Estamos em um futuro não muito distante (dez, quinze anos) em uma metrópole sul-americana qualquer. Temos um personagem, vamos chamá-lo por num nome simples, bonito e português: Téo. Nosso personagem trabalha para um serviço secreto da polícia, a que, por falta de nome melhor, chamaremos simplesmente de “P-2”. Sua atual missão é localizar e eliminar quem for o responsável por uma série de brutais assassinatos de empresários e políticos corruptíssimos, mas fedidos de tão ricos (a “P-2” não prende, ela é a “briga de gangues” que elimina os criminosos que se tornaram perigosos demais).
Inicialmente se pensou que os crimes fossem obra da Máfia, mas Téo, com suas conexões no submundo, logo descartou essa hipótese e descobriu que o criminoso era “independente”. Mais tarde descobriu que em vez de criminoso eram criminosas, duas, que se faziam de prostitutas de luxo e matavam os clientes da forma mais hedionda, sempre deixando o sangue dentro de garrafas e os bagos pendurados no lustre. Mais tarde ainda ele descobriu nem eram elas, mas “aquilo”: duas androides assassinas.
Agora que temos essa sinopse em mente, para um filme estilo Blade Runner, vamos passar a um breve intervalo linguístico. Vamos falar da língua que é falada na cidade onde se passa a história: o esperanto. A circunstância de se falar esperanto é explicada por uma dessas ditaduras de filmes de ficção científica, que têm o poder de impor goela abaixo do povo qualquer projeto porra-louca. Só mesmo um totalitarismo extremo convenceria um grande número de pessoas a falar esperanto.
Como todo mundo sabe o esperanto é uma língua artificial, bastante regular e relativamente fácil de aprender. O que nem todo mundo sabe é que as coisas nem sempre soam bem em esperanto. As dificuldades causadas por isso estão sendo um empecilho no caminho de Téo pois ele está começando a tropeçar na gramática e na pronúncia, como se alguma coisa dentro dele rejeitasse a artificialidade da prima lingvo internacia.
Em esperanto, todas as palavras pertencem a uma classe única, e se tornam substantivos, adjetivos, advérbios de modo ou verbos dependendo dos sufixos que usamos nelas. Vamos a um exemplo, a palavra viro (ser humano), se torna vira (humano), viroj (“seres humanos), virino (”ser humano fêmea” — a coisa mais parecida com “mulher” que se pode dizer em esperanto) etc. Isto não é muito elegante, pois uma “mulher” não é exatamente um homem feminino, tal como “mãe” não é um pai-fêmea (patrino).
Para piorar as coisas, o esperanto só usa um artigo (sem noção de número nem gênero) e ainda tem o “caso acusativo” (os objetos diretos devem ser marcados com o sufixo “n”). Somando tudo isso, é muito fácil formar palavras longas em esperanto — e estas nem sempre soam bem.
Outra coisa estranha do esperanto é o prefixo “bo” usado para formar palavras que indicam semelhança incompleta. Por exemplo, um bopatro é um padrasto, ou seja, algo “mais ou menos” como um pai. Certamente um androide deve ser um boviro (algo “quase” humano). Pelo menos é o raciocínio que Teó está tendo nesse momento.
Para piorar as coisas, algumas palavras de uso muito comum acabam sendo difíceis de pronunciar. Quando terminou de transcrever a gravação de um grampo telefônico, Téo teve de dizer a seu chefe Mi transskribis la konversacio. Agora ele está quebrando a língua para tentar dizer ĉerĉar porque é exatamente isso que está fazendo, procurando as criminosas, embora não o saiba dizer sem morder os lábios.
Neste exato momento nosso herói está sob a chuva, usando uma capa de plástico e um guarda chuva preto, em frente a um cassino clandestino da temida Zona Leste. À mão, oculta dentro da capa, uma pistola com balas de urânio enriquecido, doze tiros fatais que penetram até aço inoxidável. Seus informantes foram peremptórios: as duas androides assassinas estão em uma orgia com executivos pedófilos de um grupo empresarial grego e políticos nordestinos homossexuais, que se desenrola em uma sauna gay de fachada que pertence a um cartel de lavanderias paquistanesas.
O problema é que ele não sabe como são essas androides, ainda. Não tem fotos, apenas retratos falados. Se entrar na festinha não saberá dizer quem são. Mas o que realmente o deixa nervoso não é nem isso, é o tremendo mico que ele vai pagar quando entrar no inferninho e gritar com sua voz de detetive de história em quadrinhos:
— Mi ĉerĉas la bovirinojn!
“Às vezes” — pensa Téo, no bom e velho português brasileiro, dialeto mineiro — “me dá uma vontade de largar tudo isso e voltar para Barbacena…”