Pedra quebra tesoura que corta o papel que embrulha a pedra. É sutil que a força bruta da pedra não seja quebrada nem cortada, mas apenas embrulhada. O papel é uma entidade poderosa, creiam-me. O papel — que pode ser uma folha de ofício, um pedaço de papel de pão ou a desafiadora e ilusória página eletrônica de um blogue — é a verdadeira nêmesis de quem escreve.
Talvez lhes cause algum espanto que o papel seja inimigo do autor, que tanto depende dele para materializar sua obra, mas eu explico. O papel é traidor e dissimulado, um verdadeiro corruptor das menores boas ideias. Sob seu jugo milenar não há inspiração que resista incólume, e nada tem sido feito para impedir isso.
Quando o autor concebe sua obra, ela existe desde já, imaterial e imaculada, no terreno da perfeição. A obra apenas imaginada é fluida, coerente, cheia de personagens interessantes, de frases de impacto, de narrativa ajustada, de ritmo adequado. O problema está quando o autor se mete a tentar fixar em letras aquilo que só existe na matéria de que são feitos os sonhos.
Aí começa a rebelião da sintaxe, que não se entende com as vírgulas, as palavras parentes se procuram para fazer sua página parecer uma sucessão de inaparentes repetições que entendiam a quem entende. O teclado, este ser detestável, exime-se em retardar a sucessão das palavras, em fazer tropeçar o projeto. A caneta, quando efetivamente escreve, acaba se recusando a desenhar corretamente certas palavras, fazendo com que depois sejam lidas de outra forma imprevista. O texto que aparece no fim é uma sombra pálida do chamejante edifício não verbal que brotara da imaginação do autor.
Então o pobre artífice tentará em vão marretar as arestas, pintar os arranhões, preencher as gretas e botar um vaso de flores na janela. Mas tudo isso sempre ficará patético se o comparamos à potência do que não existe. Por isso a fama das obras perdidas, dos autores perdidos, das mulheres perdidas.
Pensando bem, a delas não.
Outros, desleixados, ou talvez incapazes de suportar a tortura de sua ideia original no pau de arara da língua escrita, abandonarão os pobres textos à míngua de carinho, de revisão, talvez até de uma simples leitura que permitisse ver que foram numerados dois capítulos cinco.
Entre as duas posições trafegam tragicamente os autores, com suas cabeças cheias de sonhos maravilhosos que nunca serão entendidos por ninguém, visto que a matéria dos sonhos só pode aparecer no papel como um borrão que aos poucos esfria e muda de cor, perdendo o sanguíneo tom de novidade até se transformar na poeira inerte que só deixa uma nódoa.
Estes perfeccionistas sofrem mais. Sofrem porque, por mais que se dediquem a limar as rebarbas de suas obras podem um dia, no alto do palco de um concurso, perceber uma horrenda e manquitolante falha de concordância verbo-nominal no último parágrafo do texto que o lança para a vida!