Nem só de pão de ló viverá o político,
Mas de toda verba que saia do bolso do povo.
— Novos Provérbios de Jésus Cristino.
Maria Bethânia atraiu uma grande reação quando “se soube” que ela teria apresentado ao Ministério da Cultura um projeto para desenvolver um blog de poesia e obtido uma licença para captar R$ 1.300.000,00 (coloquei assim, com todos os zeros, para que vocês possam tentar visualizar melhor a cifra). Seguiu-se grande indignação pilotada pela mídia amestrada (aquela que abana o rabo quando lhe mostram o osso de uma polêmica) e surgiram desmentidos e explicações. Parece, isto é, “parece” que tal cifra não se refere à “recursos federais” mas a uma “autorização para captação de recursos” junto a patrocinadores, usando a Lei de Incentivo à Cultura. Assim, tenho feito esta breve apresentação do caso, acompanhada das devidas considerações necessárias para que eu não recaia em qualquer afirmação que sim ou que não (palavras estas, ambas, inexistentes no vocabulário do legítimo mineiro).
Mas o caso deste post não é comentário sobre a moralidade envolta no caso, ou possível falta disto. Não me julgo árbitro capaz da moral alheia, tanto que, aliás, nem acho que “moral” exista a não ser nos catecismos — e estes, vós todos sabeis, não fazem parte de minha biblioteca. O caso deste texto é mais intangível porque, de fato, em toda essa história, o proverbial e metafórico buraco é muito mais embaixo.
No centro desta questão há um fato: não se dá valor nenhum à poesia nesse país. Tivesse Maria Bethânia se proposto a fazer um blog sobre política ou sobre viagens de férias e certamente muita gente teria protestado menos, até aplaudido. O que detectei em muitos dos mais venenosos comentários foi o escândalo pelo fato de alguém, em algum lugar em Brasília, ter considerado que poesia valha um milhão de reais.
De fato é surpreendente que em Brasília, cidade erguida em material antialérgico sobre uma superfície devidamente esterilizada, existam pessoas com tal consideração pela poesia. Cá de longe a maioria das pessoas não supõe que exista sensibilidade em Brasília, apenas políticos e filhos da classe média que queimam índios para passar o tempo. A notícia, portanto, traz embutido um alento: talvez Brasília não seja um caso perdido, pois a cidade onde há pessoas que acham que a poesia vale um milhão de reais é um lugar que certamente merece considerações.
Mas o espanto teria sido o mesmo se não tivesse vindo de Brasília. Porque o problema do povo não é com a capital, mas com a poesia. Onde já se viu alguém achar que poesia vale tanto. “Com tanta gente passando fome”, certamente em algum lugar algum boçal está pensando. Boçais são pessoas que mesmo sendo crentes de carteirinha ignoram que o próprio Jesus teria dito que “nem só de pão vive o homem”. Vive o homem também de poesia.
Mas as pessoas, algumas devidamente providas de suposta cultura que lhes capacitaria a não pensar de forma tão automática e de forma tão alinhada com os preconceitos automáticos do vulgo, se surpreenderam com isso: “Ora, bolas, um milhão de reais para declamar poesia? Que absurdo!”
Essa gente, decerto, não acha errado que um jogador de futebol iletrado e não necessariamente talentoso ganhe mais que o Presidente da República ou que um ogro sem dicção e sem cultura musical enriqueça berrando palavrões a que certo tipo de “gente” chama de “música”. O problema não está em receber um milhão de reais, é receber tal soma em troca de poesia. Se fosse em troca de cocaína haveria quem abrisse a boca admirado. Se fosse em troca de fazer um filme pornô, haveria quem achasse “sensato”. Mas ganhar dinheiro com poesia? Onde já se viu isso? Poeta não tem que morrer louco e faminto?
Na mente de muitas pessoas não há lugar para a poesia — e consequentemente não lhe dão valor. Se Betânia estivesse pedindo seu milhão de reais para fazer um desses “projetos sociais” com crianças carentes não haveria uma só voz de crítica. É com demagogia assim que as pessoas sem talento infundem complexo de culpa nos menos espertos: “como você ousa criticar o Vadico do Cavaco assim, ele tem um projeto social com crianças cancerosas e você não faz nada pelos outros.” Foda-se quem pensa assim, as pessoas devem ganhar dinheiro fazendo o que se propõem a fazer. Maria Bethânia faz música, faz poesia, faz cultura. Ela não precisa beijar criança ranhenta para mendigar patrocínio. Pessoas como ela são (ou deveriam ser) um patrimônio da cultura nacional. Maria Bethânia sequer precisaria pedir esse dinheiro: em um país sério isso lhe seria espontaneamente ofertado.
É incrível como as pessoas chegam a pensar que fazer e distribuir poesia nesse mundo tão carente dela seja “absurdo”. Talvez se houvesse nesse país um pouco mais de poesia haveria um pouco menos de fome. Quando matam a poesia, vai junto a consciência do povo, e daí se pode impunemente resvalar na superficialidade e no egoísmo. Daí se pode chegar ao ponto de vivermos de aparências e de fingimentos. Quanta gente famosa por aí não finge que canta, que atua, que escreve… A cultura passa a ser mercadoria, passa a ser uma maneira de canalizar dinheiro, uma indústria. Mas a poesia, nas mãos de uma pessoa cuja vida construiu a dignidade que deveria ser suficiente para estar acima destas línguas sujas que a vituperam, não vale um milhão de reais.