Há uma antiga lição do mestre Sun Tzu que nos explica bem o dilema de entrar em disputas desnecessárias. Esta semana tive a oportunidade de perceber quão certo é o conselho milenar do general chinês:
Não basta fazer algo pelo simples bem de algo: certifique-se de que isso o ajude. Se é para a sua vantagem, faça um movimento para frente; se não, fique onde está.
Há lutas que não devem ser travadas por ninguém e outras que alguém deve travar, mas não devo ser eu. Ninguém tem uma procuração de Deus para sair pelo mundo a consertar todo mal feito. Só porque a internet e as redes sociais nos aproximaram de muita gente e de muitos feitos, nem tudo que navega é o meu próximo.
Um livro escrito por uma mente bicentenária
A controvérsia começou em torno da obra “A Escrava e a Fera”, de Jéssica Macedo, no qual se romanceia a história de uma africana traficada para o Brasil em 1824 e vendida a um barão do café em Minas Gerais.
Pelo pouco que eu entendo do mundo (e cada vez o entendo menos, à medida que sou ultrapassado pelas mudanças e me torno precoce fóssil em um futuro imprevisto), a ideia de tal romance é absurda devido ao tempo em que vivemos. Houve, no passado, diversas obras que cometeram os mais diversos equívocos, porém somente são equívocos aos nossos olhos, devido à mudança do mundo. Na época em que foram escritas, havia uma relação de “normalidade” em relação ao que hoje nos choca.
Basicamente isso quer dizer que não podemos culpar Bernardo Guimarães por ter escrito “A Escrava Isaura”, por mais que seu contemporâneo Castro Alves tenha sido mais evoluído e produzido “Os Escravos”. Ambos os autores viveram no século XIX e, ainda que o abolicionismo já fosse um tema bastante difundido, a escravidão ainda era uma realidade muito próxima, permitindo um grau de controvérsia que hoje em dia é indesculpável.
Ou seja: mesmo os racistas de hoje devem escrever obras diferentes das que eram escritas pelos racistas de 1860. Certas ideias que eram tomadas como a norma social hoje precisam ser defendidas, o que antes era cenário, hoje é tese. O racista de hoje está na defensiva e procura se justificar.
Por isso uma obra que toma como natural a existência da escravidão e de todos os seus horrores nos choca — e é natural em todo ser humano dotado de princípios morais que este choque aconteça.
Você pode escrever sobre tudo, sobretudo se…
O meu momento de vergonha no debate sobre esse livro aconteceu porque — devido à minha excessiva simpatia pelo movimento negro e pela minha consciência de tudo que foi preciso mudar no mundo para superarmos certas coisas feias de que as pessoas de bem não se orgulham, ou não deveriam — me exacerbei na crítica ao livro e subitamente me vi defendendo a censura prévia ou, melhor, a autocensura prévia. “Certos livros não deveriam ser escritos” — esta foi a minha tese.
Nesse ponto eu me toquei da necessidade de me retirar do debate. Ausentei-me dele, deixando minha saudação final, e me retraí a pensar.
Qualquer livro pode ser escrito. O autor não pode ser impedido de escrever aquilo que lhe dê na telha. A ideia de que certos livros deveriam ser suprimidos antes de escritos é incompatível com a liberdade de criação. Admitindo-se que isso valesse, o autor não poderia ousar e errar para aprender. Quando estamos aprendendo, inventamos muitas histórias absurdas que nunca pensamos em publicar, ou que pensamos, mas supomos que nunca serão aceitas. Essas obras de exercício cometem erros e adentram terrenos que facilmente ultrapassam o tolerável por uma sociedade sã.
No passado a liberdade de criar enfrentava três filtros: os princípios próprios do autor lhe desaconselhavam dar à lume certas crias; as editoras recusavam obras segundo os mais diversos critérios e o receio de ambos (autor e editor) fazia com que certas obras tivessem divulgação restrita quando publicadas. Isto, claro, em sociedades livres, onde não havia censura formal e nem inquisição religiosa.
Essa é uma liberdade antiga e que deve ser preservada, mas o mundo mudou.
O autor à solta em meio à grande ventania
Uma das mudanças que foi o barateamento das tecnologias de impressão a partir da invenção da impressora off-set (e em seguida as impressoras laser de alta rotação).
Isso tornou possível a existência de mais editoras, abrindo espaço para mais autores (enfraquecendo o filtro editoral de qualidade e propriedade), e até mesmo possibilitando, em uma fase mais próxima de nós, que os próprios autores se tornassem editores de sua obra, contratando gráficas para executar os serviços e vendendo depois através da internet e das redes sociais.
Outra mudança foi o surgimento dos blogs e das redes sociais, permitindo a divulgação de conteúdo até mesmo sem publicar. A figura do editor entrou em crise. Autores indispostos a aceitar o estripamento de seu texto pela mão pesada de um revisor-editor ou inconformados com uma recusa, em ambos os casos crentes em seu potencial, podem levar ao conhecimento público uma obra que, em outros tempos, mofaria numa gaveta.
Graças à internet tudo adquiriu muita velocidade. Basta que a pessoa certa se dê conta de certo conteúdo e o distribua em dois ou três canais e pronto! Certo conteúdo que passaria direto para os porões da história viralizou e chega ao conhecimento de milhões de pessoas que nem saberiam de sua existência. Algumas dessas pessoas se ofendem com esse conteúdo, algumas comentam, tudo realimenta a polêmica, polêmica atrai atenção. O instinto de manada traz multidões a atacar e defender algo imensamente irrelevante.
Qualquer autor hoje está sob risco de ser identificado como o próximo inimigo público: basta que pessoas bem relacionadas amem ou detestem aquilo que ele escreve. Eu mesmo não sei se rezo para que isso aconteça ou se temo o que vão enxergar de pecado e de erro nos porões do Letras Elétricas.
Nada disso é realmente controlável. Assim como o plágio, a viralização é um fenômeno inerente as redes sociais na internet. Quem não quer se molhar, que nem saia à praça, pois pode chover aleatoriamente. (Escuta a ventania!)
A beleza controversa de uma protagonista improvável
Aparentemente, alguém já leu e resenhou a obra polêmica. Não parece haver mais dúvida de que “A Escrava e a Fera” é um livro abominável sob muitos aspectos. Não por abordar a escravidão, talvez nem mesmo por abordar a existência de romantismos (doentios, mas o que se há de fazer?) entre escravos e senhores. O que torna essa obra abominável é o foco.
Recuso-me a crer que seja por mera inocência que o título foi escolhido, deliberadamente em alusão a um conto de fadas (“A Bela e a Fera”) que já tem os seus próprios aspectos abomináveis. Há muitos subtextos possíveis na escolha da palavra “escrava” em substituição a “bela”.
Parece-me impossível, também, que a escolha da ilustração em que a personagem é marcada a ferro tenha sido movida pela mão do acaso. Ou que o mesmo fator explique que nesta imagem, contextualizada no momento em que a personagem ainda é recém-chegada da África, seus cabelos sejam cacheados, em vez da carapinha natural dos negros originários das regiões de onde vieram os cativos recebidos pelo Brasil até 1850. Principalmente porque, na imagem da capa, é visível que o perfil da personagem tenha também um nariz arrebitado.
Estes elementos dão à obra uma dimensão de anormalidade porque implantam em personagens do século XIX aspectos estéticos de nossa época. Que o anacronismo valha para isso, mas não para atenuar certos outros aspectos é uma coisa difícil de aceitar. Em defesa de “A Escrava Isaura” se pode dizer que, por mais inverossímil que sua história seja, no contexto da trama se explica que ela era filha de um homem branco e de uma escrava mestiça cuja pele já era significativamente clara. A beleza eurocêntrica de Isaura é uma criação da miscigenação ocorrida em território brasileiro. Por isso é mais verossímil que a ideia de uma africana nativa que já chega ao Brasil dotada de aspectos físicos agradáveis ao gosto europeu. “A Escrava Isaura” é uma obra precursora do mito do Branqueamento, expresso no famoso quadro de Modesto Brocos (“A Redenção de Cã”). “A Escrava e a Fera” é uma tentativa de branqueamento do negro em retrospecto (ou, pelo menos, do negro protagonista e “bom”).
Esse é um dos muitos anacronismos presentes em uma obra que supostamente se baseou em retrospectiva histórica.
O direito à existência das obras abomináveis
Eu já defendi aqui mesmo que não devemos julgar as obras pelos autores, mas o contrário, e que não devemos suprimir os livros por causa da interpretação que lhes damos. Acredito que nenhuma das duas teses contradiz a ideia de que “A Escrava e a Fera” merece toda a infâmia de que agora padece.
Primeiro, porque não está escrito em lugar algum que o direito de escrever e publicar o que queira simultaneamente dá ao autor imunidades: contra a revolta dos que se ofendem ou contra a crítica dos que não gostam. A liberdade do leitor é equivalente, no mínimo, talvez até superior, à do autor.
Segundo, porque a crítica não se faz para impedir a criação livre, mas para dar o devido acolhimento a obras que falham em seu propósito. Sem a liberdade da crítica, o leitor não tem como saber o que há de errado em um livro, pois nem todo leitor está equipado com os conhecimentos e sensibilidades necessários a analisar uma obra.
Terceiro, porque a crítica que se faz a este livro é muito pertinente: a pergunta primordial da maioria dos criticadores desse livro é por que razão uma obra com tantos problemas (incoerências, anacronismos) tenha passado pelo crivo de uma editora e chegado ao público, apesar de seus defeitos.
A crítica que se faz a esse livro é humanizadora. No passado já foram escritos livros racistas e machistas em quantidade suficiente. Assim como no passado já morreu uma quantidade suficiente de pessoas por infecções simples. O racismo e o machismo exacerbados nessa obra são tão intoleráveis quanto a morte de uma criança pobre por cólera ou tifo. Essas coisas ainda acontecem, principalmente por causa da disparidade de desenvolvimento humano entre as regiões e entre as pessoas. Há quem tenha acesso a água potável e não sofra de tais infecções. Há quem tenha acesso a mais conhecimentos e uma melhor formação humana e não padece de tais preconceitos.
Assim como podemos, e devemos, defender a memória dos que fizeram o passado, com todos os seus defeitos e erros, não devemos tentar cometer de novo os erros que eles cometiam.
Retratar e endossar
Uma defesa frequente desse tipo de literatura é que ela retrata a realidade e que o autor não pode ter negado esse direito. Concordo com ambas as afirmações, mas não creio que o retrato seja uma desculpa suficiente.
Uma das habilidades que o autor precisa ter é a de se separar de sua obra. Nabokov escreveu um livro sobre algo monstruoso: a pedofilia. Mas “Lolita” não é um livro monstruoso, é um livro sobre um monstro (Humbert) e sua vítima (Dolores). Não é um livro para quaisquer estômagos e tampouco um que será compreendido universalmente, mas o status moral de Nabokov é muito diferente do de uma autora que “redime” o opressor barão mineiro através do casamento com uma cativa e “liberta” a africana escravizada ao torná-la a esposa. Considerando-se o papel subalterno da mulher na sociedade brasileira da época em que se passa a história, não há “libertação” completa da escrava, apenas uma mudança de papel social. Nabokov não justifica os atos de Humbert senão pela boca dele mesmo. Jéssica Macedo justifica (e finalmente perdoa) os atos do barão ao se preocupar com sua redenção, obtida às custas da escrava. Podemos dizer que “Lolita” retratou literariamente a pedofilia (e de uma forma tão competente que eu até acho que seria supérfluo tentar superá-lo), mas que “A Escrava e a Fera” vai além do retrato e entra a endossar aquilo que relata.
Os autores abomináveis por sua personalidade ou por seus atos foram capazes de produzir obras dignas de lembrança, apesar de quem eles foram. Livros abomináveis foram escritos no passado e retratam (às vezes endossam) momentos importantes da história. É imperdoável que um autor supostamente bem-intencionado produza uma obra abominável por justamente focar naquilo que hoje sabemos monstruoso.