Letras Elétricas
Textões e ficções. Tretas e caretas. Histórias e tramóias.
by J. G. Gouvêa

Carta Aberta aos Autores de Cartas Abertas

Publicado em: 16/10/2010

Por favor, parem.

Cartas abertas não são mais uma maneira de influenciar a opinião pública. Porque quem deveria lê-las não as lê.

Obviamente cartas abertas não são escritas para serem lidas por seus destinatários, isto sempre foi óbvio. Mas por filhos, amigos, amantes, parentes. Por pessoas que teriam algum poder de influenciar a decisão dos destinatários.

Hoje isto não funciona mais. Mesmo os que saem da escola com belos diplomas na mão perderam o hábito de ler e provavelmente teriam grande dificuldade em ler uma «carta aberta» — especialmente porque esse gênero literário se caracteriza por ser mais longo que uma carta comum.

A própria «carta comum», aliás, é um artigo em extinção. Se nem mais cartas fechadas as pessoas andam escrevendo e lendo, como esperar que leiam «cartas abertas» que sequer lhes foram endereçadas?

Acredito que se queremos que a coisa funcione como antigamente as cartas abertas funcionavam — na base da pressão moral da família e dos amigos para que o escroque fizesse algo, ou deixasse de fazer — seria necessário que a carta passasse a ser fechada. Fechada com treze trancas e com uma senha criptografada de 128 bytes. Em vez da carta aberta o que funciona hoje é o dossiê.

Sim, é isso. Uma carta aberta denunciando a imoralidade é motivo de riso. Acredito que se fizermos uma carta aberta reclamando que um político está roubando merenda escolar em certo município os próprios pais das crianças prejudicadas vão achar graça da carta. As pessoas perderam a capacidade de indignar-se.

Porém, mesmo os dossiês estão com os seus dias contados. Eles só valiam (dinheiro, na base da extorsão) quando os políticos ainda tinham vergonha de ser chamados de ladrão. Hoje em dia, vergonha é perder a eleição.

Desta forma, os dossiês também estão ficando fracos, estaremos chegando à era do trezoitão? Possivelmente, visto que os nossos legisladores, em causa própria, têm produzido nas últimas décadas um código penal que procura punir o mínimo possível, especialmente se ficar comprovada a culpa (em caso de inocência ou de dúvida o acusado, se pobre, pode ter que passar anos trancafiado até conseguir ser absolvido).

Durante muito tempo o opróbrio (esse palavrão em vias de desterro para as terras do Arcaísmo) era a única coisa que atingia os políticos, em geral na forma de ovos podres e vaias. Hoje em dia as pessoas nem querem mais vaiar e há muita câmera para filmar a origem do ovo e punir o responsável.

Agora ninguém mais tem essa vergonha. Na verdade há um movimento criando força entre nossos legisladores: já que o código penal não serve mesmo para nada, melhor seria aboli-lo em sua maior parte. A ideia é a abolir do Código de Processo Penal a parte «Penal» e deixar a parte do «Processo». Assim, sempre que houver a necessidade de constranger ou punir alguém, basta o interessado (apoiado por uma alcateia de advogados) iniciar um processo contra o ofensor e sustentá-lo através de todas as instâncias do Judiciário. O interessado mais pobre perderá algum recurso ou prazo e muito dinheiro.

Como podemos ver, a prática de escrever cartas abertas se tornou anacrônica. Não só porque cartas (e crônicas) são anacrônicas em si mesmas, mas também porque não há mais como esperar que elas funcionem.

Em vez de escrever uma carta aberta, devemos fundar uma associação e mover um processo. Mas vai ser preciso muito dinheiro e um padrinho forte, porque processo sem padrinho ou sem dinheiro não vai longe: para quando esbarra no padrinho do processado.

Arquivado em: crônicas