A Rainha Vashti era uma mulher muito bonita, segundo reza o Livro. Tinha de ser, porque os reis antigos eram bem exigentes quanto a isso. A história de sua desgraça exemplifica muito bem como as religiões abraâmicas veem as mulheres e quais são os valores sociais nos quais somos educados.
Durante um banquete dado pelo rei aos seus sátrapas, ministros e funcionários — um banquete que já durava sete dias — o rei, alegre pelo vinho, pediu aos seus camareiros que trouxessem a rainha diante dos convivas, para que o rei exibisse a sua beleza.
Há duas interpretações para a natureza do chamado de Assuero:
Embora isto não seja dito diretamente, está implícito que a rainha foi convocada para aparecer em trajes sumários, pois completamente vestida a sua figura já devia ser conhecida de todos e não faria sentido que o rei a mandasse chamar para isso. Outros indícios das intenções do rei se acham nas observações, algo maliciosas, de que ele se encontraria “com o coração alegre pelo vinho” e de que os camareiros deviam trazer a rainha “vestindo sua coroa” (o que me lembra Marilyn Monroe dizendo que dormia vestindo Chanel nº 5). Mais à frente, o texto bíblico enfatiza que a razão pela qual Assuero fez-lhe tal pedido era que Vashti era “bonita de se olhar”. As representações tradicionais da cena sempre colocam-na vestida de uma camisola—sugerindo que ela se encontraria no harém real. Esta sugestão fica mais forte quando consideramos que Vashti estava dando seu próprio banquete para suas amigas, parentes e visitantes, no momento em que foi chamada.
Uma outra possível interpretação é de que realmente não haveria nenhuma nudez, mas que a simples aparição pública de Vashti seria inaceitável, pois nas culturas do mundo antigo era a norma que as mulheres ficassem protegidas da visão profana (em um harém, por exemplo). Neste contexto, a indecência não estaria nos trajes sumários da rainha, mas em trazê-la sem véu diante de um número indistinto de homens, nem todos de alta classe social, apenas para mostrar o quanto era bela. Temos um aspecto de sacrilégio envolvido, além da pura humilhação pessoal de Vashti.
As intenções de Assuero eram totalmente fúteis: exibir a mulher, como um bibelô, diante de uma multidão de homens bêbados. Vashti era, para Assuero, apenas algo bonito de se olhar, uma joia rara que ele devia mostrar aos seus convivas. A convocação de Vashti era uma humilhação, especialmente se considerarmos o papel sagrado que as rainhas ainda possuíam em certas culturas antigas, antes do predomínio do patriarcalismo que está expresso, por exemplo, no Livro de Ester. As circunstâncias do banquete de Assuero são uma afronta completa à dignidade de Vashti enquanto rainha, mulher e ser humano — e por isso não era mais que natural que ela hesitasse em obedecer. A desobediência de Vashti pode ter três significados, conforme a história for interpretada:
Trata-se de uma manifestação ainda de autoridade, em desafio ao poder monocrático do rei. Neste contexto, a rainha reivindica para si algo da dignidade ancestral da mulher, em uma época e em uma cultura na qual o matriarcado ainda não estaria totalmente esquecido. Esta tese não faz muito sentido se tomarmos o contexto medo-persa, pois tais povos eram pastores e patriarcais há milênios. Mas faz sentido se ela fosse originária de uma cultura diferente. Considerando que os antigos reis já tinham por costume casamentos dinásticos, para obter alianças políticas ou para pacificar o império, esta possibilidade existe.
Trata-se de uma atitude coerente com o papel religioso que a rainha poderia ter, seja no culto oficial persa, seja no culto originário no qual Vashti se inscreveria, no caso de ser estrangeira. Nesta interpretação, mesmo Vashti sendo persa e acostumada a uma cultura patriarcal de submissão da mulher, ela, por ser rainha, estava convencida de um papel diferente — assim como as vestais romanas ou as monjas católicas. Enquanto mulher, Vashti teria de se submeter, mas enquanto rainha — mulher sagrada — ela resistiria.
Pode ser uma recusa pessoal a ser exibida como um troféu no salão de banquetes do palácio. Esta interpretação, algo curiosamente, é a que a Bíblia tenta nos convencer a aceitar. De certa forma, é a que parece fazer, também, mais sentido. Afinal, mesmo para a submissão parece haver limites e nem todo mundo aceitará tudo, o tempo todo. Nesse caso, a recusa de Vashti não tem nenhum aspecto cultural (primeira hipótese) ou religioso (segunda), mas é simplesmente um ato pessoal, e portanto heroico, de resistência.
Conclui-se isso porque os conselheiros reais argumentaram com Assuero que a recusa de Vashti era uma afronta não apenas ao monarca, mas a todos os homens do Império Persa, cujas mulheres começariam a desobedecer se soubessem que o próprio rei não tinha a obediência da sua.1 Então, para evitar que isso acontecesse, Assuero rejeita Vashti, recusando-se a recebê-la2 e tomando para si várias concubinas entre as donzelas do reino. Uma destas foi Ester, que justamente obteve seu status graças à sua estrita submissão a Assuero.
Mas antes de passarmos a falar de Ester, é preciso notar a total ausência de julgamento, na Bíblia, sobre a ética do rei em exibir sacrilegamente a beleza da esposa diante de um bando de homens bêbados. Certamente naquela época a ICAR não havia inventando os “sete pecados capitais”, mas fica claro aí que o rei cometeu, no mínimo, o pecado da futilidade (que não é capital, mas deveria ser). Só que isso não interessa ao autor bíblico: quem teria de se haver com Deus por seus pecados seria o rei em pessoa: à mulher cabe obedecer até quando o marido lhe ordena que cometa um pecado (pois, lógicamente, a mulher — eterna criança — não é nem responsável por seus atos perante Deus: é o marido que por ela responde).
Seja qual for a relevância que se atribua aos atos posteriores de Ester (salvar todo o povo judeu, por exemplo), é inegável que a mensagem que se passa é de que se você desobedece ao seu marido, será abandonada e ele escolherá outra mais jovem; mas se você o obedece, consegue influenciá-lo de forma que ele fará o que você deseja.
O Livro de Ester nos traz, então, um exemplo ideológico perfeito da doutrina machista da submissão e objetificação da mulher.
Um aspecto a que não me atentei quando escrevi este texto é que, independente das motivações de Assuero e de Vashti, o episódio revela, também, a anulação do papel político e simbólico da condição de rainha. Em muitos povos antigos, a rainha era dotada de poder quase equivalente ao do rei. Ao reduzi-la a mera “mulher do rei”, igualando seu papel ao de qualquer mulher do império persa, o livro apaga de maneira completa a simbologia da posição de Vashti.↩︎
A punição de Assuero a Vashti é duplamente simbólica. Ele não somente lhe nega sexo, “direito” da mulher, como lhe nega uma descendência. Vashti, uma vez rejeitada, passará o resto da vida no harém, sem amor e sem filhos.↩︎