Sempre tive reações indecisas diante de cada concurso literário de que ouvi falar em toda a minha vida. Uma das primeiras coisas que li a respeito de meu poeta favorito, Fernando Pessoa, foi que tirou o segundo lugar no único concurso de poesia de que participou em vida. Eu tinha dezesseis anos quando li isso numa biografia do Poeta. De lá para cá as notícias de concursos que dão errado não param de me perseguir, como a recente polêmica sob a premiação de Chico Buarque com (mais um) Jabuti, que acabou fazendo com que muitos autores e críticos relevantes botassem na imprensa o que, provavelmente, se diz na surdina: que os prêmios literários mais famosos servem mais para manter o interesse pelos autores consagrados (em um país onde a literatura concorre com peças de cultura pop válidas apenas por um verão) do que para identificar e estimular novos talentos.
Essa persistente percepção se aguça cada vez que leio o regulamento de um novo concurso, a ponto de eu já ter perdido qualquer interesse em participar de algum (porque participar envolve custos integralmente absorvidos pelo autor). Em geral, pelo que percebi, os concursos parecem dividir-se em quatro categorias:
- Os que não são concursos de fato, mas apenas pretexto para atrair autores que tenham dinheiro, mas não experiência, a publicarem por editoras que possuem muita experiência, algum dinheiro e nenhuma competência.
- Os que são obscuros demais para acrescentarem alguma coisa ao currículo do autor, fazendo-me pensar que se algum dia eu ficar famoso, os organizadores se promoverão dizendo que um dia me premiaram.
- Os que não estão interessados em identificar autores originais, mas autores capazes de cumprir as tarefas predeterminadas pelos objetivos comerciais da editora, como, por exemplo, produzir um conto com tantos mil caracteres sobre o tema fulano.
- Os que possuem regulamentos tão draconianos que explicitamente excluem a maioria dos autores que pretendem identificar e premiar.
Sobre os primeiros é melhor que não fale muito, e que sequer sugira nomes, embora os nomes sejam sussurrados nos fóruns da internet, porque não tenho dinheiro e nem disposição para enfrentar um processo por difamação. Especialmente porque alguns dos sussurros podem ser boatos movidos por interesses tão escusos quanto aqueles.
Sobre os segundos eu até poderia falar alguma coisa sem medo, mas sinceramente esses concursos são tão obscuros que eu precisaria gastar um bom tempo procurando informações sobre a sua existência a fim de poder tecer tais comentários. Mas se você conseguiu acompanhar a minha linha de raciocínio não precisa que eu dê exemplos.
Sobres os terceiros eu faço questão de falar, mesmo sabendo que perderei alguns amigos e fecharei algumas portas (mas fodam-se essas portas, pelas quais eu não quero entrar). Não citarei nomes (é verdade), mas as cabeças nas quais as carapuças servirem não ficaram felizes.
Sobre os últimos, por fim, é preciso que eu diga muita, mas muita coisa. Mas antes quero explicar esse negócio de “cumprir tarefas”.
Acredito que a maioria das pessoas dotadas de talento literário teve problemas com seus professores de português e literatura. Millôr Fernandes orgulhava-se dizer que tirava notas horríveis em redação. Machado de Assis declarou-se um incompetente em língua portuguesa ao tentar ajudar um sobrinho a fazer os deveres escolares. Carlos Drummond de Andrade foi ridicularizado pela professora por ter escrito um conto fantástico (inspirado em Jules Verne), de forma não muito diferente do “Pink”, personagem narrador da ópera rock The Wall, do Pink Floyd, que foi humilhado pelo mestre-escola por ter escrito um poema.
Não quero me ombrear com os autores famosos — no máximo com o Pink, que era um sujeito problemático e egocêntrico, com uma certa dificuldade com as mulheres e uma tendência a fazer péssimos poemas (rimando “jag-uar”, “new car” e “ca-viar”) — mas também já tive a minha cota de notas baixas em português e muita gente já ridicularizou o que escrevo. Se eu soubesse tocar guitarra ou liderasse meu próprio bando de skinheads, talvez eu atirasse em uma televisão, depilasse as sobrancelhas e enxergasse roedores nas paredes. Como o Pink, para você que não é fã de rock progressivo e não entenderia a piada.
O problema que as pessoas supostamente dotadas de “talento” têm com os professores de português é que, quando você acredita que está acometido desta condição literária você passa a ter o desejo de expressar-se, do seu jeito. Obviamente este desejo não combina com as tarefas que os alunos têm de cumprir para obter a nota.
A redação pedida era sobre “Como Viveríamos Sem Eletricidade”, e não sobre o seu medo do escuro, filho. No meu caso eu digo com orgulho pueril que quase fui expulso da escola porque, para o dia da criança de 1984, ainda no ocaso da ditadura, entreguei à minha escandalizada professora de português, uma redação sobre controle populacional. Que era uma bosta, obviamente, como tudo que um aluno de 11 anos escreve, mas pelo menos tinha ousadia e originalidade. Inclusive por ter chamado a pílula pelo interessante eufemismo de anticegonha.
Quando um escritor sai da escola, eu imagino, sente um bafejo de liberdade no ar. Não está mais obrigado a escrever respeitando limites de tamanho e ditames de assunto. Tanto quanto quem se forma em desenho não precisa mais usar papel quadriculado ou empregar o pantógrafo para calcular perspectivas.
Finalmente vou escrever o que quero, do jeito que quero. Infelizmente o mundo não quer ninguém do jeito que cada um é, o mundo quer todo mundo devidamente harmonizado. Cada um no seu quadrado, uma música estúpida, mas que tangibilizou a ideologia conservadora de uma forma irrepreensível. Eis o que o mundo quer: “Ado, a-ado, cada um no seu quadrado.”
É que, depois de ter conquistado a maioridade e de ter a própria máquina de escrever (eu já celebrei isso, uma vez), você descobre que a sua liberdade de escolher o tema e determinar o tamanho é totalmente irrelevante porque o mundo não está procurando nada disso: o mundo tem um sapatinho de cristal e sai calçando por aí, se seu pé for do tamanho certo você sai do borralho e recebe seu grande prêmio. Para quem tem pés bonitos, mas do tamanho errado, o lugar continua sendo a cozinha.
Esses são os concursos que determinam tema e tamanho. Cada vez mais os seus editais ficam específicos. Não basta que seja um conto do gênero “histórico”, por exemplo, tem que ser histórico ambientado no interior do Espírito Santo na década de 1820. Não basta ser fantástico, tem que ser fantástico com um estilo prattchettiano, voltado para o tema dieselpunk e adaptado à realidade brasileira (ou búlgara, tanto faz, visto que nenhuma das referências culturais tem a ver com o ambiente onde tudo deve ser adaptado).
Não estou generalizando. Provavelmente o concurso promovido pela sua editora é diferente, não há necessidade de me processar. Eu estava me referindo apenas aos seus concorrentes, é claro.
O caso é que não tenho nenhum tesão para fazer composições de acordo com tema “sugerido”. Todas as vezes em que não optei por nenhuma das sugestões o meu texto foi rejeitado e tive que fazer outro. Só que, como não estou mais na escola e não tenho a necessidade de obter uma nota para passar de ano, não me importa se meu texto não serve para sua coletânea. Provavelmente sua coletânea não serve para mim também.
Mas chego, enfim (sim, sou prolixo e uso pontuação em excesso), ao assunto que me moveu a escrever esta diatribe: os famosos editais excludentes.
Imagino que as pessoas que escrevem tais editais imaginam que o Brasil seja a pátria da literatura e que exista um autor talentoso em cada quarteirão desse país, fora os que não são talentosos, mas sabem agradar o júri. E como existem tantos, é necessário que o edital, já de cara, se encarregue de inabilitar o maior número possível deles.
Há várias maneiras de se fazer isso. A mais comum é exigir o ineditismo. Dependendo do concurso, o ineditismo pode ser exigido para a obra apresentada ou até para o autor. A regra é clara:
Somente serão aceitas, no presente processo de seleção, obras literárias rigorosamente inéditas e que não tenham sido publicadas, mesmo parcialmente, de forma impressa ou virtual.
Não entendeu? Vou explicar.
Nesta nossa idade digital, em que todo autor obscuro que almeja alguma forma de divulgação pode encontrar leitores (ou até um editor) divulgando seus textos em redes sociais, fóruns ou blogues, os redatores deste edital ainda imaginam que exista o rigoroso ineditismo de uma obra literária. Qual autor escreve uma obra genial, digna de receber um prêmio relevante, e a mantém rigorosamente inédita, sepultada em uma gaveta, esperando um concurso?
Trata-se de uma regra tão absurda que me vejo forçado a imaginar que serão apresentadas, e eventualmente premiadas, obras não rigorosamente inéditas ou que alguém, já predeterminado para ganhar, possui uma das raríssimas obras geniais e rigorosamente inéditas. A primeira hipótese é bastante plausível, especialmente se a obra em questão foi postada apenas em fóruns privados (não indexados pelas ferramentas de busca) ou redes sociais, ou publicada em revistas impressas de baixa tiragem e nenhuma relevância. A segunda hipótese é acintosa, mas eu nunca me esqueço de que vivo no Brasil.
Sobre a segunda hipótese, há que se ter em conta que a exigência de rigoroso ineditismo, obviamente, impede que alguém questione a decisão do júri. Seja qual for a escolha dos jurados, ninguém poderá argumentar que outra obra merecia mais o prêmio. Os editais de concursos literários aprenderam com os festivais musicais — e com o fiasco do concurso português que preteriu Fernando Pessoa. Hoje em dia o poeta não ganharia e talvez nem tivesse como provar que participou.
É por causa do rigoroso ineditismo que eu não posso participar de nenhum concurso literário. Ou pelo menos não me dou ao trabalho de fazê-lo para gastar dinheiro cumprindo as exigências e depois ser desclassificado sem nenhum aviso sequer (porque os concursos literários só dão satisfação aos premiados e você, que se inscreve, na maioria das vezes nem recebe uma confirmação de que sua inscrição foi aceita). Mas tem mais. Existem outras formas de excluir autores que não devem ganhar.
Uma delas é impor ao candidato uma peregrinação para inscrever o seu trabalho. Apesar de todo o avanço das comunicações, da confiabilidade do correio e da existência da internet, nada mais apropriado do que fazer um concurso aberto à participação de qualquer cidadão brasileiro, mas obrigá-lo a comparecer, em horário comercial, em algum escritório qualquer da cidade onde o concurso é sediado, para entregar pessoalmente sua obra.
Outra maneira é determinar regras explícitas para a formatação do original. Claro que eu imagino que pessoas que terão de ler dezenas de livros de autores desconhecidos não ficarão felizes de lê-los impressos em cores, com fonte Comic Sans ou em formato de papel não padronizado. Mas há concursos que chegam às raias do absurdo no detalhismo, determinando a tipologia, o tamanho da fonte, as margens da área impressa, a localização da numeração de página, o espaçamento entre linhas, etc. Poderiam simplesmente solicitar o arquivo em formato digital e determinar o tamanho por uma simples contagem de palavras e caracteres. Mas dão-me a impressão de que algum estafeta, em alguma escrivaninha abarrotada, estará contando linhas e palavras com uma régua.
A tudo isto se junta a lenta constatação, compartilhada com a amiga Ilka Canavarro, de que a partir de uma certa idade as pessoas não se interessam mais pelo que nós temos a dizer, a não ser que tenhamos ficado ricos ou famosos. Algo que o Ronaldo Roque também já havia detectado.
Então, se já sei que não serei aceito nem premiado, se já sei que não estão mais interessados em um Novo Escritor que fez 39 anos, se já sei que ridículo ficar buscando a aprovação de um mundo que objetivamente já me rejeitou como autor; por que me desgastar formatando originais para concursos cujos editais parecem talhados para justamente excluir não a mim, pessoalmente, mas o tipo de pessoa que eu sou, no mundo de hoje?
Ah, me poupem de formatar meu romance de forma aceitável. Quer dizer que eu não tenho o direito de pegar um conto meu e expandir para um romance, pois isso não se enquadra no rigoroso ineditismo que o concurso exige? Para que vou me preocupar em viajar trezentos quilômetros para perder horas em uma fila a fim de poder “protocolar” meu humilde original nas mãos de alguém que não escreve? Provavelmente incomodado com o volume inesperado de trabalho e o peso de tanto livro (“para que esse pessoal escreve livro tão grosso, meu Deus?”).
É muita humilhação para um autor amador, que realmente ama o que faz. É muita exigência para um assalariado que ousa escrever (isso não é coisa de trabalhador, quem tem que escrever sobre o povo é o rico que se interesse pelo tema). É muito obstáculo para quem divulga seu trabalho em busca de atenção, contatos e reconhecimento em vez de pedantemente pô-lo na gaveta à espera de um concurso. Isto é coisa de gente que vê a literatura como um ornamento na biografia, não como um objetivo pessoal.
Então, mais uma vez, declino de participar. Não que me julgue “acima” de concursos. Na verdade gostaria muito de estar neles. Mas julgo inútil tentar, visto que nos próprios editais estão estabelecidas condições que me excluem, de forma que eu só poderia participar mentindo (e expondo-me à humilhação de ser achado na mentira) ou submetendo obras feitas por encomenda. Só que não se encomenda, em trinta dias, oitenta páginas de prosa digna de ganhar um concurso.
Não fico, porém, prejudicado. Nunca tive grandes ambições com a literatura. Escrevo porque gosto e, embora goste da ideia de um dia fazer sucesso, não me sinto diminuído por não ganhar concursos. Fernando Pessoa nunca ganhou um.