Sejamos sinceros, para nós já não há salvação. Banimos Deus, a razão foi o nosso Detefon. Agora estamos sozinhos em um mundo sem espíritos, mas ainda cheio de gente que precisa deles. Tocam cornetas, ligam alto-falantes, berram a plenos pulmões. O som que vem pode ser o mero zumbido tribal e arquetípico que tenta acordar Deus de seu sono, pode ser a estridência de uma juventude que se revira do avesso na louca ânsia de aparecer numa multidão cada vez mais inumerável e uniforme, ou pode ser somente o grito sem esperança de quem não tem passagens para a Copa e nem dinheiro para armar seu circo. Talvez Deus não esteja morto, mas apenas dormindo, como dorme a nossa razão diante de escolhas tão estranhas.
Escolhemos entrar no mar até além do imaginável e extrair de lá o ouro negro, do qual fazemos cornetas e alto-falantes para tentar acordar a Deus; mas também veículos com que um dia percorremos o mundo tentando encontrá-lo em tribos antigas ou mosteiros asiáticos, infrutiferamente. Do ouro negro se faz a diferença entre a roça e o urbano, entre o mineral e o humano. Do ouro negro se faz a ponte entre as culturas, que transporta ganeses para a Alemanha e japoneses para o Brasil, que leva congoleses a serem cidadãos belgas e permite aos russos imperar por dois terços da circunferência da terra. Escolhemos isso, a todo custo, ganhamos dinheiro com que subornamos os que tinham medo, com que compramos os que exigiam sua parte.
E enquanto fizemos isso, erguemos barricadas internacionais de nosso sucesso: competições, linhas aéreas, indústrias em um lugar que produzem componentes para outras a milhares de quilômetros.
Então um dia rompe-se a veia da terra em um acidente que nem era imprevisto. Por quanto tempo é possível ignorar que há tempestades no mar? Que há vida nas florestas? Que temos necessidade de identidade? Jorra o sangue negro nas profundezas, ele nos suja e temos medo, mas ele mata a quem sangra, mais do que nos pune.
Jorra o sangue negro da terra, tal como o sangue dos negros jorrou durante séculos: sem que ninguém se preocupasse. Como ainda jorra o sangue da América, la nuestra, de azúcar, cobre y café, como jorra ainda o sangue da África.
O esporte, a nova escravidão.