Dei-me conta disso por causa de um desses movimentos literários altruístas e anticapitalistas que surgiram por aí. Acho que o nome é “Doe um Livro”, ou coisa parecida. Eu estava esperando em uma fila de banco, ocasião em que o bom gosto fica seriamente comprometido e você pode se pegar lendo com interesse o verso de sua fatura de cartão de crédito ou uma brochura publicitária esquecida por um cliente que foi embora. Estava eu justamente desesperado em busca de letras para ler quando uma moça bonita, apesar do estranho piercing negro em seu nariz, que parecia um troço de catarro, me ofereceu um livro.
— Não, obrigado — recusei educadamente como minha mãe me ensinou a fazer da primeira vez para toda e qualquer oferta.
— Por favor — insistiu a garota com um sorriso de teclado de piano, ou melhor, de sanfona, porque o seu rosto não parava quieto em cima do pescoço.
— Mas… você está… me dando o seu livro…
— Oh, sim. Por favor, não estranhe.
Então ela me falou três ou quatro minutos sobre seu movimento de difusão da leitura, a ideia de comprar o livro, ler e depois dar para alguém ler. Acho que era “Esqueça um Livro”, ou algo assim, esqueci…
Recebi com uma falta de jeito provinciana aquele livro cuidadosamente encapado em plástico vermelho, que ela me entregou furtivamente. Acho que jamais na minha vida um estranho me dera qualquer coisa além de motivos para desconfiança. Apesar disso, fiz menção de receber o embrulho.
Mas enquanto o recebia notei o olhar fuzilante do segurança em nossa direção, verdadeiro agente da repressão ignara, pronto para confiscar a obra ou para dizer que tínhamos de consumi-la em leitódromos cuidadosamente controlados. Ele veio andando em nossa direção, deixando balançar na cintura o grosso cassetete, mais volumoso que os braços de cigarra da garota sorridente e irriquieta. Que se levantou apavorada, uma traficante surpresa pela visita da viatura. Ela se misturou entre os clientes, aproveitando-se de sua estatura de ninfa, e nunca mais a vi.
O guarda chegou perto demais, e me abordou com uma voz de tuba:
— Aquela garota estava incomodando o senhor?
— De forma alguma, ela só me deu iss…
Ainda estava com metade de “isso aqui” dentro da boca e ele já arrancara o livro de minha mão.
— Fico muito revoltado mesmo com esse tipo de coisa. É um absurdo completo!! A barbárie tá tomando conta do país, a imundície se alastra pelas ruas e qualquer cidadão de bem está exposto.
— Mas ela só…
O guarda arrancou a capa do livro com violência, usando seus dedos de elefante. Só então percebi do que me salvara, quase em lágrimas, agradeci-lhe efusivamente como a um irmão que eu não vira por vinte anos:
— É mesmo vergonhoso que a gente não possa esperar em paz na fila do banco sem correr o risco dessa violência — eu disse.
O mundo de Farenheit 451 seria terrível. Baixos espíritos literários são mais memorizáveis do que o Grande Sertão: Veredas, e a presença de um declamador de romance de autoajuda na sua vizinhança é mais agressiva do que a presença de um romance do Mago na estante, presente da namorada que acha lindo você ser escritor e pensou que lhe estava agradando muito com aquela obra cheia de verdades.
Sugere-se que este conto seja lido de forma iterativa, retornando ao começo depois de ler o último parágrafo, e assim sucessivamente até o leitor ter a certeza de que realmente passou a odiar o autor.