Letras Elétricas
Textões e ficções. Tretas e caretas. Histórias e tramóias.
by J. G. Gouvêa

Uma Tarde no Hospital

Publicado em: 27/08/2011

Amanheci com náuseas. Não é infrequente que isso aconteça comigo: mesmo depois de ter removida a vesícula eu ainda passo por esses perrengues ocasionais. Especialmente depois de comer chocolate, ou frituras. Mas quem disse que eu vou deixar de comer um belo pastel de queijo só por causa de um fígado? Pois é, rendi-me à gula e amanheci mareado como um marujo de primeira viagem.

Só não vomitei. Talvez tenha sido o meu azar: os males materiais, tanto quanto os espirituais, nos deixam de atormentar quanto “postos para fora”. Uma confissão de culpa, um pedido de perdão, uma diarreia ou um berro pelo Juca. Todas são formas de purificação.

Mas melhorei um pouco depois de tomar um sal de fruta e um comprimido para enjoo e fui trabalhar. Má ideia, má ideia. Passei a manhã com calafrios, uma ligeira dor de cabeça, dificuldade para ficar de pé sem tontear e uma vaga vontade de algo que eu não sabia o que poderia ser. Lá pelas onze e quarenta da manhã eu desisti. Antes de sair para almoçar comuniquei ao gerente que eu positivamente não estava bem e que estava indo ao médico.

Sexta-feira, puxa vida! Coisa mais difícil é achar médico hoje! A não ser pelos que estão nos plantões, os outros certamente já estão viajando ou então com consultórios lotados. Mas tudo bem, para isso existe o pronto socorro e eu não estou exatamente morrendo neste momento. Depois de me certificar que a carteirinha do plano de saúde estava no bolso, encarei a subida.

Disse “subida” porque o hospital é conveniente situado no alto de um morro bem alto. Quem não tem dinheiro para táxi só chega lá se for de ambulância ou a pé, subindo uma escadaria maior que a que Jacó sonhou que levava ao céu. Pelo menos é o que você sente quando está passando mal e tentando galgar aqueles malditos degraus. Eu poderia ter ido de táxi, mas meu orgulho macho me impedia de pagar oito reais para um deslocamento de apenas duzentos e vinte e metros, ainda que fosse praticamente na vertical.

Meu primeiro desafio foi adivinha onde deveria me apresentar para o atendimento. Cada vez que venho aqui me indicam uma porta diferente. São apenas duas entradas, mas eu consigo sempre escolher da primeira vez a porta errada. Não é curioso isso? Parece que, como a maioria dos humanos, eu só faço a coisa certa depois de esgotadas as outras possibilidades. Pensando bem o mundo seria um lugar melhor se não houvesse tantas opções…

Eu já mal conseguia falar quando entreguei meus documentos para a recepcionista. Por sorte ela conseguiu compreender os meus grunhidos. Ou talvez ela apenas tenha tido a inteligência de imaginar que eu estava ali procurando atendimento. Digo “inteligência” porque houve outras vezes e lugares em que eu não tive a sorte de ser compreendido com tanta facilidade.

Esperei cerca de duas revistas semanais inteiras. Duas vezes me apresentei de novo ao balcão, para espanto da recepcionista: “Mas você não foi atendido ainda? Aguarde só mais um momento que eu vou verificar se o Doutor já pode recebê-lo”. Mesmo com vontade de vomitar no saguão eu conseguia achar estranho que ela colocasse os pronomes com tanta competência.

Por fim me vi diante do médico. Imagino que ele deve encarar umas trinta pessoas por semana sentindo o mesmo que eu. Para um médico experiente certos males devem quase deixar uma etiqueta na testa do paciente. Pálido, esverdeado, reclamando dor de cabeça, querendo vomitar mas não conseguindo, zonzo.

— Muito bem, meu filho, você comeu alguma coisa estranha ontem?

— Lembro vagamente de ter comido um pastel de queijo, doutor.

Ele me recriminou com um olhar penetrante:

— Foi só isso?

Diante da argúcia quase sacerdotal daquele homem eu tive de confessar:

— Também uns biscoitos recheados de chocolate. Mea culpa, mea grandissima culpa.

— Você devia saber que não deve abusar. Seu fígado não aguenta tudo isso, meu filho.

Ele rabiscou seus hieróglifos nos formulários e me indicou a uma enfermeira. Ela, porém, se limitou a me instalar em uma cama na enfermaria. Deitei-me ainda calçado de sapatos, com a gravata afrouxada, a carteira no bolso da camisa, o relógio no braço, o celular no bolso esquerdo da calça e o chaveiro no direito.

Longos minutos depois apareceu um enfermeiro para me pôr no soro. Não gostei. De alguma forma sempre acho que as agulhadas dadas pelas enfermeiras doem menos. Ele até que tentou facilitar as coisas, contando umas piadinhas e tentando fingir que me conhecia de algum lugar, mas eu quase lhe mandei para aquele lugar quando ele enfiou a agulha no dorso da mão. Detesto agulhas, detesto injeção, detesto soro, detesto coleta de amostras, detesto tudo isso. E não detesto por frescura, mas por excessivo costume.

Ele queria também que eu mijasse num potinho para fazer o exame de urina. Confesso que nunca na minha vida mijei na frente de um homem. Deve ter tido uma vez ou duas em que fiz isso diante de uma mulher — e nem assim gostei. De qualquer forma eu não tinha nada na bexiga ainda, porque meu estômago andava tão embrulhado que até água me fazia enjoar. Ele então me disse que voltaria quinze minutos depois para colher sangue e eu teria uma segunda chance. Não me empolguei com essa perspectiva.

Não foi ele que voltou, foi um enfermeiro com cara de lutador de jiu-jitsu. O tamanho do braço do cara me fez tremer mais do que o meu fígado empesteado. Só de pensar que seria ele a colher amostra do meu sangue eu tive vontade de levantar da cama, dizer que já estava bom e rolar morro abaixo até em casa.

Meu braço esquerdo estava com o soro, por isso ele resolveu fazer a coleta no direito. Como a cama ficava encostada na parede e a posição ficava meio desajeitada, ele resolveu o problema simplesmente eguendo-a, comigo em cima, e deslocando um metro para o lado, sem sequer fazer careta. Depois disso pegou a seringa e se preparou para coletar o sangue. Eu devia estar passando mal a ponto de estar fora de meu juízo, pois nesse momento ao escrever eu tenho mais medo do que senti na cena ao vivo. Mas ele tinha uma mão surpreendentemente leve, e colheu o sangue sem que eu quase sentisse. Muita mocinha bonita de sorriso meigo me causou mais dor do que aquele homem que erguera uma cama de ferro com meus cem quilos em cima. Mesmo assim, quando ele me perguntou se eu já estava pronto para a amostra de urina eu disse que não. Jurei que não. Por nada nesse mundo admitiria que sim.

O soro estava previsto para vinte minutos. Durou quarenta e cinco. Em parte porque eu mesmo, prevendo que iam demorar a me visitar de novo, fui ajustando as gotas para diminuírem de ritmo. Mas acabei cochilando e quando acordei o meu sangue havia subido até a metade do tubo. Não havia campainha ali, nem qualquer meio para chamar socorro. Fechei rapidamente o torniquete e levantei da cama para buscar alguém. O corredor da enfermaria estava vazio, a não ser por dois pedreiros fazendo uma reforma. Alguns pacientes e seus acompanhantes murmuravam nos outros quartos.

Deitei de novo, por alguns minutos, e então a bexiga começou a me incomodar. Olhei no relógio, já eram quase duas horas da tarde, o soro tinha acabado quase quarenta minutos antes. Peguei o potinho de plástico e me arrastei até o banheiro carregando o poste do soro. Urinei uma amostra e tentei acertar o resto no vaso, mas molhei a mão, o pote, o tubo de soro e o meu sapato. E ainda sobrou um pouco para a cueca. Sempre sobra. Lavei as mãos na pia, tentei limpar a calça e não me incomodei nem com o inalcançável sapato e nem com o tubo do soro.

Então me dirigi ao balcão, onde a enfermeira distraída preenchia uma ficha. Eu tinha chamado tantas vezes e ela não me ouvira. Por sorte meu caso não era grave, ou ela só teria ouvido o choro da família no dia seguinte. Entreguei-lhe o pote todo molhado de urina, com a metade de um sorriso no rosto. Uma doce vingança. Ela me fuzilou com os olhos e eu comecei a ter dificuldades para segurar o resto do riso.

No meio do caminho até o quarto encontrei o primeiro enfermeiro, o que me pusera no soro. Ao ver minha situação ele me pediu calma e disse que iria logo me tirar daquela situação. O “logo” demorou quase um quarto de hora. Mas enfim ele tirou a agulha da minha mão, não sem outro xingamento abafado de minha parte.

O doutor estava ocupado. Me pediram que aguardasse, pois o exame de sangue ficaria logo pronto. Dentro de uma hora mais ou menos eu saberia se não estava com dengue ou alguma “virose” e poderia ir para casa. Ainda estava enjoado, bastante enjoado, e sentia uma forte dor de cabeça. Mas tudo isso acompanhado de uma sonolência intensa, e a cabeça não doía quando eu fechava os olhos. A consequência natural desse conjunto de sintomas foi eu dormir logo, tão logo me vi sem soro no braço para me incomodar. Aninhei-me no leito em posição fetal e dormi de babar na fronha do travesseiro.

Quando acordei a luz mortiça do entardecer entrava obliquamente pela janela. Pardais chilreavam nas árvores próximas à janela. Assustei-me com a hora. Será que me fariam passar a noite? Saí ao corredor em busca de respostas e fiquei ainda mais estupefato de saber que ninguém da turma que me atendera estava ainda por lá. O médico era outro, inclusive um velho conhecido meu, as enfermeiras eram outras. Eles me viram até com certa surpresa, como se eu fosse uma espécie de aparição. Por um momento eu tive a vaga impressão de que eles não sabiam quem eu era e o que eu estava fazendo ali. Se eu não estivesse amarrotado da soneca eles talvez achassem que eu estava chegando. Ou talvez ainda assim achassem, pois bêbados costumam chegar amarrotados.

Depois que me expliquei com o médico, quase pedindo desculpas, ele finalmente achou meu prontuário, mas não conseguiu saber o que fazer comigo. Não sei se foi porque não leu os hieróglifos do outro ou se os registros estavam incompletos. Os exames ainda não estavam prontos àquela hora, ou estavam, não sei. Ele tampouco. Chamou-me ao consultório, mediu-me a pressão e a temperatura e me fez algumas perguntas, sempre insistindo em perguntar se eu estava me sentindo bem, afinal. Respondi que sim em duas das três vezes e ele concluiu, então, que eu devia ir embora.

Saí pela porta da frente do hospital, cambaleando como quem sai de uma festa sozinho. Desci o morro com cuidado para não tropeçar e enfim cheguei em casa. Houve um tempo em que morar perto do hospital já foi considerado um conforto. Tomei um banho rápido, porque ainda me sentia tonto de ficar em pé, e caí na cama para dormir ainda mais. Quem me curou foi o tempo: amanheci melhor no dia seguinte.

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