” em grego.

Reiko e suas motivações

Inicialmente pensamos que a curiosidade de Reiko pelos humanos é apenas a busca de meios para matar melhor, mas ela subverte isto ao determinar que um parasita poderia se consumir comida humana, eis que o sistema digestivo do corpo humano parasitado continua funcional. Tal ideia, aliás, lhe ocorrera porque Migi continuava vivo, mesmo sem tomar a cabeça de Shinichi.

Então os parasitas matam por estarem enganados a respeito de seu propósito — e o instinto assassino que os move pode ter origem na própria psicologia das pessoas que consumiram, uma vez que os dois parasitas que não consumiram cérebros (Migi e Joe) não se tornaram matadores de humanos. Talvez por isso Reiko Tenha dito, algo ironicamente, que os parasitas são “filhos da humanidade”.

Sendo bem sucedida em convencer os parasitas a deixar de matar, Reiko salvará a humanidade do extermínio mas, como ela mesma diz (e outros dizem, em outros momentos), talvez os parasitas tenham exatamente o propósito de controlar a superpopulação. Não podem, portanto, tornar-se parte da cultura humana porque, nesse caso, ajudarão os humanos a destruir o mundo mais depressa.

Então, quando tenta se redimir, ela se torna vilã, e a vítima de uma terrível dicotomia moral porque sua vilania deriva apenas de seu antagonismo com o herói — e mesmo este é incerto. Uma vilã que só é vilã porque a sociedade a designa assim. Agora Reiko se apresenta de maneira branda e tem uma solução para o problema da invasão de parasitas, mas é marcada para morrer apenas por ser uma deles. Não parece haver redenção possível para os parasitas, mesmo que busquem algo favorável aos humanos.

A consequência é a rebelião da maioria dos parasitas do grupo de Fukuyama Leste contra Reiko, que conspiram para linchá-la.

Os parasitas são — como diz Migi e como Reiko concorda, alguns capítulos depois — criaturas muito frágeis, embora pareçam ser fortes. Se separados de um corpo humano saudável, eles não podem sobreviver mais que alguns minutos e não se reproduzem.

Reiko engravida, talvez planejando ter um bebê parasita. Porém o resultado da gravidez é um bebê humano normal, sem nenhum traço genético parasita.5 Isto quer dizer que os parasitas estão condenados à extinção.

Isto quer dizer que, por mais fortes que os parasitas sejam, não têm como resistir aos esforços coordenados da humanidade para os exterminar (como fica evidente no episódio em que a polícia toma a base parasita). Reiko percebe o poder do que chama de “a mente coletiva da humanidade”; mas não é ouvida.

Certamente os parasitas não são imortais. Então, sua intervenção na história humana terá um efeito passageiro. O que não deixa de ser triste, como observa Migi, quando diz que eles não deixarão nenhuma marca duradoura sobre o mundo.

Então o que sobra de tudo é um imenso niilismo. Os parasitas são seres melancólicos, sem história nem futuro, que vivem sem rumo, em busca de um objetivo para a própria existência, mas movidos, no entanto, por um impulso violento que leva à sua destruição, o que não deixa de ser algo “humano, demasiadamente humano”. Reiko resume os parasitas a “uma espécie frágil, uma forma de vida que nem consegue sobreviver por si”. Em certo momento de seu grande monólogo do capítulo dezoito, Reiko chega a implorar a Shinichi que a humanidade não os rejeite.

Então entendemos que tudo o que Reiko tinha em mente, quando sua pesquisa a levou à conclusão de que os parasitas não precisariam comer pessoas, era o desejo de ser parte da humanidade. Algo que não chamaria a atenção porque os parasitas teriam filhos humanos quando se reproduzissem. O lado trágico disso é que os parasitas poderiam ser, no máximo, testemunhas inertes dos afetos e lutas da humanidade, condenados que estavam à extinção.6

Isto torna Reiko uma vilã trágica: todos os crimes todos que ela cometeu foram sob o império da ignorância, quando acreditava ser uma necessidade para sua existência; o conhecimento a redimiria, mas o simples fato de ser uma parasita determinava que ela seria rejeitada pelos parasitas por tentar viver como humana, enquanto os humanos não a poderiam perdoar pelo que fizera antes.

Mesmo assim, Reiko prefere morrer sem lutar, porque assim o seu cadáver preserva uma aparência humana, diferente dos parasitas mortos até então, que, para lutar, haviam abdicado da aparência humana de suas cabeças.

Conclusões

“Parasita” não nos oferece muitas respostas sobre as criaturas a que somos apresentados. Ao não dar as respostas, a série mantém o mistério necessário para que o suspense fucione.

Abaixo da camada de suspense, no entanto, percebemos rapidamente uma temática bastante madura, quase filosófica, em que humanos e parasitas parecem cada vez menos diferentes até o desfecho final da trama — onde vemos que a invasão de parasitas não terá para o planeta nenhum impacto duradouro, nenhum impacto diferente daquele que nós mesmos causamos. Não é à toa que alguns humanos simpatizem com os parasitas e os vejam como algo natural, ou até necessário ao planeta.

No fim da história somos levados a entender que o ser humano não é menos monstruoso que os parasitas. Moralmente falando, não há, como Migi diz, nenhuma diferença entre um ser inteligente que se alimenta de porcos e outro ser inteligente que devora humanos. O tipo de alimentação é essencialmente o mesmo, o desconforto vem de nós não aceitarmos que somos animais.

Então, aqueles a quem chamamos de parasitas e de monstros acabam sendo apenas manifestações um pouco mais extremas e caricatas do que nós mesmos somos.


  1. O termo soft science fiction se refere àquelas histórias em que a trama está mais focada nas interações entre personagens do que nos aspectos especulativos, como os avanços tecnológicos.↩︎

  2. Tenho pelo menos quatro artigos neste blog em que tento expressar meu desgosto pelo conceito da Jornada e por todos; autores, editores, críticos e leitores; que a consideram um elemento essencial da ficção. Se estiver interessado, leia: 1) A Fila Não Incomoda, 2) Render-se à Jornada e 3) A Defesa da Jornada do Herói Através de Falácias↩︎

  3. Uma ideia curiosamente semelhante foi defendida por Ayn Rand, que elogiou o facínora assassino William Edward Hickman usando palavras bem parecidas. Rand definiu a Hickman como um homem desprovido de qualquer sentimento por tudo aquilo que a sociedade tem como sagrado e dono de uma consciência própria. Mais que isso, identificou inata nele a verdadeira psicologia do Super-Homem nietzscheano, porque não conseguia compreender ou sentir outras pessoas. Para mais informações, leia o texto “How Ayn Rand Became a Big Admirer of a Serial Killer”, que o site https://www.alternet.org publicou em janeiro de 2015.↩︎

  4. Vale a pena citar que o mangá em que se baseia o animê foi publicado entre 1989 e 1990, época em que o Japão estava chocado com a história de Issei Sagawa, um jovem japonês que vivia na França. Ele matou, esquartejou e devorou uma colega de classe.↩︎

  5. O filho de Reiko é entregue para adoção sem que ninguém saiba quem são os seus verdadeiros pais. Como não há segunda temporada da série, não sabemos se o menino realmente cresce sem efeitos duradouros de sua relação com os parasitas, mas Reiko, que era parasita — portanto capaz de detectar um de sua espécie — planeja a sua entrega justamente porque sabe que ele é humano.↩︎

  6. Assim como Urakami pode ser uma representação de Issei Sagawa, o assassinon canibal; os parasitas; seres assexuados que assumem o gênero do corpo que parasitam, não são capazes de reproduzir e são tidos como uma ameaça à espécie humana; podem ser uma representação dos homossexuais na visão de uma sociedade preconceituosa.↩︎

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