Autor Anônimo. Traduzido e adaptado a partir de um original encontrado no http://www.orange-papers.org, um website que analisava os Alcoólicos Anônimos sob um viés cético e secular.
Tudo começou inocentemente. Comecei a pensar quando frequentava certas festas, de vez em quando, como uma maneira de me enturmar. Inevitavelmente, porém, um pensamento levava a outro e não demorou que eu me tornasse mais do que um pensador social e os pensamentos começassem a se tornar mais frequentes.
Comecei a pensar sozinho — “para relaxar”, conforme acreditava, mas eu sabia que isso não era verdade. Pensar se tornava cada vez mais importante para mim, até que eu comecei a pensar o tempo todo, compulsivamente.
Comecei a pensar enquanto trabalhava. Eu sabia que pensar e trabalhar não são compatíveis, mas não conseguia parar. Às vezes, interrompia o trabalho e me escondia no banheiro para pensar um pouco. Eu morria de vergonha de meus amigos me descobrirem pensando, e até imaginava que eles percebiam pela minha expressão. Você sabe, quem pensa tem uma coisa diferente no olhar, não dá para esconder.
Comecei a evitar os meus amigos que não pensavam, para que pudesse ler Kafka ou Thoureau no intervalo do almoço. Eu voltava para o serviço tonto e confuso, perguntando-me o que exatamente significava o meu trabalho e o que estava fazendo no mundo.
As coisas tampouco estavam bem em casa. Certa noite desliguei a televisão e perguntei à minha esposa o sentido da vida. Ela teve que passar aquela noite na casa da mãe, de tão amedrontada que ficou. Ela não voltou a confiar em mim.
Logo adquiri a reputação de um pensador compulsivo. Um dia meu patrão me chamou ao escritório e disse-me: “Cara, eu gosto de você e me dói dizer isso, mas seus pensamentos se tornaram um problema real. Se você não parar de pensar aqui no emprego, terá que encontrar outro emprego.” Isto me deu muito em que pensar. Eu voltei para casa cedo depois de minha conversa com o patrão.
— Querida — disse ao chegar em casa — andei pensando que…
— Eu sei que você anda pensando — ela disse. Pensando demais para que alguém possa suportar viver com você. Quero divórcio!
— Mas, querida, não pode ser tão grave assim!
— É muito grave — ela disse, tremendo o lábio inferior. Você pensa tanto quanto professores, e professores não ganham quase nada. Então, se você continuar pensando, acabaremos sem dinheiro.
— Este é um silogismo falacioso — eu disse, impaciente, e ela começou a chorar. Foi demais para mim. Meti o pé na porta e saí dizendo que ia para a biblioteca e que ela não me esperasse.
Fui até a biblioteca sentindo uma vontade forte de ler Nietzsche, dirigi até lá ouvindo a Cultura FM no rádio. Acelerei até o estacionamento e corri até as portas de vidro… mas elas não se abriram. A biblioteca estava fechada. Uma faixa de interdição revelava que a polícia havia descoberto aquele refúgio.
Até hoje acredito que um Poder Superior estava cuidando de mim naquela noite. Ao cair de joelhos no chão diante do vidro insensível, implorando por Zaratustra, um cartaz me chamou a atenção: “Amigo, pensar demais está arruinando a sua vida?” — ele perguntava. Você provavelmente conhece esta frase: ela é encontrada nos cartazes padronizados dos Pensadores Anônimos.
E ela é a razão pela qual estou aqui hoje: eu sou um pensador em recuperação. Nunca perco um encontro dos P. A. e sempre compareço para assistir programas deseducacionais. Na semana passada foi “Big Brother”. Depois nós compartilhamos experiências sobre como evitamos pensar desde o encontro anterior e cantamos alguns sucessos de sertanejo universitário.
Ainda tenho o meu emprego, as coisas melhoraram muito em casa. A vida parece… mais fácil. De alguma forma o mundo me parece menos complicado desde que eu parei de pensar.