A literatura de ficção e fantasia que conhecemos descende do exotismo escapista da Europa entre o final do século XVIII e o início do século XX. A grande repressão dos costumes, o caráter ainda muito embrionário da democracia e a difusão de múltiplas e contraditórias teorias pseudocientíficas geraram um terreno propício para que alguns autores vissem na ambientação em lugares exóticos uma maneira de criticar a própria sociedade em que viviam ou então refestelar-se em pornografia ou ideais vanguardistas sem o risco de censura. A força da tradição, a idolatria recorrente do passado (clássico ou medieval), a importância de instituições como a Igreja e o Estado… tudo isso atuava em favor do estabelecimento de um subgênero que abrigava a subversão de uma forma socialmente tolerável.
É nesse sentido que Richard Burton consegue transferir para a Índia as perversões sexuais dos fidalgos, que Bram Stoker (talvez inconscientemente) sublima o caráter predatório da nobreza britânica na figura de um nobre vampiro estrangeiro etc. Os mais otimistas, porém, sonham com um mundo no qual as nuvens negras de fumaça industrial, os bolsões de pobreza e uma “degeneração dos costumes” são superados por descobertas científicas: a ciência salvaria o mundo que a religião mal conseguia ajudar. Eram tempos ingênuos aqueles.
À medida em que o mundo evoluía através de guerras mundiais, epidemias, surgimento de crime organizado, conspirações de estado, crises econômicas e uma total hipocrisia política, a idealização do mundo perfeito se torna mais forte. Mas o pessimismo avança, fazendo com que a perfeição fosse muitas vezes localizada no passado. Em J. R. R. Tolkien, por exemplo, o que predomina como temática é a decadência dos povos, o fim iminente do mundo, o risco permanente do triunfo do mal absoluto etc. A salvação da humanidade, representada pela destruição do anel, ocorre por puro ato de graça do Destino, um legítimo deus ex machina.
Muita gente no Brasil adquiriu esse pacote fechado de venenos ideológicos sem olhar o que tinha dentro. Sem entender o mecanismo (e principalmente sem entender os arquétipos em uso), essas pessoas acabaram adotando fim em si aquilo que ficava apenas na superfície: gente que se veste de elfo da Terra Média sem entender que os elfos são o arquétipo da pureza angélica (congênita, indiferente e fria) da humanidade. Trata-se de uma compreensão infantilizada porque não evolui, não acrescenta; limita-se a repetir fórmulas e repassar receitas. Assim são os imitadores: em vez de verem no vampiro a inspiração para outras histórias de outros monstros, que refletem os nossos medos, eles apenas transcrevem o medo estrangeiro, muitas vezes sem sequer tentar uma tropicalização. O resultado, me desculpem os que me leem, não é literatura de verdade, é literatura de brinquedo, é fanfic.
Que isso venda livros e dê lucro a quem faz é algo que não importa: esse artigo não é sobre meios fáceis de ganhar dinheiro, fazer amigos e influenciar pessoas. Mesmo porque, se eu soubesse como fazer essas três coisas eu não tinha um blog, eu escrevia num jornal de grande circulação.
Quando digo “fanfic” eu estou me referindo a imitações superficiais, alienadas e anacrônicas de obras cujo contexto e cujo subtexto não foram foram compreendidos pelo imitador. Superficial porque não vai além do uso emblemático, caricatural, esquemático dos arquétipos contidos nos textos em que se baseia. Alienado porque imita servilmente um modelo estrangeiro e não usa quase nada da rica cultura de nosso país. Anacrônico porque reflete o estado de espírito de uma outra época, que tinha outras preocupações e desafios.
Em relação ao caráter anacrônico, realmente não há desculpa, mas há um modus operandi: os imitadores sem talento gostam de pinçar justamente o mais datado, o mais superficial, o mais esquemático. A imitação procura ser fiel no acessório porque ele é mais portátil, ele não requer aprofundamento crítico.
Como a literatura é algo pouco valorizado, às vezes até ridicularizado, o brasileiro médio não consegue acessar toda a profundidade do que lê e essa superficialidade passa para o que tenta escrever. São bem poucos os novos autores que eu estou conhecendo que parecem possuir alguma cultura literária. Em vez disso, as crias da internet parecem ostentar sua ignorância como uma medalha.
Embora a literatura tenha já uma boa tradição entre nós, os novos autores a desconhecem ou rejeitam-na (“Odeio Machado de Assis”). E porque lê pouco, muito ignora e mal sabe o quanto isso lhe faz falta. Esse ranço anticultural passa de geração a geração, desde os tempos dos coronéis. “Ler é um exercício”, afirmou certo político suado de lutar contra as palavras, como diria Drummond. Isso vem desde os tempos em que o coronel analfabeto detinha o poder e o homens da cidade, devidamente diplomados, eram seus empregados.
A falta de cultura geral, trazida por leitura frequente e variada, faz com que o leitor brasileiro médio tenha dificuldades para destrinchar os significados dos textos mais provocativos. Isto resulta em pastiches mal-feitos do Senhor dos Anéis, reescrituras desnecessárias das Crônicas de Nárnia, platitudes sobre as Mil e Uma Noites vendidas como pérolas de sabedoria por magos midiáticos, imitações precárias de Stephen King ou grotescos esforços para tentar ser J. K. Rowling.
Os livros e os personagens são reduzidos a estereótipos, e são esses estereótipos que são imitados. Os vampiros sobre os quais se escreve são baseados nos de Anne Rice, os magos são como Dumbledore ou como Gandalf, os elfos são como os Sindarin, etc. Alguns “ousados” misturam referências de mais de uma obra, mas ainda assim é “fanfic”, do tipo “crossover”.
Como as pessoas geralmente só leem do que gostam (outra característica da estratégia de “redução da dor” empregada por pessoas para quem ler é realmente muito penoso), o gênero favorito serve como cercadinho intelectual que retarda seu crescimento mental. Elas leem, leem, e nunca aprendem porque sempre leem mais do mesmo. Chegam à idade adulta lendo livros sobre anjos da guarda, magos do Oriente, Deuses Astronautas…
Ninguém tem que saber tudo, mas tudo que se sabe é um tijolo a mais na construção de uma personalidade versátil. Cada livro tem algo a nos ensinar, e é importante sabermos um pouco de várias coisas para não sermos “bitolados”. O trem só é capaz de seguir os caminhos que foram preparados para ele no passado, mas os pássaros voam livres para onde querem. Ler livros de um gênero só é ser como um trem, “bitolado”.
Porém, aquilo que você lê precisa resultar em alguma coisa. Não pode entrar por uma orelha e sair pela outra. Quando você realmente aprende algo, este algo passa a ser parte de você e recebe a sua contribuição. “Quem conta um conto aumenta um ponto” quer dizer que você sempre tem vontade de contar de outra forma, mesmo a melhor história que leu. Essa vontade é o germe da literatura na alma da pessoa que lê. Ninguém se torna escritor antes de ter sido um bom leitor.
É isso que prejudica muitos autores nacionais: ao não reciclar suas fontes, eles não vão além da superfície das histórias que leem, ambientadas em paraísos estrangeiros ou países alienígenas (ou seria o contrário?), sem notarem que os cenários são deliberados, que estas obras possuem uma mensagem conectada com o mundo real, que não são mero escapismo.
Apegar-se à letra, não ousar discordar de como as histórias foram contadas, não ter sonhos próprios para transformar em ideias… Males de um povo que tem preconceito contra si mesmo, que acha que as suas histórias não merecem ser contadas. Sim, vivemos sonhando em contar as histórias dos outros povos e desprezamos as nossas. Nossos jovens não querem ler autores regionais, detestam sotaques sulistas, nordestinos, mineiros… Enquanto isso uma recente música de sucesso falava, como se fosse algo desejável, de um vaqueiro do interior de São Paulo com sotaque “meio americanizado”.
Aqui em Minas Gerais temos um verbo suficientemente ofensivo para esses casos: “macaquear”. Macaquear é imitar grotescamente. Tal como um chimpanzé que tenta agir como humano, mas claudica e faz caretas sem sentido. Devíamos parar de “macaquear” a cultura estrangeira e começar a contar a nossa história. “Nossa” não no sentido de nacionalismo fútil, mas no sentido de experiência própria — que até pode incluir referências aprendidas com outras culturas. O mundo de um autor é o mundo que ele vê e vive.
Pode parecer perseguição ou preconceito, mas é fato: nenhuma imitação barata de best-seller estrangeiro fará sucesso lá fora e tornará seu autor uma personalidade famosa, porque nenhuma imitação pode ter qualidade técnica, artística ou cultural para fazer frente ao mais simplório dos best-sellers prefabricados que vêm dos Estados Unidos. Isso decorre, primeiro, do fato de que os livros mais comerciais publicados nos EUA e Inglaterra passam por um processo de edição e preprodução que nossas editoras não têm como financiar, e segundo, da impossibilidade de obter acesso recíproco ao mercado “deles”, pelo menos não fazendo aquilo que eles fazem de melhor. Se eles não conseguem fazer samba melhores do que nós, certamente nós não conseguiremos fazer livros rasos tão bem quanto eles (e nesse contexto “fazer bem” não envolve qualidade, mas agradar ao público). A única chance de carreira internacional que um autor fora do circuito anglo-americano-australiano pode ter está na sua originalidade, em oferecer um assunto novo.
Mas como se isso não bastasse, resta uma verdade dolorida: uma boa parte do que se publica hoje no Brasil, no gênero ficção científica e fantasia, é bem pior que “Crepúsculo”. Tem muito autor por aí falando mal de Stephanie Mayer que deveria, sinceramente, lavar sua boca antes de vomitar acusações contra ela. No mínimo, mesmo o pior dos romances comerciais americanos tem um enredo estruturado, passa por várias e boas revisões e só chega ao mercado depois algumas sondagens com leitores qualificados, que apontam fraquezas a serem sanadas. Aqui tem muito autor se acha um deus e reage ofendido a todo e qualquer comentário que não se baseie em entusiásticos aplausos.
É uma postura inculcada neles por um sistema educacional falido, que não exige aprendizado, que não propõe desafios, mas aplaude o “esforço” mesmo que ele redunde em nada. Por isso tanto autor por aí se acha especial, se acha gênio, acha que tem “inspiração” e chama de “censura” a toda e qualquer interferência que um editor queira fazer. Para essa gente, gramática é coisa de sujeito afetadinho, a estrutura é a prisão da idéia e apontar erros é faltar com o respeito ao autor. Mal sabem eles que a precariedade do texto é que é a prisão da idéia, tal como a falta de horizonte cultural agrilhoa o raciocínio.
As editoras não abrem mais espaço para nossos autores porque eles são amadores mesmo, porque há gente demais fazendo cópia mal-feita de autor americano. Os bons ficam perdidos nesse mar de inutilidades. É mais seguro para elas buscar obras já testadas e aprovadas do que tentar testar e aprovar aqui outras obras cujo alcance ficaria, de qualquer forma, limitado às nossas fronteiras.
Para piorar tudo, os autores orkutianos são desorganizados, sem foco e muito narcisistas. Desejam fazer sucesso escrevendo, mas não gostam de ler o que outros escrevem. Desejam ser famosos, mas não querem comprar livros de outros autores. Querem ser bem-sucedidos, mas não querem dar-se ao trabalho de buscar pessoalmente a qualidade de seu texto (“alguém vai revisar para mim”). No fundo esperam que alguém magicamente transforme seu sonho de fama em realidade. E pelo simples fato de estarem escrevendo, já incorporam o personagem “artista” — chegando ao ponto de colocar em seus apelidos virtuais termos como “poeta” ou “escritor”, como aqueles ridículos médicos do interior de antigamente que exigiam ser chamados de doutor até quando estavam de sunga no clube e pediam que os bancos imprimissem nos seus talões de cheque “Fulano de Tal, Dr.”.
Se você acha que isso é mentira, vá até a sua estante e me diga quantos livros de jovens autores você possui, quantos leu. Negue sinceramente que você se ofendeu quando alguém lhe disse que precisava melhorar. Ou então me explique de que forma você entende o mito do monstro de Frankenstein no contexto da cultura de sua região.
O sucesso continuará sendo impossível enquanto continuarmos cometendo os mesmos erros. Persistência é só um nome bonito para a teimosia, a menos que você saiba o que está fazendo. Enquanto o “autor” não conhecer diversos gêneros, não possuir um posicionamento face à tradição, não acompanhar a mídia especializada, não estiver antenado com as notícias e com as novidades culturais, não há opção a não ser continuar dando dinheiro para editoras que publicariam qualquer coisa em troca de três meses de seu salário.