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Textões e ficções. Tretas e caretas. Histórias e tramóias.
by J. G. Gouvêa

A Maravilhosa Estória do Senhor Sombra e da Senhorita Raio de Luar

Publicado em: 31/03/2013

O amor do Senhor Sombra e da Senhora Raio de Luar começara muito complicado, levara décadas em um estado infrutífero, tantálico, até finalmente desembocar naquela manhã de abril, fria e úmida, em que ele se deu conta, pela primeira vez, de que ela sempre amanhecia doente quando faziam amor.

Sombra tinha sido um herói antes de desenvolver sua barriga e perder algumas mechas para o tempo. Ela tinha sido uma femme fatale inspiradora de crimes e amores juvenis antes de ganhar estrias, acumular quilos extraordinários e esquecer o hábito de seduzir. Agora estavam amanhecendo preguiçosamentesozinhos em casa, sem as crianças, que tinham partido na excursão da escola.

Fazia quinze anos que estavam casados, dezesseis que deveriam ter sido de uma grande aventura. Mas ele estava tentando aparar o gramado com um tesourão obsoleto enquanto ela resmungava na cozinha alguma coisa a respeito de dores, cólicas e saudades. O Senhor Sombra tomou outra golada de água gelada na tampa do galão térmico, tirou a luva para coçar a sobrancelha onde mordera um mosquito, e voltou ao trabalho pensando em como deveria ter sido tudo, e como não fora.

Quando o Senhor Sombra e a Senhora Raio de Luar se conheceram ele já era chamado de Senhor, embora o título não falasse de idade, e ela era ainda senhorita. Eram jovens, certamente, mas nenhum dos dois saberia dizer quantos anos tinham, era como se houvessem aparecido no mundo subitamente, ganhando forma em um cenário branco. E assim se conheceram, de uma forma meio automática, e sem que percebessem coisa alguma havia uma atração inexplicável, um anel e um tempo indefinido de negaças e esperas.

O Senhor Sombra tinha antepassados vindos da Úmbria e da Nigéria, mas não sabia onde ficavam esses lugares. Seu mundo se limitava a uma cidade grande, imensa, mutante e moderna, cercada por uma extensão selvagem e misteriosa, de desertos, planícies, planaltos e florestas. Nunca tivera a curiosidade de sair de lá, nunca ninguém tivera. Nem mesmo quando tinha a intuição estranha de que todos os seus atos eram medidos e coreografados por um destino intangível, como os movimentos de um ator num palco de teatro. E que a cidade era esse palco, e as suas cercanias eram apenas cortinas.

A Senhorita Raio de Luar era trapezista de um circo que misteriosamente nunca deixava a cidade. Onirópolis devia ser muito grande para sempre haver gente nova interessada nos mesmos números. Aliás, o Senhor Sombra tampouco sabia quantos habitantes havia na cidade, sabia apenas que muitas vezes se cansara de cruzá-la em seu carro preto, dirigindo a esmo atrás de crimes para combater ou desafios para enfrentar, mas em só duas ou três oportunidades encontrara alguma rua que não tivesse outra rua além, só nessas circunstâncias vislumbrara a extensão vazia e noturna, como uma fita isolante em torno de seu mundo.


Foi só depois de deixar Onirópolis que o Senhor Sombra se dera conta do quão pouco sabia de si mesmo, quão estranha era a vida que levava lá, e quão devagar se dera conta do absurdo. Era como se nunca houvesse dia, a sua vida se limitava a percorrer as noites, fantasiado de preto, usando aparelhos complicados e misteriosos artefatos, em busca de malfeitos para obstar, seres malignos para esconjurar ou injustiças para reparar. Sabia que era um importante empresário, mas sua vida diurna era difusa como uma paisagem chuvosa. O dinheiro que tinha era tão inexplicável quanto as muitas línguas que falava quase sem sotaque. O seu passado era uma bruma, seu futuro uma eterna incógnita: inexplicável, ilógico e inesperado. Só se salvava de ser destroçado pela tensão desta vida difícil porque tinha uma motivação sobre-humana contra o mal.

Conhecera a Senhorita Raio de Luar ao desbaratar, sob a lona do Circo Oriental, uma das muitas tramoias do Senhor Elétrico que, disfarçado de palhaço, pretendia eletrocutar todos os espectadores e aprisionar suas almas em um aparato de leitura do futuro, com o qual queria se tornar capaz de controlar toda a economia. Fora um trabalho dos mais ingratos, doloroso e duro como uma queda de trapézio. Sempre que saía de uma aventura dessas se perguntava como poderia sobreviver a tanto impropério sem mais que umas costelas quebradas, que se curavam rápido como um sonho. Tinha muitas cicatrizes em sua pele, claro, mas tinha ainda todos os dedos e unhas e fios de cabelo — o que às vezes lhe parecia tão impossível quanto estar vivo.

Raio de Luar só se salvara de uma queda no abismo porque ele desejara salvá-la, num gesto desses que não tem como explicar, permitindo que o Elétrico, o maldito, fugisse. Por que exatamente ele a salvara era outro mistério a mais, entre trezentos. Ela tinha sido uma das aliadas dele, talvez até amante. Tinha cometido sua cota de felonias e merecia a morte. Mas ele, movido por algo em que sequer pensara, a resgatara da queda e a pousara no chão, à custa de um tornozelo deslocado e da perda da oportunidade de prender um inimigo público.

Depois disso ela enfrentara a justiça, como deveria ser. Muitas vezes ele a buscou, à noite, pela janela externa da penitenciária, para lhe dizer alguma coisa, ou para ouvir. Nascera assim o amor inesperado, do vigilante mascarado e da vilã encarcerada. Havia, porém, um problema intransponível: não poderia visitá-la uniformizado, a polícia nunca deixaria, e não poderia revelar sua identidade secreta. Por causa disso nunca teria podido haver visita íntima e nem casamento. Somente quando, ou se, ela deixasse a cadeia. Mas isso era quase tão difícil quanto entender as dobras misteriosas do futuro. O tempo foi passando e as explicações foram acabando. Raio de Luar tampouco poderia esperar uma condicional tão cedo: haviam sido muitos crimes, tinha inimigas em outras celas, enfrentou-as em rebeliões, sofreu extensões de pena, o tempo, o tempo… ora, o tempo.

Um dia, porém, ela saiu. Misteriosamente ela saiu. Mais uma vez parecia uma intervenção divina. O Senhor Sombra pôde, então, aproximar-se impunemente. Ela voltou ao seu trapézio, no interminável circo. Tantos anos e não perdera nenhuma agilidade, continuava lisa e bela, apenas tivera uma minúscula tatuagem no braço, representando um coração sangrento. Vivia em um apartamento simples, em um prédio pequeno, quase abandonado. Lugar perigoso demais para uma mulher sozinha. Mas ele sempre estava perto, inexplicavelmente, nos atentados mensais de criminosos mal intencionados. Mas o tempo… ora, o tempo.

Um dia deu-se conta. Era incontável o tempo desde quando a conhecera. Tantos criminosos, tantas aventuras, tantos corpos desacordados nas sarjetas (misteriosamente quase ninguém morria), tantas visitas, na cadeia ou fora. Mesmo assim era incontável. Pareciam quarenta anos, mas era impossível que fosse,pois se olhava no espelho e seu rosto moreno estava tão bonito quanto se lembrava. Ou melhor, não se lembrava. Estava tão bonito quanto os dos jovens de trinta anos. Como são, ou deveriam ser, os homens de setenta anos? Conhecia muita gente chamada de velha, mas não tinha ideia da relação exata de aparência com idade. Afinal ele mesmo existia há um tempo interminável e não envelhecia. Não entendia como achavam esquisito o Drácula: ele pelo menos tinha uma lógica, a de que vampiros não envelhecem mesmo.

Mas, muito pior do que esta dificuldade para se entender no mundo, era a tarefa de Sísifo a que estava condenado. Cada noite combater o crime e nunca amanhecer em paz para um dia feliz. Que dias, aliás, nunca tinha ideia exata do que fazia: era como se fosse sempre noite em sua vida, talvez tivesse sido por isso que escolhera se fantasiar de sombra — mas… escolhera?

Mas, muito pior do que esta dificuldade para se realizar no que fazia, era a eterna tentação nunca atendida de ter Raio de Luar entre seus braços. Beijos apenas, beijos de aparência, beijos sem conteúdo, sem nada mais. Haveria algo mais? Por que razão os seres se atraíam, faziam loucuras um pelo outro, como deixar escapar o inimigo ou visitar uma condenada através das grades de sua janela na cadeia? O que haveria no mundo para estimular este absurdo? Viveriam os amores apenas de beijos e lágrimas de saudade?

Um dia, sim, essa palavra existia, pôde fazer alguma coisa diferente, tentar sobreviver à rebeldia, reunir forças para existir como queria. Mais uma madrugada amanhecia quando se recolheu à sua cama mas, depois de um cochilo breve, acordou num sobressalto e teve uma sensação, absurda e surreal, de que estava sozinho. Sozinho como se fosse a primeira vez na vida, sozinho como se o universo não existisse fora das paredes de seu quarto. Mas tinha sono, tanto sono, um sono invencível, sono de uma vida inteira.

Levantou-se da cama, arrastando os pés descalços no chão de madeira encerada, e foi na direção aproximada da cozinha. As suas costas pesavam quarenta toneladas, suas pálpebras teriam afundado um navio se repousassem sobre o casco. Fez um café rápido na cafeteira elétrica. Um café turco do mais negro e espesso que pudera pensar. Bebeu sem açúcar, mas com muita vontade. Quente e denso, o líquido desceu despertando seus sentidos. Foi ao banheiro e tomou um longo banho gelado, lavando a cabeça e cada centímetro quadrado de seu corpo. Lavava até a alma se fosse possível.

Vestiu então uma roupa esporte, simples. Camisa branca de gola redonda, calça jeans desbotada, uma botina de couro preto. Não se lembrava de ter antes saído durante o dia. Nem de ter trabalhado. Era milionário, isso lhe bastava. Era empresário, mas de qual empresa?

Abriu a porta e seus olhos doeram. Lá fora estava claro como se quarenta mil lâmpadas estivessem acesas. Um carro que parecia de corrida, todo colorido, passou chispando pela avenida que se via ao longe. Ouviu uma sirena de polícia, um carro negro lhe veio em perseguição. Teve uma vontade impetuosa de vestir-se de herói e ir atrás, mas esqueceu-se disso quando algo passo voando, colorido,e pousou na estrada, segurando o carro.

Reparou então que sua casa parecia muito diferente: em vez da mansão de magnata que esperava, estava em uma residência de subúrbio, bem modesta, em um bairro que ficava no alto de um morro. O carro estacionado ao lado, na garagem, não era o Lamborghini preto que algumas vezes usara, quando se movera pela noite usando sua identidade secreta, mas um Opala antigo, com trinta anos ou mais de uso, e era cinzento.

Teve de abrir a porta da garagem, que não era automática. Ligou o carro quase esperando que ele explodisse, mas ele funcionou perfeitamente como só os carros de mentira conseguem. Saiu de ré com uma manobra de cinema, fechou a porta e saiu pela rua de paralelepípedos em direção a um endereço conhecido.

A rua estava diferente, talvez de dia as cores das casas realçassem de uma maneira que de noite era impossível ver, ou talvez fizesse muito tempo. Quanto tempo? Era sempre tão difícil saber. Raramente via calendários. Mas sabia o nome da rua, sabia o número. Devia ser aquele prédio, lembrava-se da cornija em forma de leão. O porteiro não o reconheceu, isso era bom. Afinal, nunca estivera ali de cara descoberta, nem entrara pela porta da frente.

Enquanto subia pelo elevador, teve remorsos de não ter comprado flores. Mas se desculpou lembrando que a situação não admitia mesmo nenhuma premeditação. Esta ali escondido de algo que não sabia o que, fugido de maquinações alienígenas, e não sabia quanto tempo poderia ainda ter aquela independência. Achou a porta do apartamento dela, felizmente viu que o enfeite roxo estava lá: era ainda quaresma e a Raio de Luar tinha redescoberto na prisão o seu catolicismo. Aquele enfeite era uma evidência confortante de que ela deveria mesmo morar ali.

Tocou a campainha, que soou como um sino dentro de uma sala vazia. Tocou de novo, de novo. Ninguém vinha, nenhum passo se arrastava pelo chão. Bateu na porta, com afeto e depois com força, com desespero, com lágrimas. Inexplicável que nenhum vizinho abrisse a porta ou chamasse a polícia. De repente sentiu a porta estremecer em suas dobradiças, testou a maçaneta e viu que estava aberta.

O apartamento estava protegido por cortinas pesadas, que quase não deixavam entrar nenhuma luz. Mas ele sabia enxergar bem no escuro, e logo reconheceu a mobília, as partições, os quadros na parede, entre eles um que ela mesmo pintara na prisão, com a imagem de uma pomba negra bicando canjica pelo chão.

Raio de Luar estava deitada em decúbito dorsal, como um cadáver. A camisola estava torta no corpo como se o sono estivesse agitado, e metade da coberta se embolava no chão, ao pé da cama. Dormia com a boca entreaberta, os cabelos em desalinho total, os braços moles, pendendo da cama como ramalhetes de orquídeas.

Teve dó de acordá-la, claro. Que belos sonhos aquela mulher não teria! Mas não viera para contemplá-la adormecida. Aproximou-se da cabeceira, agachou-se ao lado dela, e começou a gentilmente sacudi-la, cutucá-la. Ela estava quente, o seu coração batia, a sua carne estava dúctil e o seu corpo cheirava a sono e preguiça. Mas não manifestava nenhuma capacidade de acordar. Insistiu, foi bruto até, em desespero novamente. Mas era como agitar o corpo de uma morta.

— Raio de Luar, meu amor, acorda!

Afastou a cortina e viu que o sol já ia bem alto no céu. A luz bateu no corpo pálido de sua amada e ele se sentiu estranho, como se a visse pela primeira vez. Saiu pela casa, aparvalhado, abrindo cortinas e tropeçando em coisas. A luz invadiu o apartamento, revelando cores que as lâmpadas fracas nunca mostravam. Programou a cafeteira para um expresso ainda mais forte do que o seu no desjejum recente. Voltou ao quarto e estava quente, mais em si do que no mundo. Despejou as cobertas num canto do quarto, virou Raio de Luar sobre a cama, como se ela fosse uma peça de carne no açougue, deixou o sol bater sobre suas formas perfeitíssimas, refletindo de volta um brilho marmóreo. Subitamente deu-se conta de que o brilho não era somente nela. Olhou seus braços luzindo como peças de ébano. Cintilações esféricas que nunca vira salpicavam sua pele morena. Então, pela primeira vez, teve a impressão de que ela despertava. Correu à cozinha e buscou o café.

— Acorda, amor, acorda, por favor!

Ela balbuciava frases misturadas, ele lhe dava café como quem cuida de um bebê. O sabor forte lhe agrediu a língua, ela cuspiu e acordou xingando:

— Que coisa horrível é essa!?

Então o viu.

— Quem é você!?

— Você não vai acreditar, porque nunca me viu sem máscara.

— Sombra.

— Como soube?

— Pela voz, claro.

Naquele momento o Senhor Sombra se deu conta do inexplicável, novamente: como fora possível, em tantos anos, que ninguém jamais reconhecesse sua voz!

— Bem, eu… não sei exatamente porque vim até aqui, mas eu despertei pouco depois do amanhecer, de um sono agitado, sentindo-me mal. Então me dei conta de que havia tanta coisa que eu queria dizer, queria lhe perguntar. Coisas que, inexplicavelmente, eu nunca pudera sequer pensar direito, mas que vinham me incomodando.

— Coisas como…

— Como estarmos juntos há tanto tempo, vivendo um relacionamento tão… vazio, tão… coreografado.

Ela ergueu os cabelos acima da cabeça, como se quisesse arrancá-los, e disse:

— Já não era sem tempo! Até eu estava me sentindo assim. Estranhando o modo como as coisas estavam acontecendo. Você me vendo sempre nas madrugadas, nunca aparecendo para o almoço.

— Almoço?

Quase instantaneamente o Senhor Sombra se deu conta de que, embora conhecesse a palavra, não tinha nenhuma lembrança de jamais ter almoçado. Aliás, nem ela, como logo confessou.

— Vou tomar um banho.

Ela se dirigiu ao banheiro levando uma toalha limpa, retirada do guarda-roupa,e o Senhor Sombra se dirigiu até a sala. Havia lá um piano antiquado, coberto de poeira. Levantou o lençol que o cobria, destampou o teclado e correu o dedo pelas teclas brancas, experimentando-o. O som saiu límpido e perfeito, quase irreal. Lembrou-se então: sabia tocar piano. Graças a esse talento frustrara um plano do Bombeiro, que ligara uma bomba ao teclado do órgão da Catedral de Onirópolis. Como não seria possível desarmar o dispositivo antes do serviço litúrgico, conseguira deslocar a tecla de acionamento para uma nota que não seria usada na missa. Sentou-se, então, ao piano e tentou dedilhar algum acoisa. Descobriu, então, que não conseguia.

Isso o intrigou, enquanto ouvia o chuveiro chiando. O que estaria acontecendo em sua vida? Ansiava quase para que a noite viesse e ele voltasse a ser um herói cheio de recursos combatendo o crime. Mas então pensou: até quando, e por que? Sentia-se andando em círculos, e cada vez mais longe de qualquer coisa que valesse a pena.

Teve a intuição de alguma coisa quando Raio de Luar saiu do banheiro, já vestida e maquiada:

— Querida, é melhor não perder tempo tentando cozinhar. Vamos comer em um restaurante enquanto pensamos no que fazer.


Duas pombas pousaram no comedouro localizado no canto do quintal, arrulhando furiosamente e atrapalhando as lembranças do Senhor Sombra. Ele se levantou, olhou para trás, viu todo o trecho que já capinara e podara, e viu que havia feito um bom trabalho.

Deixou as ferramentas em um compartimento junto da escada e subiu para a varanda dos fundos. Enquanto limpava as mãos no tanque de lavar roupas, ainda com as lembranças frescas na memória, convidou Raio de Luar para almoçar fora:

— Sabe, mulher, hoje faz quinze anos que estamos casados. Eu ainda me sinto muito surpreso com essa facilidade de contar datas e tempos. Dou valor a isso, sendo domingo ou não. Por isso, larga esse fogão, toma um banho e põe uma roupa bonita e vamos comer em algum restaurante bonito, vamos lembrar daquele dia em que apareci na sua casa, do nada, e a levei para comer um hambúrguer pela primeira vez.

Raio de Luar parou de arear a panela e o contemplou com uma expressão amassada no rosto. Depositou a panela dentro da pia da cozinha e começou a chorar.

— Eu sei, querida, não está sendo fácil para nenhum de nós. Mas eu quero crer que ainda seja possível tentar ser feliz nesse mundo.

— Nem nesse e nem naquele, Rogério.

Tinha adotado esse nome, o da sua identidade secreta.

— Mas você vai, pelo menos, ficar um pouquinho menos triste por deixar de cozinhar nesse domingo bonito e comer alguma coisa em um restaurante? Depois a gente vai ao parque dar pipoca aos pombos, ver um filme no cinema, lembrar como era…

Ela se aproximou e o abraçou com força e abandono. Não conseguia parar de chorar.

— Por que viemos para cá, Rogério? Por que?

— Por isso — ele respondeu enquanto dirigia sua cabeça para cima e a beijava. Ela se rendeu, deixou que ele desprendesse as alças do vestido e fizeram amor naquela manhã, sob o olhar surpreso das pombas que tinham vindo pela canjica do comedouro.

A rua estava cheia de gente naquela manhã fresca. Carros iam e vinham, alguns em velocidade um tanto alta. O Senhor Sombra andava cuidadoso, com os braços firmemente trançados com os da Senhora Raio de Luar. Levava no rosto uma secreta e provisória felicidade, capaz de esboroar-se com qualquer esbarrão. Procuraram o restaurante da esquina, o mesmo onde haviam comido juntos pela primeira vez em suas novas vidas, dezesseis anos antes. A proprietária, com seus dentes incisivos proeminentes e suas unhas bem pintadas, continuava cumprimentando-os como se fossem amigos de uma outra encarnação. Tinha sido tão importante encontrá-la, ou teriam, talvez, morrido de fome nos primeiros dias, em que não sabiam cozinhar e nem o que fazer. Mas o tempo passara, ele se tornara o que sempre quisera ser, um vendedor de eletrodomésticos, e ela ambos haviam aprendido tudo que precisavam saber a respeito do mundo. Dezesseis anos, muito tempo, tempo para aprender a viver de novo.

Antes do almoço pediram uma cerveja. Bebida que o Senhor Sombra só descobrira depois de casado. Antes nunca ousara bebê-la, pois sempre só a via ser consumida por bandidos. Mas a liberdade lhe mostrara que não precisava cometer crimes para apreciar o álcool, e isto apenas lhe produzia a protuberante barriga de que não conseguia se livrar.

Raio de Luar pegou o jornal do dia e começou a ler, enquanto ele, contemplando as bolhas de gás que subiam pelo copo, começou a novamente lembrar os velhos tempos em Onirópolis, em que a vida era frustrante, mas era simples, era sombria, mas era simples. Simples, que saudade sentia de um mundo em que os maus andavam de uniforme, nenhum plano maléfico era bem sucedido e todas as pessoas boas viviam felizes a maior parte do tempo.

Mas sempre que pensava nas boas coisas, coisas que mereciam essas saudades, lembrava também da sensação de eterna vigilância, de futuro demarcado a ferro, de andar em círculos em torno de nada, em uma cidade que parecia uma casa de bonecas muito grande. Ao contrário de Raio de Luar, não tinha nenhum arrependimento. Sabia que rugas e artrite eram o preço que pagaria, mas até mesmo a dor que sentia nas madrugadas lhe contava que estava vivo, e que isto era muito bom, até morrer seria bom. Mas não seria como as décadas sem sentido que passara vegetando pelos becos e sombras combatendo crimes estúpidos, cometidos por gente sem sentido.

Naquele dia em que conseguira permanecer desperto, descobrira muitas coisas. Principalmente descobrira o quanto ignorava sobre o mundo em que vivia. Principalmente descobrira como era sem rumo e sem noção o tipo de vida que vivia. Conseguira permanecer desperto outras vezes depois daquele dia, a poder de muito café e disciplina. Sentia-se cansado demais certas noites, mas não tinha receio disso porque o crime nunca venceria, conforme percebera. Então, quando completou seu entendimento e compreendeu o seu desespero, decidiu que precisava fazer alguma coisa a respeito.


Quem lhe dera a ideia fora o Mestre Magnético. Fora de suas obrigações noturnas de vilania, ele era um pacato professor — ou deveria ser, visto que, tal como o Senhor Sombra, ele tampouco conseguia viver durante o dia. Há muitos anos concebera uma máquina capaz de explorar dimensões alternativas, e a utilizara para trazer misteriosos alienígenas a Onirópolis, seres malignos que quase destruíram a cidade, e que em nada obedeciam a ninguém. Sombra derrotara a todos e o Mestre Magnético, percebendo que não tinha controle sobre quem trazia, desaparecera com a máquina.

Mas, se era possível trazer coisas e gente de outras dimensões, certamente era também possível levar para outros planos de existência. Este fora o raciocínio do Senhor Sombra, a fagulha de intuição que faltara ao Magnético. Sombra foi à sua casa para acordá-lo numa manhã de domingo, acompanhado de Raio de Luar.

O Mestre Magnético vivia em uma casa colonial no cume de uma colina, cercada de pomares cheirosos e lagos artificiais cheios de peixes. Era no subterrâneo da colina que se localizava o seu laboratório vilanesco, mas disso Sombra ainda não sabia. Aliás, só soubera da sua identidade civil recentemente, numa de suas andanças diurnas, ao também reconhecer a sua voz. Fora então que, também, se dera conta de não ser o único que, às vezes, perambulava sonambulante pelas ruas de Onirópolis durante o dia. Obtivera esta informação, mas a mantivera secreta consigo, tentando ocultá-la de seu misterioso acossador, ainda que pensasse que ele conseguia ler até seus pensamentos mais secretos e medos. Por sorte, suas noites de aventuras eram tão movimentadas que não lhe sobrava mais muito tempo para pensar.

O pacato professor estava dormindo como normalmente fazia, depois de uma noite de trapaças eletromagnéticas para desativar os sistemas de segurança dos bancos e roubar barras de ouro. Um plano estúpido como todos os outros de todos os bandidos, porque não havia exatamente o que fazer com tanto ouro, a não ser, talvez, derretê-lo e dourar o próprio cadáver.

Raio de Luar não teve a sutileza do Senhor Sombra. Em vez de acordar Patrício Alves com gentis puxões e empurrões, atirou-lhe à cara uma caneca de água gelada e depois lhe tascou um beliscão na coxa, perto da genitália. Ele acordou berrando como um boi ferroado e dando chutes perdidos no ar. Ao ver os dois diante de sua cama, entrou em pânico como um colegial diante do inspetor de salas.

— Q-quem são vocês, o que querem?

— Calma, Mestre Magnético — disse o Senhor Sombra — não precisa ter medo.

— Quem? C-como v-vocês sabem?

— E você acha que ninguém sabe, Pato? — brincou Raio de Luar.

— M-mas, c-como n-ninguém n-unca…?

— Não tente entender.

Levaram mais de quarenta minutos para explicarem ao assustado vilão tudo o que já haviam descoberto sobre a vida, o universo e tudo o mais. Quando terminaram, ele empertigou o corpo, acertou os óculos sobre o nariz e decretou, com sua lógica de cientista maluco:

— Tudo faz sentido, tudo se encaixa. Vocês têm toda razão.

— Então, o que me diz, Mestre Magnético? Vai nos ajudar nessa loucura?

— Por que eu os ajudaria?

— Porque ficaria livre de mim definitivamente, e não haveria ninguém para impedir os seus planos mais loucos.

— É uma oferta tentadora, mas agora que sei tudo isso que me contaram, não me parece que haja mais qualquer vantagem em ficar aqui e imperar sobre esse nada.

O Mestre Magnético se aproximou da janela, contemplando a cidade que brilhava sob o sol, estendida até perder-se no horizonte.

— Eu vou ajudá-los. Mas se o que penso em fazer der certo, eu não vou ficar aqui para levar adiante meus planos malucos. Vou com vocês, para tentar realizar os meus verdadeiros sonhos.

— De que você está falando, Pato?

— Todo esse dinheiro que eu sonhava em roubar só tinha por objetivo financiar minhas pesquisas com o objetivo de deixar esta cidade-ilha no meio nada e ir até onde eu pudesse fazer o que realmente queria fazer: ser um cientista de verdade, descobrir coisas, ser reconhecido por isso.

— Não vejo nenhum motivo para desconfiar que dê errado. Você trouxe criaturas vivas de outras dimensões.

— Tudo é uma questão de se descobrir a dimensão adequada.

O sol já ia baixo no céu quando os três desceram pelo elevador do laboratório secreto do Mestre Magnético levando tudo o que pretendiam levar de Onirópolis ao além. O Senhor Sombra não levava seu uniforme, mas não deixaria para trás alguns de seus utensílios de combate ao crime. Não levaria nenhum dinheiro, somente documentos, um lanche para viagem e uma caixinha de primeiros socorros. Levava roupas também. Tudo dentro de uma mochila e de uma mala. A Senhorita Raio de Luar levava maquiagem, roupas, esmaltes de unha e uma pistola de bolso.

— Acho que vão precisar disso — disse o Mestre Magnético enquanto lhes entregava uma caixa de madeira tão pesada quanto um paralelepípedo.

— O que é isso?

— Abra e veja.

Dentro haviam pequenos fragmentos dourados, como se tivessem passado uma barra de ouro por um moedor de carne, na engrenagem grossa.

— Isso é o que parece?

— Claro que sim.

— Onde conseguiu?

— Onde você acha? Fruto de meus crimes, mas também fruto da jazida que havia sob essa montanha que eu esvaziei para construir meu laboratório.

— E você está nos dando isso, assim?

— Para um cientista, Senhor Sombra, nada é mais valioso do que o conhecimento. Hoje você me trouxe informações preciosas, que me ajudaram a chegar a conclusões que nem sonhava. Com essas informações, eu obtive novos conhecimentos e tive ideias para novos objetivos em minha vida. Considere isso como um pagamento. E acredite, ouro deve ser uma das poucas coisas que conservam valor em todas as dimensões, pelo menos naquelas onde há civilizações. E é para uma dessas que desejamos ir.

— Agradecido — disse o Senhor Sombra, indiferente ao fato de que estava se apossando de algo que poderia ter sido produto de roubo.

— Todos de posse de suas malas e mochilas! — ordenou o Mestre Magnético.

Girando um controle de válvula da velha máquina dimensional, ele pôs em funcionamento um ruído infernal de martelos batendo e engrenagens girando, que logo foi substituído pelo assobio discreto de circuitos trabalhando em carga elétrica máxima.

Um círculo violáceo começou a aparecer na parede, tornando-se progressivamente translúcido. Logo parecia possível enxergar através da nata roxa uma paisagem desolada, por onde perambulavam criaturas parecidas com os monstros que o Mestre Magnético um dia trouxera a Onirópolis.

— Foi desse lugar que você trouxe os monstros aquela vez?

— Sim, eu os atraí mostrando-lhes pedaço de carne através da janela dimensional.

— Tente outro lugar, esta dimensão não me parece muito agradável.

O Mestre Magnético fuçou nos controles, empurrando alavancas, girando válvulas e apertando botões em gestos cômicos. Outra paisagem apareceu, escura e sem vida. Os gestos engraçados se repetiram. Uma interminável extensão de água apareceu, talvez aquilo que se chamava de “mar”, mas que o Senhor Sombra nunca tivera diante de si.

— Espere um pouco.

O Senhor Sombra aproximou-se da janela, tendo até vontade de levar a mão até aquela água que oscilava como um balé celestial. Chegou a sentir borrifos de umidade em seu rosto, com um cheiro acre e frio. Porém conclui que tampouco seria recomendável pousar naquele lugar. Fez um gesto e o barulho das engrenagens se ouviu de novo. E outra paisagem apareceu. E outra, outra, e outra. Várias paisagens, de diversos tipos e planetas.

Por fim, depois de minutos longos e tensos, diante da descida ameaçadora do sol, anunciando a noite que os obrigaria à vigilância sempiterna do Invisível, apareceu diante de seus olhos a visão e uma cidade pacata e relativamente pequena, com ruas largas e arborizadas que, em alguns lugares, se conectavam com estradas de asfalto até se perderem no horizonte.

Raio de Luar se aproximou e acenou positivamente com a cabeça. Aquele era um bom lugar para chegar. Havia vida, havia pessoas, havia estradas que levavam ao longe, havia até mesmo, quem poderia dizer, um caminho até o mar.

— É aqui, Magnético.

Ele aumentou o ritmo do gerador, alargando a janela até caber com folga um corpo humano.

— Não temos muito tempo — disse o vilão, vendo que o sol já tocava a fímbria do horizonte. É um momento de decisão, podemos não ter outra chance nunca!

Sombra e Raio de Luar se deram as mãos, cheios da coragem que o tédio dá, e saltaram pela janela.


O almoço chegou. Comida simples e barata, mas feita com limpeza e cuidado. O Senhor Sombra enrolou macarrão no garfo, molhou na lagoa de feijão que ocupava um terço do prato, e começou a degustar aqueles sabores caseiros.

Raio de Luar deixou o jornal sobre a mesa vizinha, para outro freguês se distrair, e começou a misturar a vagem com o arroz, como gostava de fazer.

— Condenaram o Pato.

— De novo?

— Desta vez foi pior. Seu último invento matou bastante gente. Sorte que nesse país não tem pena de morte, como em outros.

— Sorte? Não vejo sorte em deixar vivo um vilão que mata tantas pessoas. Isso não é bom nem para o vilão. Que droga de vida passar décadas atrás das grades, em celas imundas!

— Acho que devíamos visitar.

— Acho que não.

— Por que não, Rogério?

— Clarice, por favor! Não vamos começar com isso de novo. Nós nos demos relativamente bem aqui nessa cidade. Temos bons empregos, boa casa, somos respeitados pelas pessoas, as crianças estão bem. Por que vamos nos envolver com um cara que não consegue se adaptar, que teve uma chance e jogou fora?

— Porque? Ora, Rogério! Você não é humano. Você não entende!

— Não entendo o que, Clarice?

— Pato é uma vítima de tudo isso, tal como eu e você!

— Não me sinto vítima, Clarice. Estou muito feliz como estou!

— Você é um egoísta, você já esqueceu completamente tudo que aconteceu lá!

— Eu não sou tão feliz a esse ponto, Clarice.

Terminaram o almoço em um clima tenso. Rogério se sentia levemente culpado por ter magoado Clarice de um jeito que não entendia como.

— Vamos voltar para casa, querida. Precisamos descansar, os dois. A semana vai ser difícil.

Naquela noite o Senhor Sombra foi dormir com a consciência pesada, pensando em Patrício. O pobre coitado nunca conseguira se adaptar ao mundo. Nunca deveria ter deixado Onirópolis. Lá, pelo menos, seus planos não feriam ninguém e ele continuava sempre livre para ter seus sonhos, mesmo que nunca se realizassem.

No dia em que chegaram, numa tarde de verão muito quente, imaginaram que tinham vindo sozinhos, que o Mestre Magnético mentira e não ousaria segui-los. Mas tão logo respiraram fundo e começaram a descer o morro em direção ao centro da cidade, ouviram um crepitar elétrico atrás de si e ele, fantasiado de pessoa comum, materializara-se no ar:

— Onirópolis não terá graça sem o Senhor Sombra e a Senhorita Raio de Luar!

— Onde estamos, Patrício? Sabe que dimensão é essa?

— Não sei, não tivemos tempo de analisar. Mas aqui as coisas parecem existir de uma forma bem parecida com o que conhecíamos. Então será fácil nos adaptarmos.

Mas não foi assim. Para nenhum dos três. A vida em Juiz de Fora trouxe desafios que nenhum deles compreendia. Apesar de terem nas pepitas de ouro um recurso útil, que lhes ajudou a sobreviver enquanto não encontravam trabalho e nem se adaptavam ao ritmo incessante de um mundo que parecia nunca dormir. Ao fim de um ano, mais ou menos, o Senhor Sombra era um entusiasmado vendedor de eletroeletrônicos em uma loja de departamentos, do tipo que fascinava o freguês com suas descrições dos aparelhos. Sua eficiência em fechar vendas logo o levaria a postos de gerência, ganhando dinheiro e gozando da admiração dos colegas de trabalho.

Fez amigos, comprou uma cota em um clube, usou seus dotes ginásticos para ser imprescindível nas peladas de domingo. Deu aulas de artes marciais, impressionando com a sua agilidade apesar do corpo esguio. Magnético e Raio de Luar, porém, não conseguiram nunca nada parecido. Ela ainda teve o consolo de ser dona de casa em um mundo em que isso não era exatamente uma vergonha, mas não era o que queria. Gostou dos filhos, um lindo casal de anjinhos morenos, com os olhos verdes da mãe e os cabelos crespos do pai, mas logo descobriu que a vida em Juiz de Fora tinha certas desagradáveis diferenças, que iam além do ritmo cansativo e interminável da rotina.

A primeira constatação foi após o parto do menino, quando viu que as cicatrizes não desapareciam, que ganhara algumas estrias e alguns quilos. Ouvira falar de cirurgia plástica, mas nunca tivera certeza de que resolvesse de fato. Quando nasceu a menina, que não foi planejada e nem desejada por ela, tudo piorara ao ponto de entrar em depressão.

Patrício, por sua vez, tivera de enfrentar as consequências de seus atos. Apesar de um relativo sucesso inicial como professor de ciências em diversas escolas da cidade, nunca abandonara seus pensamentos grandiosos, suas mirabolantes ideias de dominação do mundo. A diferença era que em Juiz de Fora as pessoas pareciam não ter tolerância com suas idiossincrasias. Quando construíra a máquina destravadora de cofres, graças a qual roubara eficientemente a agência do Banco do Brasil na Rua Halfeld, perdera os empregos e fora sentenciado a vários anos de prisão, de onde só saiu por bom comportamento, depois de quatro anos. Depois disso sossegara um pouco, trabalhando como professor voluntário em um pequeno município vizinho, mas voltou a envolver-se com o crime ao desenvolver, inspirado por uma notícia de jornal, o aparelho que influenciava o comportamento das pessoas usando ondas eletromagnéticas. Não chegou a usá-lo em crime algum, mas os seus testes chamaram a atenção de muita gente. Acabou preso novamente, seu laboratório foi confiscado, perdeu mais dois anos detrás das grades. Da segunda vez que esteve preso, saiu da cadeia humilhado, magro e triste. Tinha perdido dois ou três dentes e estava com uma calvície precoce e proeminente. Fora Raio de Luar que lhe custeara as próteses dentárias e lhe ajudara a conseguir novo emprego, em uma entidade que trabalhava com ex presidiários. O antigo vilão malvado de Onirópolis, por fim, passara a ganhar a vida como um simples eletricista. Até ser acusado de tentar pela terceira vez seu “golpe de mestre”, invadindo o sistema de computadores de uma grande indústria para usar as suas máquinas na fabricação de um gigantesco exoesqueleto de aço que, tentando deixar os limites da fábrica, matara dezenas de seguranças, derrubara uma parede sobre um ônibus de operários que chegavam para o serviço e ainda pisoteara uma multidão de outros que saíam de seu turno. Talvez o inusitado do crime tenha sido a pista que levou a polícia a Patrício, embora ele sempre tenha negado. Foi condenado, enfim, a mais seis anos de cadeia, que deveria cumprir integralmente. Mas estava envelhecido e alquebrado. Certamente não sobreviveria a mais isto. E ainda assim o Senhor Sombra ia dormir naquela noite, sem pensar em fazer coisa alguma por ele.


O dia amanhecia sempre cedo para o Senhor Sombra, que precisava entrar no serviço às oito da manhã. Por isso, naquela segunda-feira ele acordou automaticamente, como sempre fazia, tomou o seu café, vestiu seu uniforme e foi ao ponto esperar o ônibus para ir trabalhar. Não teve tempo de ouvir as notícias e nem de ler os jornais. Foi só quando já estava quase pela hora do almoço que teve uma sensação estranha no peito, que se lembrou, assustado, de que não percebera que a mulher não estava ao seu lado quando se levantara. Passou o dia tenso, pensando no que poderia ter acontecido. Especialmente porque, enquanto comia, tivera tempo de perceber no noticiário local uma manchete sobre uma fuga muito esquisita do SERESP.

À noite, em casa, deu-se conta do desastre. O filho mais velho, já com treze anos, e a menina, que tinha dez, estavam sozinhos vendo televisão.

— Onde está a mamãe?

O Senhor Sombra foi até o fundo da garagem e percebeu que o seu armário de ferramentas, sempre trancado, fora arrombado. A pequena caixa contendo o cinto de utilidades do herói estava violada. O que faltava eram dois utensílios aparentemente desconexos: uma bússola magnética e um laser frio. Itens que nem faziam tanta falta, porque bússola é barato de se comprar e ele tinha outros lasers iguais, trazidos de Onirópolis. Mas a lógica conectava os desaparecimentos de alguma forma.

Voltou à casa, tomou seu banho, vestiu um jeans escuro, uma camisa preta de mangas longas e uma velha botina de couro que quase não entrava em seu pé, que estava mais gordo.

— Crianças, o papai precisa dar uma saidinha para resolver umas coisas.

Na garagem, cingiu o cinto de utilidades, colocou os óculos (agora necessários), cobriu a cabeça com um velho chapéu de feltro, que comprara num instante de saudades, e ao se olhar no espelho teve a impressão de que dezesseis anos não tinham se passado.

Deu ré com a facilidade de um motorista treinado, como se ainda estivesse em Onirópolis, e foi fechar a garagem.

Acelerou com cuidado, sem deixar o Opala rugir muito. Sua cabeça funcionava alucinadamente, em um ritmo ilógico e estranho. Mas fazia sentido. Fazia sentido. Merda! Fazia sentido.

Viu-se ao pé do morro que descera, dezesseis anos antes, de mãos dadas com Raio de Luar. Engatou a segunda marcha e pisou no acelerador. O carro subiu o morro sem questionar. Estacionou e desceu do carro, bússola em punho. A agulha do instrumento girava sem controle, como se o norte perambulasse por todas as direções.

Caminhou na direção do lugar onde Patrício aparecera um dia e notou que a agulha se firmava mais naquele rumo. E lá havia um resto de brilho arroxeado no ar.

“Como é possível, depois de dezesseis anos?” — pensou.

Então, subitamente, deu-se conta de que do outro lado daquele portal, onde funcionava o misterioso gerador de campo de força, vigoravam leis diferentes das que governavam a física da realidade. Lá era perfeitamente possível que uma máquina continuasse girando por dezesseis anos, ou até milênios, se você necessário ao fechamento dos fatos.

Por um momento teve a impressão de que tudo que vivera em Juiz de Fora não fora senão uma aventura a mais, que aquele portal o puxava de volta, que tudo não passara de uma estratégia do roteirista para envelhecê-lo, para desatar os nós intermináveis que entediavam e impediam o futuro.

Aproximou-se do portal, sentindo um cheiro de ozônio no ar. Através da tênue nata que se formava conseguiu enxergar o laboratório do Mestre Magnético, coberto de divertidas teias de aranha, e viu Raio de Luar, gordinha e loura, mas adorável em um vestido verde. Ao lado dela o Patrício tentava tirar a poeira de um uniforme de vilão. Tivera sorte porque continuava magro, ao contrário do Senhor Sombra, com seus vinte e cinco quilos adicionais.

Teve vontade de saltar atrás deles, perguntar-lhes o que estavam fazendo. Teve vontade de tirar do bolso o laser frio e atirar nos dois. Não o fez porque se lembrou das regras, e porque, afinal, Raio de Luar estava adorável naquele vestido, parecendo ter remoçado uns dez anos. E Patrício, em vez de um farrapo humano apodrecendo na cadeia, era novamente um temível vilão de história em quadrinhos, com uniforme bufante, capacete ridículo e planos adoravelmente diabólicos e idiotas.

— O que é isso, papai? Onde está a mamãe?


Assustou-se com a voz do filho. A menina estava junto com ele, muda e de olhos imensamente arregalados. Os dois diabinhos tinham entrado no carro pelas portas de trás enquanto ele se distraía pondo o cinto de utilidades.

— Mamãe foi embora, filho. Mamãe fez uma coisa muito bonita.

Eles se aproximaram da nata roxa.

— Não, não cheguem muito perto, meninos. É perigoso.

— Aquela moça de verde parece a mamãe.

— Aquela é a mamãe.

— Ela está tão bonita.

— Está, sua mãe sempre foi muito bonita.

— Chame-a de volta, papai. Chame-a de volta.

— Infelizmente, meninos, ela não pode nos ouvir mais, o portal está se fechando.

— Onde ela está? Onde ela está?

— Ela voltou para o lugar de onde veio, meninos.

— Não podemos ir junto?

— Não, garotos, o portal só permite que volte por ele aquilo que por ele passou primeiro. Foi assim que eu derrotei os monstros do Mestre Magnético. Eu conseguiria ir com ela, mas vocês não conseguiriam. Depois que eu passasse ele fecharia e eu não posso garantir que conseguiria reabrir de novo do outro lado. Ele está sob o controle do Mestre Magnético.

O Senhor Sombra sentiu um gelo na espinha ao pensar nas chantagens a que poderia ser submetido pelo aqui-inimigo em troca de um portal para trazer seus filhos, mas lembrou-se, mais ainda, de que geralmente os filhos dos super-heróis são mortos pelos vilões.

— Garotos, não há como irmos para lá. Vamos torcer que a mamãe volte.

Os meninos viram a nata roxa se dissipar até restar apenas uma vaga cintilação. A agulha da bússola se acalmou, indicando a direção oposta ao Cruzeiro.

Foi difícil voltar para casa, mas quando entraram de novo na sala, o Senhor Sombra foi surpreendido pela pergunta do filho:

— Será que essa história vai sair na nova revista que vão lançar?

— Que nova revista, filho?

— A revista do Senhor Sombra acabou faz mais ou menos dezesseis anos, porque todo mundo achava chata demais. Mas eu ouvi dizer que a editora contratou um novo roteirista e vai reiniciar a série.

Naquela noite o Senhor Sombra foi novamente dormir se sentindo vigiado por todos os lados e, se não fosse o amor dos filhos, teria usado o laser frio e se livrado de sua miséria.

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