Estávamos conversando despreocupadamente entre uma cerveja e outra quando o meu amigo me olhou, pensativamente, e disse, com a gravidade de quem profere um aforisma de Nietzsche:
— Acredito que você precisa começar a pensar em escrever a sua autobiografia.
A frase, assim dita, me pegou de surpresa. Nunca pensara em tal possibilidade, muito embora, na imaginação das pessoas da família e da maioria dos amigos, todas as histórias que escrevo são autobiográficas — o que prova que sou mesmo louco.
— Não posso, Flávio. A minha vida é desinteressante, não aconteceu tanta coisa assim, que mereça ser contada num livro.
— Acho que você está enganado. Para começo de conversa, nenhuma vida é totalmente desinteressante: tudo que você precisa é “dar um trato” nas partes mais confusas, cortar as partes chatas, estender os episódios picantes.
— Mas se eu fizer isso, vou estar falsificando a minha própria biografia.
— O que, convenhamos, é tão errado quanto roubar num jogo de paciência. Um crime sem vítimas, amigo falsário.
— Tenho as minhas dúvidas se é mesmo assim. Existe muita gente viva que me conhece, que pode me desmascarar. Sem falar que muita gente pode ficar ofendida por faltar na minha biografia.
— Ambos os problemas são bem fáceis de resolver. Você resolve os dois simplesmente apresentando a obra como se fosse um romance, de forma que somente quem leia tenha ideia de que se trata de um texto autobiográfico. Considerando o nível geral de leitura das pessoas desta cidade e redondezas, garanto que vai demorar duas décadas para que as pessoas percebam que estão faltando no seu texto porque, provavelmente, as pessoas que vão ler o livro dificilmente serão as mesmas que nele aparecem, ou deveriam aparecer. Mas, fora de toda dúvida, a melhor maneira de resolver este problema é deixar para publicar a sua autobiografia quando normalmente as autobiografias são publicadas, depois que você já estiver de caixão encomendado.
— Vou então escrevê-la agora para quê, meu amigo?
— Para quê, ora bolas! Pense, camarada, pense! O tempo haverá de passar, e você vai ao longo da vida esquecendo os detalhes de tudo que viveu. Na pior das hipóteses, você precisa começar a escrever para guardar registro, cara. O pior dos escritores, na pior das hipóteses, tem a obrigação de, pelo menos, ser um cronista de seu tempo. Se você não registrar o mundo em que viveu, você não terá cumprido sua principal missão.
Não acredito que tenha alguma “missão” específica nesse mundo (ou não acreditava), mas aquelas palavras me atingiram em um ponto sensível. Muito depois de terminar a conversa, pagar a conta e voltar para casa eu vim pensando. O pior dos escritores, na pior das hipóteses, tem a obrigação de, pelo menos, ser um cronista de seu tempo. É, parece que chegou a hora de começar a escrever o primeiro volume da minha autobiografia. Pode ser menos interessante do que eu pensava, mas sempre posso “siliconar” acrescentando um dragão ou dois, ou uma sociedade secreta, ou uma aparição de fantasma.