A Mercearia Santa Cecília é um desses lugares típicos de cidade pequena. Lá se vende de tudo um pouco, mas principalmente pães, bolos e biscoitos. Àquela hora da tarde estava movimentada por dezenas de funcionários de escritórios e lojas, que se revezavam a tomar xícaras de café expresso acompanhadas de pão fresco com manteiga. O ar estava impregnado destes odores característicos e da conversa e dos risos das moças e e dos rapazes, cortado pelos olhares fumegantes dos velhos que viam aquelas formas fartas e juvenis, aquela alegria quase esquecida deles. Uma senhora idosa comprava queijo e presunto fatiados, esquecida de tais olhares, preocupada com outra espécie de coisas, como Deus e os netos. Todos era fregueses habituais e se conheciam pelos apelidos. As conversas eram sobre assuntos imediatos, códigos instantâneos derivados de referências espontâneas. Quem ouvisse dificilmente saberia com exatidão do que se falava.
Mas naquela tarde, como em outras anteriores, a conversa foi momentaneamente habitada pela presença de um estranho. As moças deixaram por um momento de tagarelar sobre os mesmos namorados que revezavam no mesmo baile do mesmo clube na praça ali perto, os rapazes deixaram de cruzar olhares com elas, ou com outros rapazes e os velhos, por um momento, esqueceram das pernas das jovens e deixaram livre sua curiosidade sobre o forasteiro que entrou e pediu uma média com pão com manteiga. Ele tinha na voz uma inflexão estranha, um jeito de dobrar as consoantes e de prolongar as vogais que denunciava que vinha de longe, talvez até de outro estado. Com alguma sorte poderia ser estrangeiro.
Era um homem sisudo, de nariz ligeiramente adunco e cabelos negros retintos. Sua barba, que devia ser igual, transparecia através da pele pálida como uma sombra. Estava vestido de uma forma que não chegava a ser extraordinária, mas parecia um pouco fora de moda, ou talvez já fosse a nova moda que ainda não tinha chegado na cidade. Ele chegou andando calmamente, pediu licença com toda educação, abriu caminho até o balcão de aço escovado e, depois de dar um sorriso de propaganda de creme dental, fez seu pedido, mirando nos olhos da balconista de um jeito que a fez se sentir despida. Depois o sorriso se fechou de novo, como se não tivesse sido nunca aberto, e o rosto do estranho ficou a parecer uma máscara de madeira.
A balconista aproximou-se dele com cuidado, quase querendo cruzar os braços diante do busto que aparecia excessivamente no decote ousado — esta curiosa espécie de pudor que as mulheres têm quando sua ousadia faz efeito. Certificando-se, um pouquinho decepcionada, de que ele já não estava prestando tanta atenção às suas formas, perguntou-lhe o que seria.
— Uma média e um pão com manteiga na chapa — ele respondeu.
Sem mostrar reação, a balconista deu-lhe as costas e preparou o pedido com a precisão peculiar de quem faz a mesma coisa muitas vezes por dia. Com a faca serrilhada, partiu facilmente ao meio um pão e o untou com a manteiga meio derretida que estava em um pote ao lado da chapa quente. Com uma espátula, manipulou as fatias até dourarem e depositou-as em um pratinho já coberto por um guardanapo de papel. Depois rodopiou até a máquina de expresso e extraiu meio copo de café densamente negro e perfumado. Trouxe ao balcão o pratinho com o pão com manteiga e pôs ao seu lado o copo com café e completou-o até a borda com leite morno, extraído de uma leiteira de aço.
— Muito obrigado — agradeceu o estranho.
E contemplou o copo repleto, talvez se perguntando como faria para adicionar o açúcar. Tendo se certificado de que isto seria bem difícil, tratou de sorver um gole inicial sem doce mesmo, ao preço de uma careta e de uma mordida prematura em uma das fatias de pão, deliciosamente queimada na borda, como convém. Tendo obtido algum espaço no copo, derramou nele um pouco de açúcar e começou a mexer com a colherinha.
O modo como mexia a colher para misturar o açúcar, a delicadeza antiquada com que envolveu a fatia de pão no guardanapo de papel, sua paciência de bebericar o café com leite entre sopros quase inaudíveis… Cada uma destas coisas era normal, somente o conjunto delas surtia o efeito de estranhamento. Aquele homem passava impressão de meticulosidade, de cálculo, uma elegância que não era, de forma alguma, habitual.
O estranho não sabia que sua chegada cortara conversas, diminuíra o volume das vozes, retivera atenções. Teria sido, de certa forma, um conhecimento inútil, considerando seus objetivos. Objetivos que, por outro lado, eram a principal curiosidade para as pessoas que estavam no estabelecimento enquanto ele inocentemente tomava sua média e comia seu pão com manteiga.
Quando já estava por terminar, chamou novamente a atenção da balconista, mas da segunda vez não foi para outro pedido:
— Estou procurando um endereço, poderia me ajudar?
A balconista interrompeu por instantes sua volta à rotina e lhe concedeu migalhas de atenção. O estranho tirou do bolso um papel amassado, no qual se lia um endereço próximo, em caligrafia apertada e angulosa — que até parecia letra de médico. O estranho parecia bom conhecedor da alma humana e, entrevendo a curiosidade feminina, tratou de saciá-la para comprar cooperação:
— Um amigo que mora nesse endereço telefonou me convidando a uma visita. Acontece que nunca vim a essa cidade e não tenho ideia de onde fica o lugar.
A balconista decifrou os hieróglifos e apontou uma direção:
— É pertinho. Segundo prédio, descendo a calçada.
— Muito obrigado. Quanto é tudo?
Diante do preço, o freguês talvez tenha imaginado que até a informação tinha sido incluída na conta. Mesmo assim agradeceu de novo e seguiu a direção indicada. Vários olhares se cravaram em suas costas enquanto ele saía, mas depois se perderam de novo em suas conversas cotidianas. Talvez apenas o forasteiro tivesse ficado um pouquinho preocupado se tivesse percebido que a moça do caixa, uma loura vesga e magra que usava a roupa larga, talvez para disfarçar uma magreza anômala, pegou um telefone móvel e avisou, numa ligação brevíssima: “Ele chegou”.
O estranho caminhou mais alguns passos, olhando com atenção as plaquinhas com os números dos prédios, pois já passara antes duas vezes pela mesma rua se notar o 433. Daquela vez, porém, conseguiu achar: estava oculto dentro de uma varanda, perto dum vaso de samambaia. Ao lado da varanda subia uma escadaria. “Número 433, Segundo Andar.” Só poderia ser lá.
A porta ficava na lateral do apartamento, oculta da visão da rua graças ao pórtico de cimento que havia sobre a saída da escadaria, no qual se localizava uma jardineira cheia de voluptuosos arbustos com flores. Tocou a campainha.
O apartamento estava todo fechado e de dentro só se ouvia um ruído muito baixo, como o de um aparelho elétrico funcionando continuamente. A custo pôde ouvir o raspado de passos que se aproximavam da porta. Conseguiu imaginar o amigo verificando pelo olho mágico se era era seguro abrir, e isto deu-lhe a impressão de que a vizinhança não seria segura como parecia.
O forasteiro não poderia estar pronto para a cena inusitada com que se deparou quando a porta foi aberta: uma figura vestida de negro dos pés à cabeça, esta quase completamente envolta por um engraçado chapéu pontiagudo, revestido de papel aluminizado. O formato daquele adereço concentrou a atenção do forasteiro, que tinha ganas de rir, mas receava ferir os sentimentos de seu anfitrião. Por fim, num esforço da vontade, desviou o olhar do misterioso chapéu e percebeu que o jovem que atendera à porta também estava calçado de pantufas de veludo e usava óculos com aros de plástico, emendados com epóxi.
Depois de alguns instantes de estranhamento, o forasteiro pôde conectar a figura que tinha diante de si com a fotografia conhecida da pessoa que o convidara:
— Vítor? Que…?
— Boa tarde, Chico.
— Eh, sim. Boa tarde. Mas… que diabo é isso na sua cabeça?
— Isso!? Ah, uma longa história. Entre.
Conheciam-se da Internet. Eram coproprietários duma “comunidade” de usuários em um sítio de relacionamentos. Trocavam mensagens eletrônicas quase diariamente, mas não haviam nunca sequer ouvido a voz um do outro. Apesar disso, haviam desenvolvido um respeito mútuo, construído exclusivamente a partir da capacidade que cada um demonstrava ao argumentar.
Nada disso, porém, daria ideia da cena que Francisco achara. A visão de Vítor naqueles trajes, àquela hora da tarde, não era fácil de aceitar racionalmente. Francisco era um homem do tipo racional e razoável, com atitudes e conceitos bastante normais para os fatídicos anos 2000. Especialmente considerando o tipo de nicho em que a “comunidade” estava inserida.
Para Francisco, as personalidades que empregava na internet eram todas ficções, imposturas que lhe convinham, pordiversão ou por estratégia. Mas sabia separar os “cavaleiros das trevas” daquilo que ele próprio realmente era. Sabia, porém, que algumas pessoas não têm a mesma capacidade, ou preferem assumir personalidades semelhantes, dentro e fora do virtual. Nem sempre fica claro qual se baseia em qual. No caso de Vítor, pesava a forte suspeita de que a personalidade real havia sido, de algum modo, alterada pelas experiências que o virtual proporcionara.
Aceitou o convite já meio receoso. Temia encontrar, talvez, o porão cheio de esqueletos, ou o refrigerador cheio de cadáveres semidevorados de garçonetes. Demorou a se acostumar à penumbra que reinou na sala depois que Vítor fechou a porta por onde entrara. As vidraças estavam meticulosamente cobertas, deixando passar só algumas gotas esparsas da luz forte do sol de setembro.
Quando os olhos se acostumaram, notou a natureza do estranho brilho que brevemente percebera quando a porta fora aberta da primeira vez: as paredes eram meticulosamente cobertas de papel aluminizado — certamente o material que vedava as janelas e impedia a luz da primavera de entrar. Mesmo diante de mais esse choque, manteve-se frio e tentou conduzir uma conversa normal:
— Não sabia que você usava óculos.
— Ah, sim. Quase só tiro fotos sem. Por causa do reflexo.
Por mais que tentasse se controlar, era impossível. Dentro de suas orelhas lhe gritavam perguntas teimosas, que precisavam ser feitas:
— O que significa isso, Vítor? Esse papel alumínio…
Vítor pareceu surpreso pela pergunta:
— Uai, Francisco? Você, mais do que ninguém, deveria saber…
De fato sabia. Só não conseguia imaginar que Vítor levasse a sério a história de proteção contra forças espirituais malignas que vagam no etéreo. Para Francisco, grimórios eram apenas antigos incunábulos medievais e renascentistas com obscuras fórmulas de paganismos esquecidos, assunto meramente literário e histórico, de forma alguma real. Mas ali estava, diante de seus olhos, o coproprietário e principal moderador da comunidade “Livros Malditos” residindo em um apartamento de paredes cobertas por papel-alumínio. A implicação disso era ainda mais grave: como as forças do etéreo supostamente só se interessavam em impedir a obra dos evocadores, colocar proteção contra elas significava que o morador daquele apartamento andava conduzindo seus próprios rituais na Tradição. Pela primeira vez Francisco se sentiu enervado de estar ali. Tentou contemporizar:
— Vítor, eu não creio que papel-alumínio…
— Psiu, ouça.
Francisco calou a boca e ouviu apenas a passagem de um carro. Algo decepcionante para o outro. Quando quis retomar o assunto, Vítor já tinha sequestrado a conversa para outro rumo:
— Na verdade é algo que também venho pensando, Chico. Papel-alumínio talvez não seja uma proteção eficaz. Talvez tenhamos de obter algo melhor.
Começou temer que o Vítor estivesse louco. No caso de estar tentando obter o “algo melhor” que Francisco imaginava, loucura teria sido pouco. Mas, mesmo dentro dos limites de sua crença absurda, ele continuava se comportando de forma aparentemente coerente. Convidou-o a sentar-se e ofereceu suco de laranja.
— Há umas coisas de que preciso lhe pôr a par, Chico. Imagino que recebeu meu convite para a comunidade nova esta semana, não?
— A “Confraria dos Temerários”? Sim, recebi. Até já aceitei e, se não me engano, você até me pôs como coproprietário.
— Era o mínimo a fazer, pois você me fez coproprietário da “Livros Malditos”. Devo-lhe muito dos meus conhecimentos, caro Francisco. Por isso, mesmo estando a ponto de superar o que você me ensinou, eu me sinto no dever de compartilhar tudo contigo.
— Só não entendi o propósito da “Confraria”. Não ficou claro para mim que tipo de experiências teremos. Afinal, você diz na descrição que não se trata de nada conhecido, nenhum grimório antigo… Parece que não quer, ou não sabe dizer do que se trata. Aliás, foi justamente a curiosidade em saber o tipo de trabalho que vocês pretendem fazer que me trouxe aqui.
— Exato, exato. Tive um conhecimento novo esse mês, Chico. Algo fascinante, inacreditável. No entanto, para ir até o fundo disso que descobri, vai ser preciso obter a ajuda e a energia de mais pessoas. Preciso dessa ajuda para conseguir fazer andar algo que pode mudar nosso entendimento da magia simpática tradicional.
Francisco teve vontade de contar a Vítor que “magia simpática tradicional” era para ele apenas objeto de estudos filológicos, antropológicos, históricos, etc. Reteve a confissão na boca ao pensar que, se Vítor não percebera isso nos dois anos em que fora coproprietário da “Livros Malditos”, não seria mesmo elegante — e nem seguro — jogar-lhe isso à cara naquele momento.
— Tudo bem, quando faremos o sacrifício humano? — perguntou, de forma irônica e preocupada. Se desconfiava da sanidade do amigo, melhor averiguar logo até que ponto estava fora de si.
— Que sacrifício humano, Chico? Está doido, ou esqueceu de tudo? Sacrifícios humanos não são para isso. Estamos falando de forças elevadas e não de necromancia barata.
— Exatamente que tipo de forças?
— Você logo saberá.
Francisco sentiu-se meio idiota por ter pensado em sacrifício humano, mas era tranquilizador saber que o claro desatino do amigo não atingia proporções homicidas. Confortado, resolveu jogar segundo as regras do outro. A tarde estava perdida mesmo.
— Muito bem, então vamos logo.
— Venha comigo.
Levantaram-se e saíram da sala para a copa. Lá Francisco teve outra visão chocante: havia mais quatro pessoas, três mulheres e um homem, todos vestidos de negro como Vítor, usando semelhantes chapéus pontudos e revestidos de alumínio, ao redor de uma mesa de madeira negra.
— Boa tarde, Grão-Mestre — disseram em coro.
— Grão-Mestre? Como?
— Antes de explicar, Chico, apresento os confrades Valdo, Lúcia, Patrícia e Cátia.
Ele disse os nomes apontando a cada um, cada vez sendo concluída com um aceno de cabeça. Valdo era um jovem sardento e um tanto magro, que roía as unhas desagradavelmente. Lúcia era a mais alta, a mais corpulenta também, a mais desagradavelmente pálida. Patrícia tinha uma pele morena bem mais saudável, uma certa determinação no olhar que sugeria um pouco de estabilidade emocional. Cátia, por sua vez, não tinha nenhuma característica que ressaltasse e poderia ter uma aparência quase normal não fosse o piercing enorme no nariz e a maquiagem exagerada. Aquele grupo de confrades não parecia muito promissor.
Cátia ergueu a voz, firme e rouca, pedindo a Francisco que se sentasse à cabeceira da mesa, de costas para uma parede de que pendia uma cortina escura. Ele obedeceu, quase mecanicamente, e aguardou que as coisas caminhassem com naturalidade porque, de fato, não tinha a mais remota ideia do que estava fazendo ali no meio daquela gente. Apenas vestiu uma expressão séria no rosto, pôs as mãos sobre a mesa e olhou para os demais, esperando que lhe dessem a deixa do que deveria dizer ou fazer. Tendo deixado Francisco à vontade à cabeceira da mesa, Vítor pediu silêncio e passou a explicar os propósitos da reunião.
— Nosso plano é executar uma Grande Obra Mágika, a partir de certas informações que descobrimos recentemente. Já faz um mês, pelo menos, que estamos nos reunindo pela Internet para acertar os detalhes. O que nos faltava era só alguém com conhecimento dos mistérios que nos pudesse guiar pelo Caminho. Então surgiu o seu nome: você é dono da “Livros Malditos”, autor de vários artigos sobre antigos grimórios e ritos perdidos, artigos que nós todos lemos e de que aprendemos muita coisa. Você possui e leu inúmeras obras sobre Mágika, tais como o “Ramo Dourado” de James Frazier, o “Dogma e Ritual” de Papus, etc. Além disso, você foi o único que deu a entender que já tinha ouvido falar do Ritual do Livro Branco. Por isso, embora eu inicialmente não pensasse em trazê-lo ao grupo, você se mostrou a pessoa mais indicada, mais até do que eu mesmo, para a missão que vamos começar nesta tarde. Amigos, provaremos o Desconhecido.
Então Francisco entendeu o motivo da reunião. O Ritual do Livro Branco era uma das coisas mais estranhas e esquizofrênicas de que ouvira falar, com alto potencial de causar demência ou, pelo menos, irremediável perda de tempo. Consistia em tentar produzir o livro mágico original a partir da inspiração de uma “alma coletiva” criada em um “círculo de energia mística” reunido em local especialmente configurado — o que explicava o revestimento de alumínio, para “isolar” influências exteriores, as roupas pretas, para evitar que a atenção fosse distraída por cores, e os chapéus pontiagudos, que funcionariam como antenas de captação da tal energia mística. Do meio das bobagens que seriam obtidas, os praticantes isolariam padrões e textos que permitiriam obter uma revelação da perfeição original. Seria um processo longo e difícil, pois haveria muito material para analisar e não era possível dividir o trabalho entre dezenas ou centenas de pessoas sem reduzir a qualidade. Talvez por esta razão, o sistema nunca fora implementado antes. Era incrível que alguém, em pleno século XXI, tivesse concebido uma coisa tão supersticiosa e ignorante do real sentido da magia antiga, mas era concebível que jovens sem nenhuma formação em Antropologia ou História se deixassem fascinar por tal coisa. Pelo menos não era um ritual que envolvesse sacrifício humano.
Fingindo fechar os olhos, mas mantendo-os ligeiramente abertos, Francisco começou a pensar nas opções que tinha. Se deixasse o apartamento zombando das crenças deles, todos certamente ficariam todos muito ofendidos, mas isso talvez não os demovesse de sua obsessão. Se ainda continuassem pensando em fazer magia tentariam fazê-lo sozinhos, sem a presença de alguém mentalmente estável que pudesse interromper a loucura quando a coisa saísse dos eixos ou, pior, poderiam encontrar alguém ainda mais louco e perigoso para servir-lhe de guia. Mas se ficasse, teria uma chance mínima de mostrar-lhes, usando sua recente autoridade de Grão Mestre, que era tudo uma grande bobagem. Por isso, ou por ter sido seduzido por esta expectativa de poder, disse “sim” ao estranho grupo diante do qual exerceria desde o primeiro momento, o papel de supremo líder.
— Eu aceito, claro, mas com uma condição: preciso saber, desde já, o que vocês pretendem quando conseguirem preencher o Livro Branco.
Os cinco se entreolharam, meio perdidos, ou receosos.
— Queremos o conhecimento — respondeu o sardento.
— Conhecimento para obter o amor — disse Lúcia, sem disfarçar os dentes tortos.
— Poder, controle, autocontrole — disse Vítor.
As respostas eram coerentes com o tipo de pessoas que os cinco mostravam ser: inseguros, socialmente reclusos e mentalmente instáveis. Certamente custava-lhes um esforço imenso o comparecimento àquela reunião. Para pelo menos um deles aquela poderia ser a primeira vez que entrava em uma casa estranha. Francisco se identificou com eles, de certa forma. Dez anos antes também tinha sido inseguro e triste, recluso e cheio de ansiedade pelo amor. Talvez conseguisse ajudar aqueles cinco a superar seus bloqueios sem os sofrimentos que ele próprio tivera que vencer. Esta magia poderia ser mais útil do que qualquer fórmula boba escrita em um caderno. Enquanto estivessem trabalhando naquela obra inútil, pelo menos estariam construindo relações de amizade, rompendo o casulo que os isolava em seus mundos particulares. Com alguma sorte, poderiam desistir daquilo e seguir com a vida, levando algo de bom.
— Como pretendem conseguir fazer a análise? Das outras vezes em que isso foi tentado não resultou em coisa alguma. Lembro-me agora que uma tal Jeanneline Dubois tentou na Luisiana, há cerca de quarenta anos. Ela ficou oito anos estudando milhares de folhas de rascunhos e só produziu cinco laudas de texto fragmentário.
— Temos algo que não existia há quarenta anos.
Na parede oposta havia um móvel de madeira escura, parcialmente coberto por uma toalha bordada. Vítor se levantou, foi até lá e o descobriu, mostrando um computador pessoal.
— Pretende processar eletronicamente os textos?
— Exato. Este computador foi cuidadosamente preparado para esta tarefa. Para começar, nós compramos suas peças separadamente em depósitos de ferro-velho eletrônico e o montamos nós mesmos. Em seguida compilamos para ele uma distribuição Linux contendo exclusivamente o software de que precisamos. Estamos quase terminando de escrever o código do compilador que vai analisar as amostras de textos. Quando pronto, imprimiremos o documento com esta impressora.
Vítor abriu a porta e mostrou, no cômodo ao lado, uma gigantesca máquina que parecia saída de um filme de ficção científica de trinta anos antes.
— O que esta impressora tem de especial? Além de enorme?
— Trata-se de uma laser de baixa definição, clone das Apple antigas, ainda do tempo do DOS.
A simples presença daquela impressora ali no apartamento era quase tão surreal quanto os chapéus revestidos de alumínio.
— Onde conseguiu esse dinossauro?
— Você nem imagina o que se pode comprar nesses leilões online.
— Não quero nem pensar no quanto ficou caro remeter isso lá da Rússia, ou seja de onde for!
— Com certeza ficou bem caro, mas valeu a pena.
— Por que?
— Como você sabe muito, todas as impressoras fabricadas ou homologadas nos Estados Unidos desde há pelo menos vinte anos contêm um código de identificação embutido no padrão da tinta ou na distribuição do toner. Isto quer dizer que seria possível, com algum trabalho, identificar a origem de qualquer documento, descobrindo qual impressora o imprimiu.
— Então esta impressora, especificamente, deve ter este padrão.
— Só que ela já foi comprada e vendida inúmeras vezes. Nós a compramos, na verdade, de um ferro-velho eletrônico, quase a um preço de banana. Gastamos mais dinheiro trazendo-a para cá e tentando consertar do que realmente pagamos nela.
— Tudo isso para apenas ter uma impressora difícil de rastrear? Isto é loucura!
— Não diga isso, você mesmo já escreveu que “nada que seja feito para proteger a liberdade de expressão pode ser chamado de erro”.
— De fato, mas… era necessário chegar a esse ponto?
— Certamente. O Livro Branco teria o poder de mudar o modo como vemos e entendemos o mundo. Quando ele surgir, metade das religiões e filosofias se tornará história. Certamente esse impacto não será bem-vindo e por isso acreditamos que haverá um grande interesse em censurá-lo, seguido de uma tentativa de destruir quem o produziu.
Francisco olhou em volta. Os olhos e rostos daqueles garotos estavam cheios de vontade de mudar o mundo, e eles acreditavam com toda sinceridade que conseguiriam mudar o próprio curso da civilização com os seus atos. Como somos ingênuos quando jovens! Parece tão fácil manipular a funda de Davi! Era fácil sentir simpatia por eles, mas ao mesmo tempo era difícil deixar de lado a impressão de que estavam lamentavelmente fora de controle em suas ideias de revolução. Era difícil até supor que conseguiriam produzir o Livro Branco, então como dedicar tanta preocupação às consequências?
— Preciso saber em que ponto estão. Mostrem-me seu trabalho.
Vítor abriu uma pasta preta que estava sobre a mesa e começou a distribuir material. Nessa tarefa ele era exímio e só mais tarde Francisco entendeu porque, quando soube que era bibliotecário. Inicialmente vieram blocos de notas pautados e canetas pretas de ponta grossa, adequadas a míopes. Por fim a apostila, impressa em letras góticas de leitura desconfortável, na qual estava explicado, em linhas gerais, o Ritual do Livro Branco.
A origem da apostila, traduzida de um jeito capenga, como se o tradutor fosse mais fluente em inglês que no vernáculo, era a Internet, um sítio pseudo pagão britânico, cujo endereço ficara impresso no rodapé de cada página, certamente por descuido de quem formatara tão às pressas aquele documento.
— Na verdade esta é a primeira vez em que nos reunimos presencialmente. Todos os contatos anteriores foram na Internet. Porém, traçamos um plano geral do que sabemos e do que pretendemos. Esta apostila é a que mais se aproxima do que já sabemos. E esta — indicou outra ainda não traduzida, que parecia estar em um idioma diferente do inglês — parece conter boa parte do que ainda precisamos saber. Não temos, infelizmente, o trabalho de Jeanneline Dubois.
— Posso providenciar isso depois. Agora, por favor, alguns minutos de licença.
Começou a ler. Eram quatorze páginas, uma leitura rápida para quem tinha leitura dinâmica. Ao final, depositou a apostila sobre a mesa com cuidado e olhou nos olhos dos confrades.
— Vamos precisar de mais do que seis pessoas para fazer tudo isso. Eu já tinha ouvido falar do Ritual do Livro Branco, mas o procedimento que está descrito nesta apostila é mais complicado. Jeanneline seguiu um procedimento muito menos complexo, talvez porque trabalhava sozinha e tinha noção de suas limitações. Certamente pode funcionar, porque os princípios são corretos, mas isso não é trabalho para meramente seis pessoas. Na verdade, acho que nem sessenta pessoas, em toda uma vida, conseguiriam levar esta obra até o final.
— Está esquecendo do computador.
— Mesmo com o computador continua um Trabalho de Hércules. Imagino que o computador só será útil na fase de análise textual, isto se tivermos até lá conseguido desenvolver um algoritmo de procura que permita localizar os trechos relevantes. Antes sequer começar a fazer esse processamento, será preciso obter o material fonte e digitar tudo. Sem falar que alguns elementos não são fáceis de processar eletronicamente, como desenhos, gráficos, acrósticos e caligrafias.
— Na prática isto quer dizer: “começar logo”.
— Na prática isto quer dizer: “mais gente”.
— Temos mais gente, não se preocupe.
Vítor se ergueu da mesa, ao toque quase imperceptível de seu telefone móvel, e foi abrir a porta. Entraram mais quatro pessoas, entre elas a moça loura e vesga que trabalhava no caixa da mercearia. Vítor beijou-a na boca e lhe fez uma carícia nos cabelos de múmia. Todos vieram para a copa, onde se localizava a mesa de reuniões. Mais cadeiras foram providenciadas.
— Então somos dez? — indagou Francisco.
— Doze — interveio a recém-chegada namorada do Vítor — mas os outros tiveram que se atrasar hoje, por compromissos de trabalho.
— Acha que é suficiente, Vítor?
— Não sei. Sinceramente não sei. Vamos começar com o que temos…
Esta pequena dose de realismo, talvez até de humildade, parecia destoar da autoconfiança quase excessiva que predominava no grupo. Indício isolado de racionalidade, sinal de que não havia sido perdido todo o contato com a lógica, apesar do comportamento paranoico que o grupo exibia. “Não é paranoia quando realmente estão atrás de você” — dizia um antigo humorista. Será que realmente viriam atrás do grupo? Ou estaria Francisco sucumbindo às suas ilusões?
A loura vesga entregou um embrulho a Vítor, que o guardou na geladeira depois de agradecer com outro beijo que quase dava asco, tanta a feiura da moça. Talvez o beijo fosse uma prova melhor de insanidade do que a própria conspiração em que estavam metidos.
— Com o que, então, devemos começar a tentar obter o material base dos estudos — interveio Francisco, tentando evitar que a reunião degringolasse para uma exibição de carícias de Vítor na vassoura de piaçava amarela.
— Exatamente — disseram vários, em coro ansioso que demonstrava sentimentos possivelmente semelhantes.
Então todos se sentaram em torno da mesa, enquanto Vítor trazia mais material de trabalho. Francisco olhou pela janela e viu o sol escaldante lá fora, pensando consigo que seria melhor ficar pelo menos até a tarde refrescar. “Depois vou embora e desapareço, antes que resolvam me matar”.