Uma amiga postou hoje “numa rede social” (estilo Rede Globo de mencionar não mencionando) que estava com vontade de largar tudo e sumir. Minha primeira reação ao ler o seu comentário foi um pensamento singelo: por que pensamos sempre que, antes de fugir, temos de largar tudo. O que é esse “tudo” e o que representa esse “largar”? Fugir para onde?
Alguém já disse que a Aldeia Global significa que não haverá asilo para ninguém em lugar algum. A frase foi dita num contexto político, mas não é preciso ser um dissidente para se sentir desalojado neste mundo: aonde poderemos ir e achar a paz? Fugiremos para que parte do planeta? Por que não podemos levar “tudo” para lá?
Talvez seja porque exatamente “tudo” seja o que nos faz ter vontade de fugir. Temos “tudo”, e isso significa uma falta imensa, um buraco indefinido, que em alguns tem a forma de Deus, em outros tem a forma de qualquer coisa que elejam como séria. Temos tanta coisa. Talvez sonhemos com uma época mais feliz, em que poderíamos carregar “tudo” em uma mochila e sair perambulando pelo mundo. Uma época em que éramos bosquímanos nos planaltos da África Austral, verdadeira felicidade.
Como eu poderia fugir amanhã pela manhã, se isso fosse necessário? Poderia eu desaparecer deixando para trás todos esses móveis, esse computador, minha coleção de discos de rock, minha pequena biblioteca, minha impressora laser, minha geladeira frost-free, minha televisão com tela de plasma de 36 polegadas? Poderia eu carregar meu aparelho de telefone celular, meu cartão de crédito, meus remédios controlados, meu fio dental mentolado e o papel higiênico macio? Quanto de minha vida cabe no meu carro? Poderia eu fugir num carro? Como pagar pela sua gasolina depois de alguns quilômetros?
Largar tudo e fugir, a suprema utopia. O único lugar aonde ainda podemos ir sem levar “tudo” é o túmulo, pois da vida só o “nada” se leva. Enquanto isso vivemos ancorados em nossos portos inseguros, amarrados a armários, fogões, fornos de micro ondas, baixelas de aço inox, e todos esses confortos.
Ontem à tarde, ao voltar de Leopoldina, topei com dois andarilhos pela estrada. Sujos, magros, despenteados, mas vestidos com alinho. Ele com um terno amarrotado e ela com uma roupa de estilo indistinguível. Caminhavam lentamente, com a pouca pressa de quem sabe que vai chegar, fatalmente. Iam trocando palavras e gestos de afeto. Observei-os pelo retrovisor até eles sumirem na curva: ali estavam dois que poderiam fugir largando tudo. Talvez até já tivessem largado. Até mesmo suas vidas. Vagam pelas estradas como fantasmas sem destino. Possuem o nada.
Não os invejei, porém. Gosto das minhas âncoras, de todos os certificados que coleciono em pastas bonitas. Gosto desta varanda. Não quero largar tudo e fugir, mesmo sentido o peso de todas estas coisas tolhendo as minhas pernas aos poucos, mesmo que tudo me afogue devagar, num mar de compromissos e contradições. Talvez a minha amiga, como eu, saiba que não é possível mesmo largar tudo, não sem largar a vida. Estamos condenados ao tudo.