Fernanda recebia cada bloco de mármore como outro desafio. Havia muitos, mutilados, espalhados pela sua oficina. Com o tempo aprendera a emendar seus erros transformando grandes obras em pequenos objetos. Uma estátua fracassada virava um monte de pequenos ornamentos, utensílios, pesos de papel em formatos variados. Liberta da necessidade de produzir algo grandioso, infundia ao mármore a inocência de cachorrinhos, escaravelhos, palhacinhos. Tais minúsculas manifestações migravam de seus sonhos para suas mãos e se instalavam na pedra como garatujas de uma adolescente em um caderno macio. A única diferença era que o mármore era um caderno cruel, que exigia calos e perseverança até nestas pequenas travessuras inconsequentes.
Aquele bloco era outro. Outro infeliz pedaço arrancado do seio da terra e trazido diante de uma escultora incipiente para ser retalhado por seu cinzel inseguro até partir-se inesperadamente e causar lágrimas de espanto e remorso na aluna inepta, mas devota. Uma outra massa a por fim jazer pelas prateleiras como uma miríade de mínimas amenidades, mercadorias almejadas por meninas tolas, mas ignoradas pelos insignes e doutos instrutores, portadores de séculos acadêmicos de fórmulas, mas isentos de piedade em suas fúteis exigências. Mas como era belo! Os veios rosados percorriam a rudeza sem arremates da rocha. Desenhos sugeridos pelas cores povoavam os pensamentos de Fernanda enquanto acariciava a superfície áspera e manejava ameaçadoramente o martelo com a mão sinistra.
— O que faria de você? — perguntou, já no futuro do pretérito, plana de consciência de que fracassaria.
Ergueu com a mão direita o cinzel já meio cego e mediu alguma coisa que estava dentro da pedra. Mirou num olho que piscava através das manchas minerais. Sopesou o martelo e tocou com o cinzel frio uma greta imperceptível. Bateu pela primeira vez e sentiu o conforto das lascas agredindo dua pele. Mas parou. Chorava. Que direito tinha de seviciar daquela forma um puro mármore?
Tocou o telefone. Interrompeu sua hesitação e deixou que o martelo e o cinzel caíssem pelo chão em um estardalhaço inadequado.
— Quem é?
Alguém do outro lado da linha se esforçava para cuspir uma frase que entalara na garganta.
— Quem?…
De repente Fernanda se lembrou e quase que deixou cair também o telefone.
— Luzimar?
Era ele mesmo. Continuava tímido como nos tempos de segundo grau, continuava com sua voz rouca e fina, certamente continuava também com suas sardas, seu aparelho ortodôntico e seus cabelos despenteados.
— P-preciso falar com v-você — gaguejou ele.
— Como soube o meu número?
— P-pelo s-seu end-dereço.
— E como soube do meu endereço?
— Eu moro no m-mesmo p-prédio q-que v-você…
Fernanda quase caiu de costas ao ouvir a campainha tocar. Desligou o telefone e correu até a porta. Pelo olho mágico aparecia um homem alto e moreno, de sorriso torto e triste, mas belo. Estava trajado com um terno tão fora de moda que parecia ter sido sobra do inventário de um defunto. E tinha um botão de rosa à mão.
Talvez Fernanda não tivesse deixado Luzimar entrar se não fosse o ex-colega tolinho do segundo grau, talvez tivesse se sentido insegura por estar despenteada, interrompida que fora no meio de um estudo. Mas deixou.
Luzimar ofereceu-lhe o botão de rosa e olhou-a de um jeito divertido, talvez aliviado em sua tensão por vê-la empoeirada, desgrenhada, e com o esmalte das unhas em lamentável decadência. Ela sorriu e disse apenas “que surpresa”, “há quanto tempo”, “como você mudou” e todas estas frases absolutamente sem sentido que as pessoas trocam por puro costume quando encontram alguém que não têm visto há algum tempo.
— Mas a que devo a lembrança? — teve de ousar perguntar depois que o estoque de “nada a dizer” terminou.
— Eu a tenho ouvido bater. A princípio não sabia que era você, pois esse prédio é tão grande e esse seu apartamento de subsolo fica tão isolado. Tão isolado que eu nem sabia que havia apartamentos no subsolo.
A fala de Luzimar havia se firmado. Ele continuava rouco, mas conseguira trazer o tom de voz para dentro da faixa de frequência normalmente associada ao sexo masculino. Pronunciava as palavras com uma formalidade dolorosa, como se cada uma delas tivesse sido ensaiada por semanas — e realmente Fernanda imaginava que isso devia ter acontecido.
— Eu o incomodei?
— Não porque as batidas soavam distantes. Eu mesmo só as ouvia quando encostava a cabeça nesta pilastra.
Uma das gigantescas pilastras de concreto e ferro que sustentavam o paquidérmico espigão formava um lado de uma das paredes da oficina de Fernanda.
— Quando me mudei, há seis meses, pus a cabeceira de minha cama junto a esta pilastra. Logo na primeira noite eu batidas distantes, como alguém brincando com os dentes de um pente. Depois as batidas ficaram mais nítidas, como alguém tocando uma celesta fora de ritmo.
— O que é uma celesta?
— Ora, um daqueles pianinhos que tem barras de ferro em vez de cordas.
— E depois?
— Comecei a procurar saber do que se tratava. Perguntei a muita gente. Ninguém soube me dizer.
— Não sei se você sabe, mas eu fiz questão de isolar acusticamente esse apartamento para evitar problemas com os vizinhos. Todas as minhas portas têm batentes de cortiça, inclusive no rés-do-chão. Todas as minhas paredes receberam uma camada de isopor debaixo do reboco e todas as janelas têm caixilhos exatos e, como você pode ver, persianas de madeira com contatos de cortiça também.
Ao falar isso Fernanda começou a tremer de medo. Quando fora a última vez que ousara trazer um homem ao apartamento? Tentou lembrar e não conseguiu. Nunca. Sempre fizera questão de ir a outros lugares, mas nunca trazia ninguém ao seu esconderijo subterrâneo. Por que? Instintivamente ela temia que seu lar hermético impedisse que alguém ouvisse algum grito de socorro se alguma coisa desse errado. E Fernanda estava por demais calejada com coisas que dão errado. Mais do que blocos de mármore, os homens também sempre davam errado e em vez da Grande Obra de uma família eles a deixavam com miniaturas de felicidade em forma de fotos e saudades, quando não a abandonavam nua e só, com gelo na alma e na pele, hematomas.
— E como você me descobriu aqui? E por que veio até aqui?
— Uma dia, antes mesmo de saber que você era “o espírito batedor”, eu a vi entrar. Reconheci imediatamente a Fernanda que estudara comigo no Colégio do Carmo. Você, de certa forma, me fez esquecer o poltergeist do prédio e eu passei a pensar somente em maneiras de me aproximar de você.
Fernanda começou a se sentir meio lisonjeada e meio apreensiva. Lembrava de Luzimar como um rapazola pobre e recalcado, que ia à aula com sapatos formais, calças impecavelmente vincadas, camisas imaculadamente brancas. Ele escrevia em cadernos baratos, mas que jamais conheceram um vinco, que jamais perderam uma folha para fazer um avião de papel ou para um rabisco. Escrevia com canetas da pior qualidade, mas que em suas mãos duravam dolorosamente até o fim, sem uma mordida na tampa. Sentia sua presença como a de um metódico psicopata.
— E como me descobriu, afinal! — perguntou, sofregamente.
— Pela lista telefônica.
Fernanda desviou o olhar para a mesinha de canto, na qual estava o volume desajeitado do catálogo. Sim, ela figurava na lista.
— Seu nome estava lá, “Fernanda R Ramos”. Residente no Apartamento R-21 do subsolo.
— Então você me ligou.
— Sim. Eu estava muito nervoso, porque não sabia como você reagiria, depois de tantos anos, depois de tudo.
Fernanda se lembrava, claro. De como humilhara o pobre Luzimar lendo em voz alta para a turma os versos tortos com que ele, coitado, tentara conquistá-la.
— Mas o que você quer de mim?
— Um trabalho. Quando eu descobri que você era escultora, resolvi convidá-la a fazer a capa de meu livro.
— Que idéia! Como uma escultora pode fazer a capa de um livro?
— Eu sou fotógrafo amador. Penso em fotografar uma escultura sua e usar a imagem como capa de meu novo livro.
— Não seria melhor encomendar a um desenhista?
— Por mais talentoso que seja um desenhista, há certas sutilezas tridimensionais de luz e sombra que somente um objeto real, iluminado por uma luz real, consegue ter. Por isso eu preferiria que você me permitisse fotografar uma escultura sua e pôr na capa de meu livro, com o devido crédito, é claro. Quanto custaria isso?
Fernanda sentiu uma vertigem. Olhou de alto a baixo o corpo sempre esguio do Luzimar e lamentou por não ter mais talento. Lamentou estragar blocos de mármore que, no fim, resultavam em quinquilharias para vender na feira hippie em vez de em novas obras primas para as ilhas de cultura no obscuro oceano de ignorância que circunda o mundo.
— Não tenho nenhuma obra grande, no momento — admitiu, envergonhada.
Luzimar não pareceu se abalar.
— Mostre-me então uma de suas pequenas obras primas. Ser pequena até facilitará o jogo de luzes coloridas que pretendo usar para ressaltar as sombras.
E dizendo isso, fez sair do bolso uma câmera digital e começou a inquirir com ela a personalidade do montão de artesanato apertado nas prateleiras.
— Não!
Fernanda se interpôs inutilmente entre a lente e as estatuetas e utensílios, como uma mulher nua que precariamente tapa sua vergonha com as mãos.
— Por que não? — impiamente ele perguntou.
— Não, Luzimar. Eu não sou uma artista, ainda. Eu não quero aparecer para o mundo com uma “coisa” destas.
E chorando, empurrou a prateleira que caiu ruidosamente sobre o bloco, fazendo espalharem-se pelo chão sapos, cachorrinhos, porta-jóias, fadinhas e duendes e toda espécie de coisa que as pessoas compram para enfeiar suas residências.
O bloco de mármore, esse, não sentiu o golpe. Ele é do tipo de coisa que só se doma em pequenas agressões cotidianas, passa ileso pelas grandes tragédias. Luzimar contemplou, patético, a cena toda. Fernanda se sentou no chão, com uma perna esticada e outra encolhida, e cobriu o rosto com as mãos. Ouviu então um ruído ríspido e uma luz amarela apareceu no ambiente. Abriu os olhos, mas a porta já se fechava.
Levantou-se, tão rápido quanto pôde, e descalça mesmo saiu pelo corredor na tentativa de alcançar o brutal, impiedoso e frio Luzimar, que levava no ventre maldito de sua máquina fotográfica a cena lamentável de sua vergonha. Mas ele já dobrava a esquina e tomava a escada que levava ao térreo e quando lá chegou ele já se mesclava à multidão de cabeças pretas que desciam e subiam, abrindo caminho a cotoveladas, pela ampla rua de pedestres. Retornou, arrasada, e se trancou no apartamento. Tomou o que supunha ser uma overdose de barbitúricos e foi dormir, sem banho e sem esperanças.
Acordou no dia seguinte, já pela uma da tarde. Só dava para saber a hora por causa do relógio elétrico, visto que as persianas herméticas estavam cuidadosamente cerradas. Saiu da cama como uma defunta abandonando o ataúde, a força lhe faltava.
Chegou a sala e contemplou na penumbra o mostrengo de mármore aboletado ali, testemunha de seu fracasso. Um envelope pardo havia sido introduzido através do complicado mecanismo isolado de recepção de correspondência que instalara ao lado da porta. Abriu-o quase com medo, mas profundamente com raiva. Imaginando o que haveria dentro.
Era inegável que a câmara de Luzimar era de excelente qualidade. O fortíssimo flash iluminara adequadamente o ambiente e a cena ali restara reproduzida com a precisão impossível que só existe nos piores pesadelos. Lá jazia ela, descomposta, entre um mar de inúteis adereços de mármore e um monólito impiedoso e virgem.
Ficou a contemplar aquela foto por quase meia hora. Cada detalhe novo que nela percebia era uma gota de sangue que caía do cadáver enforcado de sua auto-estima. Pensou na mesada que ainda recebia do rico pai ausente: por quanto tempo ainda? Teve vontade de morrer, mas principalmente de ter uma outra vida.
Num momento raro de vontade vencendo a inércia, levantou-se de onde estava, calçou apenas um sapato velho e atravessou a rua até a livraria para comprar os livros com a matéria de um concurso de que lhe haviam falado na semana anterior.
Resolveu dedicar-se a isso. Nunca fora afeita a afazeres domésticos, não se imaginava dona de casa e nem herdeira, pelo menos não se via mais assim. Estudou e conseguiu um bom emprego em uma multinacional. No dia em que recebeu seu primeiro salário rasgou o cheque da mesada e depois o emoldurou, como um símbolo. Ao lado da fotografia recebida de Luzimar. Mas como doía ter abandonado tanto.
Nunca ouviu falar de nenhum livro dele. Nunca viu a foto em capa alguma, ou em coisa alguma. Mas a chaga daquele momento não cicatrizava. Era como viver com a perspectiva de ser destruído pela humilhação a qualquer instante. O tipo de sentimento que só pode resultar… em poesia.