Letras Elétricas
Textões e ficções. Tretas e caretas. Histórias e tramóias.
by J. G. Gouvêa

Continuamos Comprando Espelhos

Publicado em: 10/02/2013

Não é preciso, absolutamente, discorrer sobre as virtudes de nosso sistema educacional. Mesmo porque, tal discurso não seria suficiente para preencher uma postagem. Suficiente para botar a Indonésia no chinelo e galgando um honroso 36º lugar mundial, graças ao fato de não haver dados sobre a maioria dos países, a nossa educação goza de um status de praga do Egito, apesar de, segundo nosso governo, estar “no caminho certo”. Com alguma boa vontade, querendo crer que ele tem razão, eu diria que demos os primeiros passos, os primeiros dois passos, de uma jornada equivalente à conquista da Índia por Alexandre, com a esperança de que dará certo, ao contrário do famoso episódio histórico. Alexandre pelo menos sabia onde ficava a Índia, receio, porém, que as pessoas que gerem nosso sistema educacional tenham apenas uma vaga ideia.

É com certa vergonha que esclareço isso, mas dado o nível médio de analfabetização do público neste país (75% de pessoas sem suficiente domínio da leitura), é sempre bom alertar que, no parágrafo acima, a Índia é empregada uma vez como metáfora.

Tal como o índio ficava fascinado por espelhos e imaginava virtudes para o pequeno objeto luminoso que não compreendia, nós, como verdadeiros botocudos, continuamos querendo soluções mágicas para nossos problemas, e gostamos mais das que brilham do que das que funcionam. Damos mais valor a espelhos e contas do que a facas. E agora o Ministério da Educação descobriu outra fórmula mágica.

Nosso sistema educacional é tão absurdo que eu duvido que ele tenha chegado a este ponto por uma evolução natural das coisas. Ele só pode ser defeituoso de propósito, porque não faltaram, em nossa história, iniciativas grandes que poderiam nos ter feito avançar muito.

A ditadura de Vargas criou o sistema público de ensino, excelente, mas não se deu prosseguimento com a implantação de escolas modelo pelo país. Se uma quantidade suficiente delas tivesse sido criada, a massa crítica de pessoas esclarecidas que sairiam delas teria tido um efeito a impulsionar por mais estruturas semelhantes. O MoBrAl dos militares, apesar dos ranços ideológicos, poderia ter erradicado o analfabetismo e dado ensino primário a quase toda a população. Às favas com as ideologias, muitos países do mundo só erradicaram o analfabetismo sob o tacão de ditas, duras ou brandas (Turquia de Atatürk, URSS, Alemanha de Bismarck, China de Mao, Vietnã comunista, Cuba castrista). Mesmo que os militares tivessem as piores intenções, se o MoBrAl cumprisse seu fim esse país seria outro, porque não há nada mais revolucionário do que alfabetizar um povo (leiam MacLuhan).

Então é evidente que todas as iniciativas educacionais no Brasil sempre foram sabotadas, especialmente quando pareciam “no caminho certo”. Para cada passo à frente, um ou dois para os lados, ou para trás. E quando surgia alguma voz iluminada trazendo ideias originais (ó, o horror!) vinha a seguir uma onda de idolatria cega de modelos importados. Tivemos Paulo Freire pouco antes de importarmos o sistema americano de “high school” (devidamente tropicalizado com a remoção de suas virtudes, como o período integral, as aulas de artes, a educação física e o ônibus escolar amarelo).

Em uma coisa, porém, todos os idealizadores de nosso sistema educacional sempre tiveram em comum: é uma excelente ideia reformar. Nem bem você começa a se acostumar com a divisão do sistema educacional em primário, admissão, secundário e terciário vem uma reforma e cria o primeiro grau e o segundo. E quando já estavamos acostuados a contar oito séries e mais três surge o segundo grau técnico, com primeiro ano básico, fazendo o secundário ter quatro anos. Ao longo de todo esse tempo, enquanto os intelectuais se ocupavam fazendo reformas e tentando reconectar fios nas cabeças dos alunos, vicejou a indústria do cursinho, que ensinava aos egressos dessas escolas-laboratório o mínimo necessário para entrarem numa faculdade e se manterem lá.

A ideia de reformar faz sentido, se você quer proteger o próprio traseiro. Se nada está funcionando, vão procurar demitir primeiro quem “não está fazendo nada”, então pareça ocupado andando de um lado para outro com uma planilha de dados na mão e dando marteladas a esmo, de vez em quando propondo demolir uma parede ou comprar um mesa nova. Essa faina dá a impressão de que você tem um projeto, um propósito. Mais que isso, a impressão de que você é útil para o funcinoamento da coisa, enquanto o faz-nada que só fica tentando entender o que não está funcionando é um câncer do sistema que precisa ser logo operado.

E dá-lhe reforma educacional. Foram cinco durante a República Velha, quatro durante a ditadura de Vargas, quinze anos de debates até se chegar à primeira Lei de Diretrizes e Bases (1961), três reformas durante o regime militar, e pelo menos duas (três ou quatro, dependendo de como você conte) desde a redemocratização. Quinze reformas educacionais em 123 anos de República. Uma média de uma reforma educacional a cada oito anos. Praticamente ninguém nesse país se formou sem “sofrer” uma reforma educacional. Eu nem mencionei as mudanças que não foram implementadas através de reformas constitucionais ou leis ordinárias. Se formos contar as mudanças efetivadas através de portarias do Ministério da Educação (e seus equivalentes passados) a gente chega ao absurdo número de 52 mudanças estruturais na nossa educação em 123 anos de República. E os nossos alunos tiram notas ruins porque são burros, não é mesmo?

Há momentos em que penso que não importa muito se estamos mesmo indo na direção certa. Gostaria que simplesmente fôssemos por tempo suficiente em alguma direção, qualquer direção, para termos como saber se é a direção certa. A impressão que tenho, ao estudar a história de nossa educação, é que rodopiamos no mesmo lugar, babando para qualquer novidade surgida nos Estados Unidos, na Alemanha, na França, no Japão, na URSS ou na puta-que-o-pariu. E dá-lhe ensino técnico, construtivismo, escola nova, ginásios, vestibulares, interdisciplinaridade, behaviorismo, método Kumon, etc. Queremos ser tudo, ter tudo. Queremos que a nossa educação empregue todas as teorias educacionais do mundo. O que equivale a querermos que nosso carro seja ao mesmo tempo pick-up, perua, carro de passeio, esportivo e compacto.

Quando é que vamos parar com essa mania de mexer na máquina? Quanto tempo até algum iluminado ter a ideia de que, talvez, quem sabe, possivelmente, o nosso sistema educacional, seja ele qual for, funcionaria se simplesmente os professores pudessem trabalhar em paz? Não precisa reinventar a roda, mudar a distribuição de séries, criar nomenclaturas. Vamos simplesmente dar formação sólida aos mestres-escola, pagar-lhes salários razoáveis, oferecer-lhes cursos periódicos de reciclagem, dar segurança e estrutura às escolas. Depois que tivermos feito isso por uns dez ou vinte anos, no mínimo, e esgotado o potencial de crescimento orgânico do sistema, tosco que seja, vamos pensar em aperfeiçoamentos metodológicos. Vamos primeiro consertar o motor e lanternar direito esse calhambeque, depois a gente compra bancos de couro, pneus radiais e, quem sabe, turbine a máquina.

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