Entre as muitas coisas polêmicas que me encasquetam a cabeça a respeito de temas literários reside uma em particular que me tem inquietado muito: o significado de Paulo Coelho para a literatura de um modo geral e para o mercado editorial de forma mais específica. Acredito que o mago tenha se tornado uma personalidade que ninguém pode ignorar, sob pena de ser ignorante. Podemos amá-lo ou odiá-lo, mas não podemos mais fingir que ele não existe. Infelizmente, muita gente finge. E muita coisa não se compreende a respeito do enigma que ele representa.
Em primeiro lugar, devo dizer que minha opinião sobre sua qualidade literária é conhecida: Simplesmente não vejo nenhum valor em nada do que ele escreveu até hoje e penso que enquanto escritor ele é um excelente mago. Ainda acrescento que sou inteiramente cético quanto a magia. Preciso começar dizendo isso para que os desavisados incapazes de boa interpretação de texto não venham a pensar que eu estou aqui defendendo esse embromador.
De certa forma, porém, odiar Paulo Coelho é tão inútil quanto amá-lo: uma e outra atitude não muda nenhum fato a respeito do autor e seus livros e ambas são irrelevantes para o público cativo do tipo de literatura a que o mago se dedica. Desta forma, a relevância a que me refiro não está no autor e nem em sua obra, mas no curioso fenômeno editorial em que ele se transformou. Estudar a biografia de Paulo Coelho e observar como ele veio a se tornar o que ele hoje é. Quando pensamos em todos os paradigmas quebrados por Paulo Coelho, fica evidente que ele representa algo diferente no universo literário (não nos cabe julgar se bom ou ruim) e que a sua posição no mercado editorial é digna de nota.
Os comentaristas brasileiros tendem a ser unanimemente críticos quanto à obra do mago, reservando-lhe os mais ferozes adjetivos. Eu mesmo me insiro nesses, tendo-lhe acusado até mesmo de ter um domínio insuficiente da língua portuguesa e de desconhecer técnicas narrativas básicas. Poucos são os comentaristas eruditos que se acercam dele sem pesadas pedras nas mãos (eu mesmo levei todas as que pude carregar e ainda tinha uma sacola cheia à tiracolo). Um dos que olharam para Paulo Coelho de forma mais leve e neutra foi o iraniano Arash Hejazi, cujo texto The Alchemy of the Alchemist tece comentários dignos de nota.
Hejazi começa lembrando quem era Paulo Coelho em 1988, antes do sucesso de O Alquimista: um autor então desconhecido, vivendo no Brasil, um país que não tinha uma tradição relevante de traduções de sua literatura para outras línguas. Poucos de nós nos lembramos disso quando colhemos calhaus por aí para atirar nos outros. Paulo Coelho se tornou um best-seller internacional vencendo uma série de barreiras que ninguém antes dele vencera. Será que não nos interessa saber como ele fez?
Paulo Coelho tornou-se desde então um dos autores vivos mais traduzidos do mundo e embora seus livros nem sempre estejam entre os mais vendidos em todos os países, em todos eles vendem suficientemente bem para serem um investimento rentável para seus editores e se em números absolutos. Isto se torna ainda mais significativo se considerarmos que, na grande maioria dos países do mundo, as obras traduzidas vendem menos do que as obras produzidas localmente (o Brasil é uma curiosa exceção à regra, com os best-sellers internacionais roubando mercado dos autores nacionais). Além do mais, alguns dos países nos quais Paulo Coelho se tornou um fenômeno de vendas (como França, Estados Unidos, Alemanha, Turquia, Irã, Itália, Grã Bretanha e Espanha) possuem literaturas fortes e variadas e o mercado editorial de pelo menos dois desses países (Grã Bretanha e Estados Unidos) é bastante fechado a autores estrangeiros, a não ser que algum fator externo (como um Prêmio Nobel ou a invasão de seu país pelos Estados Unidos) atraia interesse.
Não podemos esquecer que Paulo Coelho nasceu em algo que poderia ser chamado de “berço de ouro”, uma família de classe média alta do Rio de Janeiro. Graças às posses da família e aos contatos que ele mesmo construiu no mundo artístico, o autor começou muito cedo a travar relações com gente do nível de Raul Seixas e Christina Oiticica (mais tarde sua mulher), ganhando visibilidade no cenário cultural brasileiro. Certamente o nome que construiu como parceiro de Raul não lhe atrapalhou quando quis cruzar a ponte para a literatura.
Estas amizades tiveram também um papel preponderante no início da divulgação internacional de O Alquimista: foram conhecidos de Paulo Coelho que se dispuseram a trabalhar quase gratuitamente para traduzir, agenciar ou até publicar no exterior aquele que viria a ser o primeiro sucesso do mago. Houve até o caso de uma fã, filha de um editor, que rompeu com o negócio do pai e fundou a sua própria editora para publicar o livro depois que o pai se recusara, por julgar o livro muito ruim. De uma forma que até parece sobrenatural, todos esses acontecimentos se encadeiam e levam ao sucesso de uma forma totalmente inesperada, e até contrária ao modo como funciona o mercado editorial em condições normais.
Hejazi ressalta que o sucesso de Paulo Coelho foi frontalmente em contradição com os princípios tácitos que regem o mercado: a) um autor obscuro; b) de um país periférico; c) que escreve em uma língua que não está entre as dez mais traduzidas; d) um livro que não recorre ao exotismo local (estilo “macumba para turista”); e) que foi publicado de maneira independente; f) não teve uma página sequer de crítica favorável em qualquer veículo de imprensa; g) e não foi transformado em filme de sucesso h) nem teve qualquer campanha de publicidade relevante. Paulo Coelho nunca contratou agentes a peso de ouro e não escolheu um título de impacto, desenvolvido de acordo com regras semióticas precisas. Sem qualquer dessas características que o mercado editorial aconselha como “essenciais” aos livros de sucesso, ainda assim o mago conseguiu “chegar lá”, vendendo mais que os livros de muita gente que fez tudo “certo”. Quais as chances de isto ocorrer de maneira “natural” e “orgânica”?
Evidentemente, esse sucesso remando contra a maré não pode ser ruim para os interesses dos demais autores nacionais. Quando o mercado desenvolve uma “fórmula” (tal como a descrita por Hejazi) e passa a martelar dentro desta “forma” as obras que pretende publicar, isto significa que numerosas obras, inclusive algumas de boa qualidade, serão rejeitadas e destinadas ao esquecimento não por seu valor, mas por simplesmente não se adequarem aos preconceitos dos editores. Não custa lembrar que outro grande fenômeno, J. K. Rowling, ouviu sete vezes o “não” de editores a quem enviou seu livro. Rowling chegou a ouvir que escrever não era para ela.
Mas existe algo especial a respeito do sucesso de O Alquimista: todos os envolvidos em sua tradução e publicação foram pessoas que gostaram tanto do livro que resolveram empenhar-se pessoalmente em publicá-lo, expondo-se em nome disso. O livro foi lido e foi gostado e a partir de então foi transformado em um projeto pessoal por tradutores e editores. Isto, claro, depois que o próprio Paulo Coelho investira seu próprio patrimônio em sua edição e dedicara-se a vendê-lo, praticamente como um mascate, nos eventos culturais de que participava.
O que há por dentro já não importa tanto. Como dizia McLuhan, em uma frase que se tornou praticamente um meme: O meio é a mensagem. Paulo Coelho não é um autor relevante pelo que escreve, mas pelo fato de ter conseguido ser um sucesso mesmo contrariando a todas as regras “infalíveis” do mercado editorial. Nesse sentido, o mago nos inspira a acreditar no próprio trabalho, em vez de acreditarmos na opinião muitas vezes preconceituosa de algum editor.
O cuidado que temos ter é o de não gritarmos “Ah, eu tô maluco!” quando tivermos a chance de ter microfone diante de nós.