Nada saiu como planejado, e Selena engravidou da primeira vez que ficou com Marcelo. Ele teria entrado em pânico se compreendesse o que estava por vir, mas não tinha malícia suficiente para saber. A agitação do Natal o consumia, o clima de festa o distraía de tudo e logo viria o Ano Novo, com suas novas prioridades, que o afastariam de mais coisas. Afinal, precisava escapar de todas as armadilhas de fase que a vida nos impõe, até o chefão final.
Selena não notou tampouco, pelo menos não no início — e por isso não percebeu que era Marcelo. Como perceberia que era ele, se também tinha o Márcio, o Luís, o Ruben, o Sérgio e até a Margarida? Sua mãe teria entendido, se tivesse podido acreditar. Mas ela mesma, que num passado não muito distante passara por prova igual, não tinha força para admitir: foi preciso um médico.
— Isto talvez saia no próximo número da Revista da Associação Médica Mineira, possivelmente até na Nature — aventou o Dr. Cunha, pensando em polir o próprio currículo antes mesmo de reverter o desmaio de Ana Maria. Por fim, a enfermeira fez isso em seu lugar, trazendo a mãe chocada de volta à realidade. Uma realidade em que a filha de onze anos estava grávida.
— Quem fez isso com você, minha filha?
Selena admitiu ignorar, para renovado espanto da progenitora:
— Como “não sabe”, filha? Quem foi?
— Pode ter sido o… não… com ele foi só uma vez.
— Meu Deus, o que é isso? Em que mundo nós estamos!? — exasperou-se a mãe, lendo as devidas entrelinhas.
O Dr. Cunha, num inexplicável acesso de empatia, emprestou-lhe um lenço umedecido. Mas era pouco lenço para muita lágrima.
— Onde foi que eu errei? — berrava a mãe.
— O que aconteceu comigo, Doutor? — perguntava uma estúpida Selena, finalmente cansada de folhear a revista.
— Dona Teresinha, melhor trazer um calmante.
— Um calmante, não. Um veneno, porque eu não quero ter que encarar o Macieira diante disso. Ele sempre me dizia que eu dava razão demais para essa menina. E agora isto! Como explicar isso?
Selena percebeu que o caso era grave porque sua mãe havia se referido pelo sobrenome ao marido, o tipo de coisa que só fazia quando estava em pânico ou quando discutiam a ponto de quase divórcio. Mas Ana Maria se refez do susto e levantou-se da cadeira, com passos duros, chamando a filha para ir, ante os protestos do Dr. Cunha.
As duas voltavam para casa, quietas, dentro do carro, com os vidros fechados e o ar-condicionado rugindo furioso no calor da tarde.
— Nenhuma palavra disto ao teu pai, sua putinha.
— Não vou falar, mãe. Mas o que você quer fazer?
— A única coisa sensata a fazer num caso desses. Retirar essa coisa de você!
Felizmente Ana Maria tinha seus meios. Ricardo das Neves Peixoto era o meio em questão. Estudante pobre e originário de outro estado, filho de pai obscuro e mãe ausente. Tinha sido um agregado de uma família vizinha, por influência de parentescos nunca explicados, durante os anos de estudos. Certa vez, durante ainda a faculdade, Ricardo engravidara Ana Maria. A prova de seu crime poderia ser obtida a qualquer momento em que Macieira desconfiasse.
— É preciso, Ricardo.
O médico refletiu, coçando as suas espessas sobrancelhas pretas, dois mandarovás que se beijavam acima dos olhos, e foi ao ponto:
— Quantas semanas?
— Não tenho a mínima ideia. Ainda nem fizemos ultrassom.
— Mande a Selena entrar ali com a enfermeira, precisamos primeiro saber do que estamos exatamente falando.
Selena primeiro foi ao banheiro vomitar de novo, depois seguiu a enfermeira para se despir e deitar no leito para ser examinada.
O Dr. Ricardo aproximou-se e tratou de examiná-la com quase ódio. Ódio que devia à Ana Maria, que o trocara por um empresário rico e possessivo e que o humilhara quitando suas dívidas dos tempos de faculdade.
— Cinco semanas, aproximadamente.
— Temos que acabar com isso, Ricardo.
— Não existe a mais remota dúvida disso, Ana Maria. A menina não merece isso. Por mais que eu me pergunte como é possível que tenha acontecido.
O tom de voz do Dr. Ricardo era cruel, quase ameaçador.
— Não é o que está pensando, Ricardo. O Macieira não tem nada a ver com isso, pelo menos é o que eu acho.
Naquela mesma tarde, sob anestesia geral, o Dr. Ricardo removeu do útero infantil de Selena Rodrigues Macieira um feto que, pelas contas de Selena, bem poderia ter entrado ali pelo bico de uma pomba branca.
Quando terminou, ainda lavando as mãos impulsivamente, enfrentou Ana Maria com olhos cheios de mágoa.
— Então, Doutor, a menina está salva?
— Não Ana Maria. Ninguém está salvo.
Ela entendeu o que ele quis dizer.
— Não conte a ninguém, pelo amor de Deus!
— Tenha a certeza disso. Já tenho problemas suficientes com Deus. Tenho, pelo menos, uma dívida a menos.
Ana Maria, por uma dessas razões estúpidas que explicam muito bem a mentalidade de Selena, achou que era o momento apropriado para a confissão:
— É sua filha, Ricardo.
— Eu sabia. E lamento muito.
— Como assim, “lamenta muito”?
— Lamento muito que também seja sua.
Ana Maria não conseguiu entender, de imediato, o que o Ricardo quis dizer. Revestiu-se de ódio e saiu de lá com a menina, ainda grogue dos remédios e anestesias, rumo à casa de campo da família. De lá ligou para o Macieira dizendo que tinha saído para um passeio com a Selena e que ela tinha caído doente, por alguma coisa que comera, mas que logo estava bem.
Felizmente Macieira tinha mais uma reunião de negócios naquela noite, só voltou às três da manhã, bêbado e sujo de batom estranho, nem chegou a ver o recado na secretária eletrônica. No dia seguinte, aliviado por não ter sido surpreendido ao voltar tão tarde, ligou de volta dizendo que estava tudo bem e saiu para outro dia estafante de trabalho.
Ele provavelmente não sabe até agora o que aconteceu.