Os pedagogos do MEC, responsáveis pelos Parâmetros Curriculares Nacionais (esta peça de humor pastelão que rebatizou o ensino de português como “Linguagens, Códigos e Suas Tecnologias”) acharam que não seria apropriado que “Caçadas de Pedrinho”, de Monteiro Lobato, um clássico de nossa literatura, fosse distribuída às bibliotecas de nossas escolas públicas, afinal existem nela resíduos de racismo que podem traumatizar as crianças negras ou tornar em potenciais racistas todas as demais.
No entanto, segundo tive o desprazer de ver hoje no telejornal matutino da Rede Record, o critério para considerar impróprio o livro de Lobato parece muito mais vago do que inicialmente parecia — e ele já parecia muito vago.1
O caso é que ao mesmo tempo em que pretendeu censurar um
clássico da literatura por conter trechos potencialmente
racistas, o MEC não viu problema em distribuir a mais de quarenta
mil escolas a tradução de um mangá de
Kazuichi Hanawa intitulado “Na Prisão”.
A escolha do tema já é, por si só, preocupante. Em vez de ensinar conteúdos positivos para os jovens, o MEC achou que seria interessante que eles aprendessem sobre como é a vida em uma prisão japonesa. Mas me abstenho de imaginar razões para a escolha do tema e me restrinjo a tentar compreender como ou porque esta obra em especial foi aceita.
Porque Kazuichi Hanawa não a escreveu para crianças em idade escolar — e sim para adultos. No Japão o consumo de mangá e animê pelos adultos é pelo menos tão grande quanto para crianças, havendo publicações segmentadas por orientação sexual e faixa etária, por exemplo. A temática da obra em questão não é nada “infantil”: trata-se do retrato da cruel rotina de uma prisão, na qual o protagonista encontra todo tipo de gente e ouve todo tipo de histórias — inclusive histórias que envolvem crimes, uso de drogas, tortura (física e mental), nudez, representação gráfica de órgãos e atos sexuais (inclusive violentos).
Ressalva: como não li a obra, estou deduzindo tudo isto a partir das imagens que foram exibidas pelo telejornal e pelas descrições da obra que encontro na Internet. Mas adoraria que quem tenha lido me envie mais detalhes.
Tudo isso pode ser aceitável (e o é) numa obra voltada para um público adulto, devidamente distribuída de forma discreta e contendo na capa alerta sobre o conteúdo inapropriado. Mas como algum pedagogo resolveu achar que uma obra de conteúdo tão pesado seria apropriada para crianças que já enfrentam tanto conteúdo impróprio no mundo?
Eu ainda achava tolerável quando a obra do MEC era caracterizada apenas pela incompetência (que tantas vezes levou este órgãos a escolher os piores livros didáticos possíveis) e pelo descaso (expresso no sorridente diagnóstico de que “a educação neste país já está bem encaminhada”); mas agora tudo tomou proporções totalmente diferentes: já não se trata apenas de incompetência e de descaso, deve haver alguém deliberadamente sabotando a educação no Brasil — ou então a corrupção e a inépcia dos funcionários do MEC atingiu níveis nos quais já não seriam capazes de diferenciar entre a própria bunda e uma melancia.
Dez anos depois eu fui forçado a engolir sem açúcar essas palavras, quando tive de admitir que havia, sim, sobejas razões para retirar “Caçadas de Pedrinho” das nossas bibliotecas escolares e que Monteiro Lobato foi, sim, um racistão horrível e imperdoável. Você pode ler sobre isto em meu post intitulado Lobato: Um Racista.↩︎