As vozes me dizem que você está mentindo, mas eu sei que é mentira delas. Elas estão me perseguindo. Faz uma semana que elas me levaram a fugir de casa, e desde então eu quase não durmo, sonhando com coisas vermelhas e brilho duro.
Havia um palor esquisito na face de Helena quando a vi da última vez, estava quieta e nossa relação definitivamente esfriara. Não haviam adiantado as rosas e nem o diamante. Depois de três dias sem mais nos falarmos não consegui suportar mais, comecei a ficar deprimido e irado, começaram as vozes.
Primeiro ao telefone, perguntando coisas que não sabia responder. Depois na TV, mostrando fotos borradas e homens uniformizados, armados, ameaçadores, informados. Por fim ouvi-as batendo à porta, me falando como gritos dentro dos tímpanos, fazendo doer a minha cabeça, me forçando a morder a língua.
Aguentei o quanto pude. Eu amava demais aos meus livros, discos, roupas e ferramentário. Não conseguia me desvencilhar de tudo isso, de meu passado material encerrado naquela casa onde morreram os meus pais. Mas por fim as vozes me fizeram entender que a casa não seria mais a minha casa, Helena já não era a minha Helena e os vizinhos tinham olhos ferozmente inquisitores, de quem desconfiava.
Por isso deixei minha casa. Terei saudades de Saramago, de Freud, de Dostoiévski e de Artaud. Terei saudades de Mason, Gilmour, Waters e Wright. Levarei na mente as notas de Hendrix, Clapton, Schenker e Blackmore. Levarei nos olhos algumas lágrimas, testemunhas da dor da perda de Helena.
Trouxe também este punhal, não sei porque. Algo nele me lembra alguma coisa que perdi. Talvez algo relacionado ao que as vozes dizem. Mas ultimamente sei que as vozes têm mentido. Especialmente esta, de mulher, endurecida, que repete, em refrão intenso, que eu fique longe, que eu não me aproxime.
Então me afasto. Cada passo me leva para mais longe, mas a voz parece que nunca está satisfeita. Me quer mais longe, me implora mais distância. Tenho tanta sinceridade em minha dor que irei até o fim do mundo.