Odeio terminais rodoviários, o cheiro de gente e de óleo diesel derramado, os banheiros sem qualquer traço de personalidade, as pessoas exclusivamente preocupadas em retornarem ou irem, andando de um lado para outro com suas malas. Detesto ônibus, trens e aviões. Detesto estações e aeroportos. Custa-me pôr em movimento a minha vida, ter de retirar meus pés do chão. Tornei-me meio árvore, tanto tempo estando nesta mesma cidade e nesta rua mesma.
Quando escuto os veículos que passam levando gente atrás de seus destinos, lembro-me dos vagões de Auschwitz, dos caminhões de gado que chegam aos abatedouros. Às vezes eu mesmo me sinto uma carcaça ainda não abatida.
Quando me vejo forçado a viajar, bate um desconforto imediato e extremo logo que compro a passagem. Dispara-me o coração, revolve-se-me o estômago e os meus olhos giram como se quisessem desparafusar-se e cair. Espremo-me no assento, rendo-me ao desconforto e deixo-me ser jogado a bombordo e a estibordo pelos movimentos do veículo que se esgueira pelas curvas da estrada, titânico e agressor. Desce um frio pela minha nuca e se me aquece o rosto quando a paisagem atemorizante desfila pela janela exígua e os outros passageiros se distraem, sem perceber que, vertiginosamente, passamos por paisagens sempre outras; o que causaria náusea, mas ninguém está ciente da velocidade e suas más intenções.
Agora tenho de viajar semanalmente, como uma forma de tentar ganhar a minha vida. Cada vez que me assento neste veículo perigoso e instável, que agora é inacreditavelmente meu, para tentar dirigi-lo até o destino, o mal me envolve em seus ternos braços e em seu beijo flácido me perco de minha consciência, sendo assim capaz de atravessar o deserto cheio de escorpiões sem medo e portador da mesma ira e habilidade que os outros. Adquiri a agressividade normal dos condutores e, anestesiado, percorro as estradas à caça de meu destino.
A paisagem nestas montanhas é triste. Ao longe se vê a marca das ações humanas: estradas que rasgam sangue nas encostas, casas e aglomerações de casas que brotam do chão como ossos de fraturas expostas, erosões que são como cadáveres decompondo-se. Longe se vê alguma mácula de natureza onde, no entanto, canário algum ainda pia.
Triste terra essa que tenta reter a riqueza que estes vermes ambicionam: rasgam-lhe a frágil pele, arrancam-lhe a morna carne até trazerem à tona as migalhas com que erguem suas colônias. E deixam atrás de si o esqueleto das serras, nu contra o céu, abismos com poças de água ao fundo. Tristes encostas de onde desce lama quando chove para assorear os rios. Triste terra a que produz riqueza: cedo varrem-lhe da face os animais e as flores e deixam-na sem agasalho e sem frescor, rendida às cidades e às fezes e aos veículos que a percorrem levando e trazendo os males que alimentam os parasitas…
Vivendo aqui as pessoas parecem acostumar-se a morrer. Todos os dias se faz presente alguma morte. As montanhas parecem ter adquirido a normalidade de permanecerem, apesar do sangue que as contamina. A estrada aqui é um rosário de práticas espúrias que determinam estas manchas de petróleo e de sangue. Recordações de erros que levaram vidas: as trevas estão ganhando terreno enquanto o homem se instala e viceja. Cada vez que passo por aqui, sinto-me um intruso em um nevoeiro de dores que se cristaliza em cada gota de orvalho. Vidros esfarinhados, cacos de carros e marcas de ferro nos galhos das árvores. Em relâmpagos revejo braços que acenaram pelo socorro inexistente no breve segundo que antecedeu a morte. Corpos que vicejaram e se fanaram.
E o ônibus passa lentamente, como que fazendo continência às vítimas, e expondo-nos à dor de estarmos vivos neste mundo em que morreremos.