Letras Elétricas
Textões e ficções sem compromisso
by J. G. Gouvêa Atualizado em 2021-05-05

Como Consertar uma Monografia?

Publicado em: 08/09/2010

Houve uma época em minha vida em que eu fazia monografias e traduções por encomenda, tempos negros nos quais eu estava desempregado e tentava ganhar dinheiro de toda forma. A parte de traduzir eu fazia sem problemas e sem crises existenciais, mas a parte do «fazer» monografias me revoltava profundamente, pois eu estava ajudando a dar diploma para pessoas que, de fato, não tinham competência; enquanto eu mesmo, por não ter dinheiro para pagar as pós-graduações e mestrados que aquelas pessoas compravam, ficava cada vez mais em desvantagem no mercado, reduzido à minha simples graduação em História.

Um dia recebi uma encomenda de traduzir uma monografia pronta. Causou-me certo desconforto que a tradução, no caso, fosse do português para o inglês e que o responsável pela encomenda fosse um mestrando em letras anglo-americanas. O mínimo que se espera de alguém que detenha um mestrado em determinada língua é que não precise recorrer a um serviço de tradução, em hipótese alguma. Mesmo assim aceitei a empreitada e pus-me a traduzir e formatar a monografia, conformado em mais uma vez ajudar a habilitar-se no mercado alguém que tinha mais dinheiro do que eu, mesmo não tendo a mesma competência.

Então, quando já estava na fase final de formatação, recebi uma mensagem de quem fizera a encomenda. O teor da mensagem é tão surreal que eu preciso transcrever:

Em Quinta 17 Agosto XXXX 13:42, você escreveu:

José Geraldo.

Ao ler atentamente o trabalho detectei que o mesmo foi apenas copiado (plagiado) seria preciso que você fizesse algumas alterações para que isto não seja verificado. Confira nos sites tal fato.

Aguardo resposta.

Fiquei boquiaberto. Não apenas a monografia em questão havia sido copiada, praticamente verbatim, de um site da Internet. Não, não era só isso. O pedido que o mestrando me fazia era que eu «fizesse algumas alterações». Acreditava ele (e eu suponho que ele tinha razão) que bastariam mudanças cosméticas no texto para que ele deixasse de ser identificado como plágio (certas faculdades estão definitivamente desesperadas para por logo o diploma na mão do aluno).

Fui conferir a origem dos textos. Uma rápida pesquisa por frases inteiras do original em português usando o Google me revelou a origem, o saite de Ricardo Schütz. Respondi ao meu «cliente»:

Oi ***, preparado para ler? :-)

Putz!. Se eu tivesse percebido que havia textos do Ricardo Schütz teria ido no site e copiado as versões em inglês que ele disponibiliza… ;-)

Bem ***, vamos por partes.

Artigo da Unisul Online — Li este artigo e sinceramente não achei que ela tenha copiado nada de lá. Aliás, é um ótimo artigo. Gostei muito. Obrigado pelo link.

— Capítulo 1

— Capítulo 2

— Capítulo 3

Aqui o problema é mais sério. Não dá para tapar o sol com a peneira (embora goste muito da **): ela copiou, quase na íntegra e ipsis litteris três artigos do Ricardo. Quanto ao último capítulo, ele me parece original, pelo menos à primeira vista.

Meu cliente não ficou nada tranquilizado com a minha resposta. Ele me respondeu entre desespero e prepotência (esta última uma «qualidade» nunca ausente em quem usa o dinheiro para abrir as portas que a competência não destranca):

Eu preciso desta monografia pronta e em condições de entregar até o dia 15 de setembro, de qualquer maneira. Estou disposto a pagar por isso, embora não vá pagar de novo o que eu já paguei à *****.

Faça as modificações que quiser, só me garanta que a monografia passe pela banca. Só não mexa muito profundamente, porque o texto que aí está já foi aprovado pela banca preliminar, em português.

O que se pode fazer, nesse caso? O cara me pedia para fazer «algumas alterações» para que o o professor não percebesse. Seria isso possível? Talvez, dependendo do tipo de professor que estava orientando o curso. Respondi-lhe:

Fazer «algumas alterações» é possível, mas se a monografia vai passar pela banca ou não, aí já depende do tipo de professor que está orientando seu curso.

Se for um professor do tipo “tô nem aí” (esses são maioria nas faculdades do tipo paga-passa) ele vai aceitar seu trabalho até se ele tiver um “Copyright” de resto em algum lugar. Se for um professor sério você está em maus lençóis. De qualquer forma, não sou eu que devo assumir responsabilidade pela sua situação.

Supõe-se que um professor deva ler cada monografia para atribuir a nota. Ao fazer isso ele fará associações entre o texto que tem diante de si e as coisas que já leu na vida. Como o site do Ricardo Schütz é conhecido (poucos professores de inglês que não o conhecem) as chances são grandes que ele perceba, por mais que eu faça pequenas alterações, porque as ideias essenciais do Prof. Schütz estarão lá — e ele é justamente reconhecido por defendê-las. Ajudaria se houvesse abundantes citações dele, mas não há.

Eu posso mudar títulos de seções (já o fiz), mas não posso evitar que as seções continuem contendo o mesmo material. Posso reescrever o texto, mas não posso impedir que a sequência de ideias continue transparecendo. Isso porque a originalidade de um texto não é só nas palavras. O plágio literal é fácil de ser notado, mas o plágio disfarçado não é à prova de detecção — caso o avaliador conheça o texto plagiado.

Um outro problema que ocorre frequentemente é o professor rejeitar o trabalho porque percebe que o aluno não o poderia ter feito. Aconteceu com umas monografias que fiz para umas mulheres do Espírito Santo e mesmo eu tendo refeito duas vezes o professor ainda não aceitava. Elas tiveram de pagar de novo (ou de fazer).

Talvez a pior parte desse negócio de monografias seja isso. É muito complicado você deixar de pagar a quem se esforçou para fazer um trabalho para você simplesmente porque o professor não aceitou com base em critério tão subjetivo — mas isto está ocorrendo.

Não posso, portanto, prometer consertar para você o seu trabalho de forma que o professor se satisfaça. Já traduzi o texto. Mudei os títulos da maioria das seções. Mudei a ordem de algumas. Acrescentei tabelas, ilustrações, diagramas etc. Acrescentei textos de exemplos. Agora o seu trabalho está pronto para ser impresso. Garanto que você se surpreenderá com a qualidade gráfica do exemplar que receberá. Mas paro por aqui. Reconheço humildemente que não dá para ir além disso. Sua monografia é o que é. Para que eu pudesse torná-la melhor seria preciso refazer desde o início.

Dias depois recebi outra mensagem do mesmo cara. Agradecia meu esforço, notava que de fato tinha ficado muito boa (eu lhe mandara em PDF) e que ele não notava nela nada que pusesse em risco o seu mestrado. Porém, como ele mesmo sabia que era uma monografia plagiada, não se sentia ainda confortável com a ideia, e me propôs que eu lhe fizesse uma outra, para ficar de «plano B» em caso de rejeição daquela. Segundo ele, eu teria «trinta dias» para fazer a monografia (tempo de sobra, aparentemente, em sua opinião) e ele me pagaria a metade do que pagara à fazedora da primeira monografia. Respondi-lhe:

Uma monografia não é uma composição grande, com um índice no começo e uma bibliografia no fim. Deveria ser o relatório organizado das conclusões obtidas durante e após a execução de um projeto de pesquisa:

Problematização → Projeto → Pesquisa → Análise de Dados → Monografia.

Normalmente as pessoas começam do fim para o princípio. Ou fazem somente a monografia ou fazem uma monografia e, quando exigido, fazem um projeto de pesquisa que a legitime. Sua monografia padece disso: como ela não resulta de um projeto de pesquisa, ela não tem conclusões originais a apresentar. Ela não tem ideias, embora possa ter um resumo.

Eu entendo sua situação — e sinceramente não a invejo — mas não posso fazer mágica. Uma monografia é um trabalho que demanda tempo. Geralmente os cursos de pós-graduação concedem de três a seis meses de prazo porque se supõe que esse seja o prazo ideal para a consecução das etapas acima. Não é. Monografias de qualidade geralmente são o resultado de longa pesquisa. Três a seis meses pode ser quando você já tem a “tarimba” e possui recursos para implementar o projeto rapidamente, mas não é o caso de um trabalho que pretende ser tese de mestrado.

Uma das razões pelas quais eu deixei de fazer monografias «profissionalmente» foi justamente essa. Fazer uma boa monografia demanda um trabalho enorme, cujo custo real (em termos de horas trabalhadas, energia elétrica, papel e tinta e desgaste da visão) ninguém está disposto a pagar.

Confesso que nunca entendi como algumas pessoas conseguem produzir monografias em “escala industrial” para entregar dentro de prazos exíguos (agora acho que já entendo melhor). Eu me matava fazendo pesquisas, gastava até três meses para fazer uma mono decente, cobrava 300,00 as pessoas achavam caro e havia até vezes em que a mono era rejeitada e eu tinha de fazer de novo. Resumo: nunca ganhei dinheiro com isso.

Continuei trabalhando ocasionalmente com traduções porque esse é um trabalho que demanda menos esforço de pesquisa e pode ser cobrado de forma mais palpável: você vê quantas páginas, multiplica pelo preço de página (no meu caso R$ 5,00) e pronto. Ninguém rejeita uma tradução a menos que ela não reproduza o texto original com pelo menos razoável fidelidade.

O que posso fazer não é muito mais do que o que já fiz. Acredite: eu já fiz pela sua monografia mais do que você pediu, não me limitei a traduzir. Ainda vou fazer adaptações, mas não entenda isso como uma aceitação da tarefa de impedir que o plágio não seja aparente. O plágio está lá para quem for capaz de identificá-lo. Basta conhecer o trabalho do Ricardo Schütz para ligar uma coisa a outra.

Vamos cruzar os dedos e esperar que o seu professor aceite a monografia do jeito que está. Embora isso talvez te deixe feliz, será, porém, um sintoma de que ele não leva seu trabalho muito a sério ou que não é tão capaz quanto parece.

Depois disso não tive mais notícia de meu cliente.

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Assuntos: escrever