Letras Elétricas
Textões e ficções. Tretas e caretas. Histórias e tramóias.
by J. G. Gouvêa

Gente que fugiu da escola

Publicado em: 08/12/2018

Uma tentativa incipiente de entender o fenômeno Olavo de Carvalho, o guru que é reconhecido como filósofo por uma imensa massa de pessoas que nunca leram livros de filosofia.

Uma das coisas mais preocupantes a respeito do estado atual da política nacional é a influência de Olavo de Carvalho sobre gente que tem poder de decisão, como, por exemplo, o presidente da República e alguns de seus ministros. Esta influência é mais preocupante do que a de outras pessoas, estas sabidamente nefastas, que também influenciam o governo. O que espanta e preocupa a respeito do papel que o pensador refugiado nos EUA exerce não é exatamente o fato de suas teses serem absurdas e perigosas, mas a inépcia deste para o grau de influência que possui.1

Digamos que cada país tem o Rasputin que merece.


Olavo de Carvalho reivindica para si o título de “filósofo” e é chamado de “professor” por aqueles que o seguem, embora ele mesmo não se veja como tal, mas como uma espécie de guru.

Aparentemente, não tenho alunos nem leitores: tenho seguidores, devotos, fiéis, militantes e cultores idolátricos. Todos iletrados e de baixíssimo QI. Ninguém discute as minhas idéias nem me cobra explicações. Ninguém ousa sequer fazer perguntas. Todo mundo recorta o que eu escrevo, gruda na parede, decora e recita antes de dormir para ver se ganha na loteria.

Em um ponto ele tem toda razão: a aceitação ampla de suas ideias reflete, sim, uma falta de reflexão e, mais profundo que isso, uma deficiência cognitiva motivada pela insuficiência da formação escolar. Porque Olavo de Carvalho é, em suas próprias palavras, um fugitivo do sistema escolar:

Não pretendo aqui assumir um posicionamento elitista e considerar que as opiniões de uma pessoa valem conforme os diplomas que acumulou em vida — sendo que eu mesmo não me caracterizo por ser um PhD em nenhuma área do conhecimento humano. Mas há limites até mesmo para a relativa tolerância que se deve ter com a formação daqueles a quem ouvimos — e para que os ouvimos. Olavo de Carvalho não é uma pessoa de formação incipiente que tem importantes lições práticas de vida a nos oferecer, é um fugitivo da oitava série primária que se diz filósofo.2

Você, como eu, deve conhecer muitas pessoas com formação escolar fundamental incompleta. Em sua grande maioria, são pessoas de cultura pouco relevante, cujos conhecimentos do mundo são de natureza eminentemente prática e cuja “sabedoria” se baseia no senso comum. Essas pessoas não merecem menos respeito por causa de sua baixa escolaridade, mas isso não quer dizer que devam receber um reconhecimento indevido. Os diplomas não são meros ornamentos de parede, por mais que, no Brasil, em algumas áreas, tenham sido relegados a meras formalidades. Presume-se que um diploma certifique não apenas que um indivíduo obteve aproveitamento mínimo em um curso, mas que tenha participado do curso. Este é um ponto muito significativo.

A escola não existe meramente para transferir formalidades. O professor não é um comerciante de conhecimentos e o livro didático não é meramente um calendário do acompanhamento de uma série predeterminada de tópicos. O conhecimento tem um curso, assim como os rios os têm. O curso é um processo interativo e instável, no qual os diferentes participantes diretos trocam informações, impressões e, eventualmente, pescoções. Ao longo do processo, os alunos não estão meramente absorvendo conteúdos, passivamente, mas amadurecendo enquanto pessoas e enquanto alunos mesmo.

Isso precisa ser bem enfatizado. Pessoas que nem terminaram a oitava série, como Olavo de Carvalho, não são levadas a sério quando se metem a tratar da saúde dos outros, são chamadas de “curandeiros”, não de médicos. Quando se metem a opinar de direito, são chamadas de “rábulas”, não de advogados. Quando se metem a ensinar religião, são chamadas de “pregadores”, não de teólogos. Quando se metem a consertar carros, são chamadas de “curiosos”, não de mecânicos. Quando se metem a construir casas, são chamadas de “pedreiros”, não de engenheiros civis.

Isso não quer dizer que um curandeiro não possa eventualmente curar alguém. Normalmente não, mas é possível. Isso não quer dizer que um rábula não possa conceber uma estratégia jurídica melhor que um advogado. Pode acontecer, mas ele dificilmente conseguirá transformar essa estratégia intuitiva em peças processuais eficazes, ou em uma atuação eficiente na tribuna. O pregador pode converter muita gente, mas em geral os seus ensinamentos são confusos e contraditórios, porque ele não segue uma escola de exegese. Um pedreiro pode construir uma bela casa, mas pode, também, desperdiçar material ou cometer erros de estrutura.

Esta é uma razão muito significativa pela qual os egressos de cursos supletivos precisam esforçar-se mais para entrar em uma faculdade e para acompanhar os estudos ali: por mais que o supletivo seja um curso presencial, a compressão dos estudos no tempo produz efeito diferente sobre o aluno do que teria ocorrido se os mesmos conteúdos tivessem sido estudados com mais vagar. Há inúmeras variáveis envolvidas no processo de aprendizagem, todas elas capazes de influir no aproveitamento do aluno em sua vida acadêmica. Isto inclui até mesmo elementos externos à escola, como a família, a religião, o saneamento básico, os serviços públicos aos quais tem acesso — o aluno não é um ser ideal no tempo e espaço, mas um ator e sujeito em um mundo onde ocorrem relações complexas entre as pessoas e as coisas.

A formação específica existe por uma razão. A ignorância não é uma virtude. Não ter sido nunca ensinado não lhe torna “mais puro” e nem o isenta de ser doutrinado. Significa apenas que a sua formação é incipiente e que você não teve a riqueza de uma série de experiências e debates que servem, entre outras, coisas, para que as pessoas consigam discutir suas ideias sem precisar xingar as respectivas mães ou mencionar os respectivos orifícios corporais e seus usos ortodoxos ou heterodoxos. Portanto, remover um aluno da escola, por qualquer motivo, significa negar-lhe toda uma riqueza de interações voltadas para o conhecimento e substituí-las por uma dimensão: o autodidatismo.

Exceto nos raros casos, que chegam a ser aberrações, de pessoas dotadas de uma inteligência fenomenal, empobrecer a experiência sensorial, social e cognitiva de um aluno não favorece sua maturação intelectual. Mesmo entre os gênios há os que atingem seus objetivos por causa de sua genialidade e apesar de certas limitações a que estão sujeitos. São realmente raros os que conseguem queimar etapas porque efetivamente adquiriram os conhecimentos correspondentes.

Não consta que Olavo seja um destes. Possivelmente ele tem uma capacidade cognitiva acima do normal, mas não suficientemente acima para lhe favorecer e compensar as privações resultantes de ter fugido da escola na oitava série.

O principal dos problemas disso resultantes é que a lacuna deixada pelos anos de estudos não cursados deve ser preenchida de alguma maneira. Pessoas comuns, que não têm grandes curiosidades intelectuais, podem substituir esse “buraco” formativo com preocupações imediatas,  trabalho duro, conhecimentos práticos, adoração religiosa ou atividades fúteis (como jogo, hobbies, animais de estimação). Pessoas comuns, mas dotadas de alguma curiosidade intelectual, poderão direcionar sua satisfação para atividades “intelectuais” populares, como a leitura não especializada, a apreciação musical, o cinema, etc. Porém, aqueles que tiveram negado o acesso ao estudo formal, mas ainda têm uma sede intensa de saber, recorrerão ao autodidatismo para continuar aprendendo. Aqui está Olavo de Carvalho.

Como o próprio Olavo de Carvalho concorda, o autodidatismo é perigoso, embora a parte de tornar doente mental o autodidata é uma coisa mais pessoal, que eu, apesar de autodidata, não tive de enfrentar — talvez porque meu autodidatismo se construiu sobre uma base mais sólida que uma mera oitava série.

O perigo do autodidatismo não é exatamente o de criar um louco, mas o de não criar um sábio.

A principal função do sistema escolar é nos fazer conhecer aquilo que nós não queremos saber. Assim como os pais não devem dar às crianças tudo aquilo que queiram, mas priorizar aquilo que é necessário, eventualmente deixando certos assuntos para mais tarde, a escola não deve dar à criança, de imediato, o acesso a tudo que peça, mas priorizar o necessário, em etapas, eventualmente deixando certos assuntos para depois.

A controvérsia da didática contra o ensino seriado não se encontra nesse ponto, mas na arbitrariedade de fazer todos os alunos seguirem rigorosamente o mesmo plano de ensino. Se fosse possível que cada aluno aprendesse em seu ritmo e a seu tempo, ainda assim teria de aprender a andar antes de correr, a somar antes de multiplicar, a ler e escrever antes de redigir, etc. Existe uma sequência necessária dos conhecimentos, não só dentro de uma mesma matéria, mas em relação às matérias simultaneamente estudadas. Esta sequência pode ser violada, dentro de certos limites, ou seria impossível o aproveitamento escolar dos alunos, posto que é frequente que uma matéria se adiante mais que as outras. Mas não é possível que um aluno que ainda não aprendeu sobre multiplicação em matemática entenda trigonometria, ou que um aluno que não aprendeu a história do Brasil digira a leitura de uma obra como O Guarani.

Quando você se torna um autodidata, você se torna aquela criança birrenta que os pais estragam dando tudo que pede. Você estuda aquilo que quer, no ritmo que quer, quando quer, do jeito que quer. Prioriza as matérias de que gosta, ignora as que não lhe interessam. Detém-se mais profundamente nas partes que lhe agradam, pula por cima das que pareçam chatas. Ao fim do processo você se tornou “forte” em algumas matérias e temas, mas continua “frango” em outras, como o rapaz da foto ao lado, com seus poderosos bíceps e suas canelas de saracura. A formação de um autodidata é necessariamente incompleta, porque é baseada no voluntarismo, não no método.

Isto não quer dizer que autodidatas não possam ser “fodas”. Nosso maior escritor, Machado de Assis, era um autodidata, inclusive. Há certas coisas, porém, a se considerar quanto a esses exemplos de gente autodidata que fez coisas impressionantes.

  1. Não sabemos quão melhores poderiam ter sido, caso tivessem uma formação adequada. Alguém poderia imaginar o que Machado de Assis faria com sua genialidade se tivesse sido educado como um Eça de Queirós?
  2. É sempre evidente que os autodidatas bem-sucedidos chegaram aonde chegaram por obra e graça de seu esforço e de seu talento, apesar de terem sido meramente autodidatas, não por causa disso.
  3. O grande objetivo das pessoas que reconhecidamente possuem quociente elevado de inteligência é chegara uma universidade, obter uma graduação e entrar em sucessivos estudos de mestrado e doutorado, a fim de poderem levar às últimas consequências a sua genialidade. Isto ocorre, hoje em dia, porque é universalmente aceito que o ambiente acadêmico é extremamente receptivo e estimulante para pessoas geniais cuja genialidade seja do tipo acadêmico.

Temos de concluir, então, que uma pessoa que foge da vida acadêmica, como Olavo de Carvalho fez, ou não é uma pessoa genial, e portanto não pode alegar que conseguiu alcançar a plenitude do aprendizado autonomamente, ou é de uma genialidade não acadêmica, e portanto não poderia se apresentar como filósofo.

Por isso eu digo, sem medo de consequências, que em nenhum país do mundo uma pessoa com as credenciais de Olavo de Carvalho seria levada a sério. É impossível acreditar que uma pessoa que fugiu da escola tenha sabedoria acadêmica a ensinar. Mesmo que essa pessoa tenha alguma coisa relevante a dizer, nunca, em hipótese alguma, poderia se contrapor ao conhecimento acadêmico estabelecido, sem um embasamento muito bem desenvolvido, e pretender superá-lo.

Não é impossível que uma pessoa relativamente sem formação, mas dotada de alguma capacidade, consiga constranger um diplomado. O próprio Olavo de Carvalho, em um momento de Diógenes, reduziu o filósofo Paulo Ghiraldelli à expressão mais simples, com um comentário hilariante, que só não foi mais perfeito porque, bem ao estilo seu, Olavo fez questão de perverter o posicionamento do adversário. Era absolutamente desnecessário substituir “coito” por “parto” para obter o efeito devastador que o comentário tem, mas o uso do cachimbo faz a boca torta e Olavo simplesmente não consegue evitar distorcer tudo que lê.

O problema é que a capacidade do autodidata de estar certo algumas vezes (até um relógio parado está certo duas vezes por dia) não é a mesma coisa que esperar que um autodidata saiba mais do que um especialista. Por mais que a resposta de Olavo de Carvalho, nesse dia, tenha humilhado Paulo Ghiraldelli, a verdade é que Ghiraldelli é mais culto e mais competente do que Olavo de Carvalho todos os dias.

A insuficiência e inadequação intelectual e cultural de Olavo de Carvalho não é um problema quando ele se limita a comentários derivativos sobre o que os outros escrevem, não chega a ser um problema porque ele está sobre os ombros de gigantes. Mas isso se torna intransponível quando ele se arroga a posição de filósofo e pretende ensinar.

Por mais que um sábio mereça ser zombado por seus exageros — e todo sábio deve ter a humildade de rir de si mesmo nessas horas e apertar a mão do insolente que o pegou de calças curtas — o sábio continua detentor de um conhecimento formal adquirido através de um método, continua possuidor de uma visão panorâmica de sua área de conhecimento, continua beneficiado pelo estudo também do que não lhe interessava. A conversa com Paulo Ghiraldelli, sobre qualquer assunto, deve ser muito mais interessante, qualquer dia, do que com Olavo de Carvalho em seus melhores dias.

Até os anos 1970 era uma coisa comum entre as famílias do interior a ideia de que o estudo era um desperdício. No máximo se estudava um filho em cada casa, e somente porque era sinal de status. Os demais formavam na quarta série e já estava bom. Eu mesmo fui empurrado para trabalhar o mais cedo possível. Em vez de fazer um segundo grau “científico” eu fui praticamente obrigado a fazer o “contador” e ir trabalhar em escritório (depois em banco) para “ajudar em casa”.

São, portanto, muito numerosos os brasileiros cuja vida de estudos foi cortada cedo. É natural que essa gente se sinta legitimada por ver alguém dizer na internet que literalmente fugiu da escola na oitava série. Quando essa pessoa parece ter certa cultura geral, elas se sentem vingadas. Nada é mais confortável ao ignorante do que dizer-lhe que nada havia ao fim do caminho que ele não pôde trilhar, ou não quis. Olavo, qual um profeta, vem dizer a essa gente que não passou da oitava série (ou passou muito mal), que os passos seguintes seriam por um terreno minado, que a faculdade é um antro do mal, que o conhecimento útil e necessário pode ser obtido sem intermediários.

É possível que em algum momento de sua vida Olavo de Carvalho tenha se sentido incompleto por ter saído tão cedo da escola, mas se isso aconteceu, não lhe ocorreu a humildade de voltar a sentar numa carteira para ostentar um diploma de supletivo. Então, pode ter criado em sua cabeça essa fantasia de autodidatismo, baseada na ideia de que possui talentos excepcionais.

Não duvido que ele tenha recebido, em vários momentos de sua vida, elogios por sua inteligência, por sua facilidade oratória, por sua cultura geral, mas faz parte do arsenal do sábio a capacidade de não se impressionar com elogios. Especialmente por vivermos em um país caracterizado por tanta gente ignorante e dotada de escolaridade insuficiente, um país que não lê, um país que desconfia de suas universidades. Assim como não é prova de sanidade estar perfeitamente ajustado a uma sociedade doente (Krishnamurti), não é prova de genialidade ser considerado inteligente pelos estúpidos, não é prova de cultura ser considerado um sábio pelos ignorantes.

Do mesmo modo como temos mais facilidade para reconhecer as pessoas que estão mais perto do que as que vemos a um quilômetro de distância, as inteligências superiores à nossa, porém próximas de nosso nível, são mais facilmente reconhecidas do que as que se encontram muito além. Se aos olhos dos mais simples, os mais sábios parecem tolos, não poderíamos concluir que aqueles reconhecidos como sábios pelos simples não passam de tolos que parecem sábios?


  1. O problema não é que Olavo seja um verdadeiro apedeuta (ou seja, uma pessoa que não passou pelo sistema educacional), é a maneira como seus seguidores se relacionam com este fato. Se ele próprio se dissesse apenas um “pensador”, creio que não o atacariam tanto, mas também ele não inspiraria o fascínio que exerce, porque pensar é algo que qualquer um acha que faz, mas filosofar é especial.↩︎

  2. Muitos críticos de Olavo de Carvalho, entre eles Gilberto Dimenstein e Paulo Ghiraldelli parecem ter entendido mal a confissão de Olavo e concluíram que ele teria menos que a quarta série primária. O quarto ano ginasial ao qual ele se refere compreendia a atual oitava série do ensino fundamental.↩︎

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