Entrei em uma sala gélida, de móveis desenhados a régua e compasso, mas sem inspiração. Uma senhora tentava parecer vinte anos mais jovem a custa de muita maquiagem e de roupas roubadas do armário da filha do meio.Quando me viu ela ergueu os olhos cuidadosamente, tentando disfarçar que os seus óculos transados eram trifocais, e sinalizou-me uma cadeira desconfortável. Sempreé desconfortável a cadeira de quem se mede com a autoridade, eu tinha a sorte de não ser um instrumento de interrogatório medieval. Vendo-me devidamente em meu lugarpara o ritual, ela guardou na gaveta alguma coisa que tinhaà mão, não sem antes dar-lhe uma última conferida. Provavelmente um cronômetro, pois seu tempo comigo seria contado.
Nessas situações eu sempre fico desorientado, sem saber exatamente como esperam que eu me comporte. H&macute;empresas que preferem os tímidos, que se sentam com as duas pernas paralelas e põem as mãos sobre as coxas.Outras apreciam mais os que ousadamente cruzam-nas, apoiando umbraço sobre o joelho e o outro sobre a canela. Pensei em prescrutar as intenções daquela mulher, mas relembrei que há empresas que não apreciam inquisitivos, e acabei ainda mais indeciso — o que raras empresas apreciam.
— Booa taarde.
A voz descansada daquela mulher, que se detinha nas sílabas tônicas como se elas fossem mais doces!Detesto sotaques afetados. Possivelmente uma estratégia para irritar-me: ela pode ter lido algo no meu blogue. Não soa natural, ninguém fala desse jeito. Está fingindo para me irritar. Pronto, conseguiu.
— Boa tarde.
Respondi com a típica rispidez mineira, que abrevia asátonas até o limite do inaudível. O o se confundindo com o b e o e final assimilado na africação do d, devidamente dobrando o r até quase desaparecer também, na sombra entre uma sílaba e outra. Não queria parecer apressado, mas minha sanidade dependia de pelo menos alguma aceleração no diálogo. Ela não deu sinal de ter detectado a peça que eu movera mentalmente, ou então fui eu quenão pude perceber o movimento dela.
— O senhor poderia nos falar um pouco mais sobre si?
Plural majestático! Caramba! Que tipo de pessoa emprega plural majestático sem ser majestade ou deus? Somente quem se acha ser, ainda que não seja, ou quem não sabe oque está dizendo. Perdoai-os, Pai!
Curioso também que me pedisse para falar um pouco mais sobre mim, considerando que eu só pudera dar-lhe boa tarde.
— Meu currículo…
— Por favor, não falemos sobre o que está nocurrículo.
Detesto pessoas que interrompem frases no meio, que acham que já sabem o que o outro ia dizer. Pessoas que não me deixam sequer introduzir meu argumento com uma leve tergiversação. Pessoas como aquela mulher, que nunca chegou a saber que o resto de minha frase era “… é bastante detalhado, mas prefiro enfatizar certos aspectos não normalmente postos em um documento desses.” Ensaiara a frase por meia hora antes de entrar, e a vadia me cortava a faca fria, me derrubando de novo na incerteza do que dizer. Detesto pessoas que interrompem frases no meio. Tive de reagir.
— Nesse caso específico é importante lembrá-lo, pois, como ia dizendo, embora ele seja detalhado, há certas coisas que não cabem ali. Por exemplo, sei que será do interesse da empresa saber que já trabalhei como artesão, mas esta experiência émuito pessoal.
— Então, talvez, a empresa não se interesse, não é mesmo?
— Possivelmente, nem todas as empresas estão interessadas em pessoas.
Pavio curto, pavio curto. A vadia não precisara de mais que três frases e um boa tarde para me colocar em modo de ataque. Devia estar rindo por detrás daquela maquiagem grossa de se arrancar com espátula.
— O senhor poderia nos dizer o que o atrai em nossa empresa.
Certamente não ela. Deveria ter dito algo sobre perspectivas profissionais ou reinserção no mercado ou algum desses chavões, mas resolvi ser agressivo:
— Vocês se propõem a pagar-me mais do que ganho fazendo a mesma coisa para um concorrente.
— E para você o dinheiro é tudo que importa?
— Já trabalho no que gosto, no momento o que me importa é ganhar mais. Então, sim. Dinheiro me importa muito.
— Qual a sua marca de carro favorito?
Que pergunta besta. Aquela mulher obviamente não entendia nada de carros. Resolvi asseverar-lhe minha superioridade, demonstrando o engano de sua pergunta:
— Chevrolet.
— Poderia ser mais específico, por favor?
— A senhora deseja, então, saber qual o meu modelo favorito?
Fiz questão de enfatizar levemente a palavra. Não sei se ela entendeu. Para mulher marca e modelo são a mesma coisa, mas rosa, lilás, salmão e pink não são. Suponho que seja treinada para não demonstrar reação diante de situações de contestação. E que esteja devidamente habilitada para me desprezar se perceber que a vejo como desprezível.
— Se não se importar.
Uma leve importunação apareceu, porém. Disse-lhe o nome de um modelo qualquer. Não muito barato que parecesse comum, não muito caro que parecesse esnobe. Ela então passou a outro item no questionário:
— Responda, por favor, o que lhe vem à mente diante das palavras que vou lhe dizendo.
Ah, não. O maldito teste da livre associação de ideias.
— Ovos.
— Fritos.
— Lua.
— Crescente.
— Saia.
— Justa.
— Óleo.
— Peroba.
— Folha.
— Verde.
— Prato.
— Fundo.
— Leite.
— Vaca.
— Cadeira.
— Elétrica.
— Livro.
— Negro.
— Bola.
— Gato.
Não sei o que ela concluiu de minhas associações. Eu não perguntaria nunca. Ainda mais depois de notar que o teste seguinte consistia em copiar de próprio punho algumas frases pueris. Aplicariam em mim um teste grafológico. Com um pouco mais de sorte me perguntariam o meu signo.
— Se fosse um animal, que tipo de animal o senhor gostaria de ser?
Lembrei da frase certa vez dita por um amigo, a respeito de situação semelhante, e tive ganas de perguntar se era preciso ser um animal para trabalhar naquela empresa.
— Um gato.
Não sei realmente se queria tanto ser gato. Gatos são peludos, morrem cedo e geralmente são castrados por seus donos. Resolvi fazer um adendo:
— Mas se for possível mencionar também animais selvagens, gostaria de ser uma piriá.
Fiz questão de pronunciar assim o nome do pequenino roedor. Se ela soubesse o que era uma preá, talvez entendesse. Se não soubesse, passaria boas horas procurando em dicionários. Fazê-la perder tempo me divertia, já que ela mesma me fazia perder o meu.
— Existe algo que me incomoda no senhor, eu não sei exatamente o que. Você poderia me dizer?
— Não. Mas poderia lhe dizer o que me incomoda na senhora.
— Eu não estou em julgamento aqui.
— Nem eu, senhora.
Devidamente decretadas as hostilidades. Não seria selecionado nem que o único outro candidato estivesse em liberdade condicional, condenado por estupro e morte de uma dondoca afetada. Mas me sentia feliz por ter conseguido irritar aquela profissional irritante.
— Vamos ao exame do currículo, para ver se o senhor atende os requisitos.
— A senhora tem certeza de que isso ainda é necessário?
— Por que a pergunta? Está duvidando do meu método?
— Poderia ser, mas o caso é que simplesmente eu resolvi demitir a senhora.
E dizendo isso, levantei-me da cadeira, fiz-lhe uma mesura e saí da sala pisando leve como um anjo. Não ganharia quinhentos reais a mais, mas tinha a dignidade de rejeitar um emprego que pisava em minha dignidade antes de me contratar.