Nossa cultura urbana desconhece quase tudo que se refere à vida do campo e essas coisas ficam parecendo lendas de um passado distante, mesmo que tenham acontecido há tão pouco tempo, menos do que se pensa.
Bater feijão é algo que não está mais no imaginário de quase ninguém. Mas de minha infância eu ainda lembro de bater feijão como parte do rito anual da colheita, e era uma diversão melhor que a televisão.
Numa das vezes em que bateram feijão no terreiro da fazenda aconteceu um fato que ainda me ensina alguma lição de lógica — mas para que você possa entender o que foi, talvez seja necessário explicar primeiro o que é “bater feijão”.
Terminada a colheita, o feijão era trazido para o terreiro e espalhado sobre uma lona. Os adultos pegavam longas varas e batiam contra a rama, rompendo as vagens e separando os feijões. Depois da “bateção” a palha era removida e o feijão, ensacado. Não era uma técnica rigorosa, um trabalho basicamente manual. Sempre ficavam algumas vagens não estaladas ou com grãos presos. Estas eram empilhadas num canto para as crianças “brincarem” de achar os feijões que ficavam para trás. Uma brincadeira útil. Os pequeninos investigavam a maçaroca de folhas e talos em busca dos grãozinhos teimosos e das vagens resistentes. O fruto dessa busca de brincadeirinha era posto dentro de sacos e vendido junto com o resto. O pagamento das “horas de brincadeira” era sempre algum doce ou um carrinho de brinquedo. No ano em questão, tratou-se de uma torta de abacaxi e uma garrafa de refrigerante de litro, luxos naquela época.
Éramos alguns colegas de escola e filhos de empregados, todos brincando de procurar feijões — ainda que comê-los não fosse do gosto comum. Enquanto buscávamos grãos e vagens, João — um de meus amigos — mostrou-me uma vagem “diferente”:
— Veja esta vagem, Vadinho.
— O que tem, João?
— Olha como é diferente.
— Não vejo nada diferente. Para mim é uma vagem igual às outras.
— Não vê a cor? Não vê como é macia?
— Deve estar verde ainda, ou é de outro tipo de feijão.
— Não, senhor! É uma vagem mágica, do tipo que tem fadinhas dentro.
— Nunca ouvi falar de fadinhas de feijão.
— Pois elas existem e eu já vi.
— Não tem fadinhas dentro dessa vagem!
— Como você sabe? Eu ainda não abri a vagem!
— Mas se abrir vai ver que são apenas sementes de feijão que estão aí dentro.
— Mas se eu abrir eu vou matar as fadinhas porque elas ainda não estão prontas para nascer!
— Não vai matar nada porque fadinhas não existem; e se existem, não existem dentro de vagens de feijão.
— Se fadinhas existem, elas podem estar em qualquer lugar!
— Lá isso é verdade — tive de admitir.
Tentei tomar a vagem de sua mão para abrir e mostrar-lhe que havia apenas feijões nela, mas ele a protegeu ferozmente e eu nunca fui muito vigoroso, nem amigo de brigas. Deixei que ele ficasse com a vagem e com suas fadinhas. A brincadeira continuou e João não deixou nunca de me olhar receoso, com medo de que eu estalasse a vagem e matasse as fadinhas — ou talvez com medo de que eu a estalasse e ficasse provado que eram apenas feijões.
João nunca me deixou estalar aquela vagem para saber se de fato haviam fadinhas dentro mas, como cético que sou desde menino, tenho a certeza prática de que, a exemplo de todas as outras saídas do mesmo feijoal, o que ela continha eram apenas sementes de feijão, no máximo de uma outra cor.
Saber disso, porém, não deixa de ser uma coisa triste. Não fui bastante inocente para acreditar nas fadinhas do feijão, e toda criança deveria, em certa época, ter a permissão de acreditar nessas coisinhas tolas e bonitas.