Eu devo ser uma das pessoas mais inquietas desta cidade. Não por ser irrequieto: não sou nenhum «azougue» (palavra herdada de minha avó que eu guardava numa bonita caixa e fiquei anos tentando encaixar numa crônica, até finalmente conseguir). A questão é que eu preciso estar constantemente com a minha mente ocupada de algo. Nenhuma pessoa leva tão a sério que a mente vazia é a «oficina do demônio» (e olha que eu nem creio nele).
Pensar é imperativo. Se eu não tiver algo sério e útil para ocupar minhas engrenagens cerebrais eu começo logo a inventar futilidades sobre as quais pensar: foi essa a razão e o mecanismo do desenvolvimento de meu hábito literário.
Mas eu não consigo pensar direito se eu não estiver me mexendo. Não necessariamente me exercitando, mas manipulando qualquer coisa já serve. Pode ser um teclado, como nesse momento, uma bolinha de borracha, uma caneta, ou o meu próprio cabelo. Manter o corpo ocupado (ou pelo menos parte dele) me desocupa a mente para malversar vocábulos e conceitos e resulta em ideias, que podem virar textos ou redemoinhar rumo ao olvido nas dobras de minha imaginação confusa e contraditória, que levou dez anos para concluir um romance cuja ação se desenrola toda em quatro dias.
Quando saio caminhando me bate o desespero de sair tomando nota das coisas. Como não tenho caneta e papel à mão, vou repetindo e reelaborando as ideias, como um rapsodo antigo que ia compondo seus versos. Quando retorno para casa eu tenho longas frases prontas, escritas numa cadência ritmada, com o uso de aliterações, metáforas e rimas para servir de marcos mnemônicos.
Quando estou deitado na cama, esperando o sono que ainda não vem, surgem planos para o futuro. Eu já me eduquei para não pensar em ficção na hora de dormir, para controlar o impulso febril de me levantar da cama, pegar um caderno e escrever trinta ou quarenta páginas de prosa vertiginosa e quase ilegível, na minha típica caligrafeia vacilante de quem tem uma personalidade tão rústica e rascunhada. Mesmo assim tais episódios ainda acontecem, especialmente se passa da meia noite e ainda não dormi.
Estou explicando tudo isso para tentar fazer-me entender sobre a reação exacerbada que eu tive um dia desses, na praça central da cidade, ao contemplar uma cena que talvez não tivesse nenhum efeito em uma pessoa comum.
Eu estava caminhando pela praça, em uma missão profissional, quando me deparei com uma Kombi branca, velha e com marcas de um incêndio, estacionada sob o sol de fritar ovo. Dentro do veículo, sentada no banco traseiro, com as pernas abertas e os braços grossos estendidos sobre o encosto do assento, estava uma mulher imensamente gorda.
O que me incomodou nesta cena não foi a mulher ser gorda: eu nada tenho contra gordos. O que me incomodou não foi ela ser feia: problema dela e do marido dela, não meu. O que me incomodou não foi ela estar usando um vestido que parecia uma cortina ou uma capa de abajur (ela o abajur). Nada disso.
O que me incomodou foi ela estar ali parada, olhando para o tempo com um olhar vago, de quem não está absolutamente pensando em nada.
Para mim é difícil conceber que alguém possa estar olhando para o nada sem pensar em coisa alguma. É uma sensação angustiante supor que isso possa estar acontecendo, mais ou menos a sensação angustiante que nos toma quando vemos uma pessoa em coma.
Mas simplesmente a mulher estar lá, inerte, não teria sido suficiente para me chocar tanto se o dia não estivesse tão quente, se não brilhasse no céu aquele sol de arrebentar mamona. Ver aquela criatura sentada dentro do carro sob aquele sol, conseguindo não pensar em nada. Isso começou a me irritar.
Eu tinha lido dias antes que os animais árticos guardam uma camada de gordura sob a pele para proteger-se do frio. Curiosamente, ao ler isso, eu me lembrei que quando era mais magro (vinte e quatro quilos mais magro, para ser exato) eu sentia bem mais frio do que hoje. Então, ver aquela mulher gorda sentada dentro do carro sob aquele sol, suando do jeito que ela estava, mas mesmo assim inerte!… eis o que me fez passar mal.
Voltei para casa naquele dia sentindo uma dúvida existencial profunda, uma sensação de quase inconformismo. Aquela mulher era mais fantástica, ao meu ver, do que qualquer faquir que dorme sobre pregos ou qualquer milagreiro que caminha sobre brasas. Aquela mulher parecia os quatro santos judeus na fornalha (e considerando o tamanho ela bem poderia ser os quatro juntos).
Deve haver uma espécie de beatitude em conseguir não pensar, um tipo talvez de felicidade. Que eu não conheço porque penso o tempo todo em algo. Estou sitiado por ideias e pensamentos que se digladiam o tempo todo, acima e abaixo do nível de minha consciência. A única coisa que falta nesse universo de ideias é a compreensão de como seria possível a calma daquela mulher.
Minha tentativa de entender aquela mulher é como uma tentativa de explicar o silêncio empregando instrumentos musicais. Elétricos.