Acabei de abotoar o cinto e tomei o resto da água mineral gelada para tentar ainda relaxar. Não seria difícil aquela noite, não era nunca muito difícil, mas a cada noite eu sentia que o controle das coisas me escapava, como se uma mão invisível estivesse puxando a corda que Deus me havia dado. Eu era um ladrão, não tinha vergonha disso, e estava prestes a cometer outro roubo.
Desci do carro e comecei a caminhar. Meus sapatos de sola de borracha macia rangiam gostosamente no chão e os meus óculos falsos, emoldurados por uma peruca despenteada, me davam um ar de universitário nerd voltando do laboratório tarde da noite. Passei por uma patrulha da guarda do Campus e os cumprimentei com gestos claros, sem medo. Eu queria que vissem o meu rosto, mas simplesmente não o achassem importante. Cheguei então ao Museu de História Universal, onde a Caixa da Quimera estava exposta. A misteriosa peça interessava a muita gente, e me pagavam bem para que eu a subtraísse da ciência e a entregasse a um comerciante escuso que a levaria para um milionário excêntrico.
Depois de tantas semanas infiltrado no campus, conhecia cada palmo dele, sabia onde passar, sem ter que ser visto pelas rodinhas de maconheiros ou por eventuais casais inflamados. Entrei pelo jardim que conduzia ao Museu de Ciências Naturais e logo estava em um lugar convenientemente discreto, onde havia preparado, noite após noite, a minha invasão. Abri a tampa da grade e me arrastei para dentro do porão.
A pequena lanterna me ajudou a localizar os interruptores certos. Propina nas mãos certas me haviam mostrado até coisas que eu não precisava saber sobre aquele prédio que eu invadia tão respeitosamente. Desligados os alarmes, passeei pelos corredores na penumbra como o hóspede de uma casa de monstros.
A Caixa estava em um pedestal simples, de feltro verde que imitava veludo. Vocês já devem saber de que se trata o artefato porque venho descrevendo-o, sob o nome postiço de um professor que não existe. Vê-la me deixou ligeiramente tenso, como se ela emanasse algo mais que antiguidade e cheiro de formol. Peguei-a, pus na bolsa e me esgueirei para fora, tão fácil quanto entrara naquele templo do saber.
Em casa, recostei-me no sofá a espera da visita do Portador. Contemplava a caixa curioso, revirando-a nas mãos como se fosse um Cubo de Rubik. O que será que Don Fabrizio deseja com esse exemplar esquisito de arte semítica antiquíssima? Por que magnatas querem exóticas obras de arte? Não as comem, não transam com elas, não podem ostentar em suas casas. Qual o sentido de ter consigo algo essencialmente inútil, sem afeto, sem beleza?
Então notei uma ligeira luminescência que surgia de um furo minúsculo como um poro, pouco menos que o buraco que teria sido feito por uma fina agulha. Aquela luz morta e pungente tentava sair. Olhei através do pequeno furo.
Uma mão forte me puxou para trás, separando-me da caixa. Olhei para cima e meus olhos ainda imersos em seiva rosa-acinzentada viram o corpo descomunal de Guido Feltri. Estava adiantado, o símio.
— Don Fabrizio não vai gostar de saber.
— Que não saiba, então.
— Perfeitamente.
Ele me atingiu, o brutamontes. Não vi com o que foi. Vi foi o meu corpo distender-se pelo chão enquanto outro homem, que entrava, berrava em uma voz que deveria ser alta, se eu a estivesse ouvindo com meus ouvidos materiais, mas que me soava então mais plana que um velho disco de vinil desgastado:
— Porco Dio, Guido. Tu sei una bestia!
Os dois homens olhavam assustados em minha direção. Não para o meu eu que sangrava no chão, mas para um outro eu, esse que eu realmente era. Olhavam-me de jeito tão curioso que eu tive vontade de brincar. Olhei fixamente neles e disse: “Buuu!”
Os dois saíram correndo como dois moleques que viram assombração. Deixaram a caixa cair ao chão, com o que ela se abriu e muito mais daquela estranha luz rosa inundou o ambiente.
Na manhã seguinte despertei atarantado, com estranhas formigações nas extremidades. Imaginei-me, à princípio, em um quarto de hospital, ou no céu, mas depois notei que era apenas a forte luz do sol que passava pela janela e atingia diretamente os meus olhos.
Levantei-me da posição em que estivera caído a noite toda. Havia sangue no chão, meu sangue. Uma poça imensa que certamente teria me matado. Mas ao procurar em meu corpo, não vi nada. A caixa estava caída ao pé da mesa, fechada por uma mão invisível ou por um mecanismo qualquer.
Por uma estranha razão, perdi a vontade de ter o dinheiro que ela poderia me proporcionar. Devolvi-a no mesmo dia, dizendo tê-la achado perto de casa. A minha história de que os responsáveis haviam sido Guido e o outro não pareceu ter credibilidade alguma, até que os guardas do campus se lembraram de tê-los visto correndo como loucos pela rua que leva ao Centro Velho, passando em frente ao portão principal.
Acabei absolvido no processo, mas não do inquérito mais rigoroso: aquele que surgiu dentro de mim por causa daquela caixa. Por causa dela eu resolvi levar a sério o meu papel de aluno e um dia me habilitarei a um mestrado em História Antiga. Então, finalmente, terei aquela caixa em minhas mãos, e todas as ferramentas e conhecimentos existentes sobre ela. Talvez consiga descobrir se o que aconteceu comigo foi real, ou foi sonho, ou se foi uma terceira e mais perigosa coisa.