Quando comecei a comprar meus primeiros CDs, em 1995, ainda eram quase sempre versões importadas, geralmente dos Estados Unidos ou da Alemanha. Havia uma mensagem impressa neles, ao final de uma breve seqüência de instruções para cuidado e limpeza que, afinal, não eram mais do que recomendações de bom-senso: “se você seguir estas instruções, o CD lhe proporcionará uma vida inteira de prazer auditivo”1
Certamente esta promessa era reconfortante. Eu tinha meus vinte e poucos anos e imaginava que viveria, no mínimo, mais uns sessenta ou setenta. A perspectiva de conservar comigo os meus discos até o fim — e talvez até legá-los a meus descendentes — era algo que imaginava muito vivamente. Por isso não hesitei em investir milhares de reais em discos. Considerando todos os que ainda tenho e os que cheguei a ter, mas vendi por não ter gostado, devo ter comprado em vida quase novecentos discos. A preços corrigidos para valores atuais, isto quer dizer que comprei, facilmente, mais de doze mil reais em música.
Este investimento me proporcionou, de fato, um enorme prazer auditivo. Um rápido cálculo me diz que os meus CDs contêm nada menos do que vinte e quatro mil minutos de música, ou quatrocentas horas. Considerando que ouvisse uma média de uma hora e meia por dia (o equivalente a um álbum duplo ou a dois álbuns), eu levaria 267 dias para ouvir toda a minha coleção uma única vez. Mas como eu não ouviria durante as vinte a quatro horas de cada dia, posso afirmar, sem sombra de dúvida, que os meus CDs equivalem a mais de um ano do prometido prazer.
Levando mais adiante o cálculo, considerei que houve certos álbuns que eu certamente ouvi mais de uma vez. É impossível ouvir uma vez só certas pérolas, como The Dark Side of the Moon (Pink Floyd), Trespass (Genesis), Argus (Wishbone Ash), Bad Company (Bad Company), History (America), Harbour of Tears (Camel), In Rock (Deep Purple), Revoluções por Minuto (RPM), Houses of the Holy (Led Zeppelin), Molten Gold (Free), Power and the Passion (Eloy) ou Nightingales and Bombers (Manfred Mann’s Earth Band). Desta forma, não é difícil imaginar que foram, na verdade, dois anos em vez de um.
E por fim, não comprei os discos para ouvi-los uma única vez, ou mesmo para ouvi-los todos repetindo alguns. A conclusão a que cheguei foi a de certamente não conseguiria, mesmo que tentasse, enjoar da música neles gravada, pois quando tivesse acabado de ouvir o último já teria quase esquecido do primeiro. E nem falemos dos que continuo comprando de vez em quando.
A conseqüência disso é que rapidamente percebi que possuo mais discos do que consigo ouvir em uma vida inteira (e eu nem estou considerando os discos que peguei emprestados ou as músicas que ouvi efemeramente na Internet). Da mesma forma, hoje percebi que há certos discos que possuo há anos e que nunca ouvi, tal como um obscuro álbum de rock progressivo inglês que chegou às minhas mãos sei lá como, talvez como parte de uma barganha…
Eu poderia estar feliz com isso, imaginando que jamais me fartarei de música enquanto estiver vivo. Mas estou, em vez disso, deprimido por duas razões que apavoram meu senso musical. A primeira é que o CD é um gênero em extinção: dentro de poucos anos já não será possível comprar discos em formato tangível e o antigo prazer de folhear encartes com letras, ler fichas técnicas e contemplar fotos terá desaparecido, inclusive antes que tenha tido dinheiro e tempo para adquirir todos os discos que gostaria de possuir — e há tantos bons discos no mundo que eu ainda não ouvi. A segunda razão é que a promessa feita pelos fabricantes é uma mentira.
Não, o CD não proporciona, por mais cuidado que tenhamos, “uma vida inteira” de puro prazer auditivo. A menos que a vida a que se referem seja a de um cão doméstico ou de um hamster. O primeiro CD que eu adquiri fora fabricado em 1990, no Canadá. Sim, ele tinha um “Made in Canada” estampado. Em 2006, apenas dezesseis anos depois de feito, começou a se desfazer. O plástico esfarelava, o selo descascava e a gravação se perdeu. Tive de readquiri-lo, em uma versão nacional inferior (com capa de péssima qualidade gráfica, como é o compromisso jurado de nossas gravadoras) para poder continuar ouvindo ao épico “2112”, do Rush.
Eu não submetera o disco a nenhuma intempérie a não ser alguns invernos em uma casa fria. Eu jamais tocara com os dedos a face gravada. Eu jamais o lavara com outra coisa que não água pura e detergente neutro e jamais o secara com outra coisa que não lenços de papel suavíssimos.2 E mesmo assim o plástico começara a apodrecer.
Agora, em 2009, percebo que há outros discos com sinais do mesmo mal. Estão sob a mesma ameaça a minha coleção completa de Deep Purple e minha série quase inteira do Wishbone Ash — entre outros. Não é verdade, os CDs não duram uma vida inteira, tal como nem todos nós duramos uma vida inteira.
Melancolicamente os transformo em arquivos digitais, que nunca têm o calor do original. E melancolicamente espero por esse estranho e imaterial futuro no qual não possuiremos nada fisicamente, para tocar, cheirar e sentir, mas apenas virtualmente, limitadamente. Mas enquanto isso me pergunto: sou eu que estou chegando ao fim da vida, ou foi a promessa do fabricante dos CDs que furou?