Como vimos anteriormente, caro leitor, em nossa análise do conto “A Paisagem com Salgueiros”, as obras de Clark ashton smith diferem da maior parte da tradição literária ocidental por colocarem em primeiro plano a construção do cenário, a ponto de o autor frequentemente transformar o próprio cenário em um personagem (como no citado conto). Esta não é uma opção exclusiva sua, mas na época em que escreveu ainda eram poucos os autores que compartilhavam desta escolha. Mesmo nos gêneros fantásticos, os autores, em sua ampla maioria, tendiam a dedicar mais tempo à construção dos personagens e seus conflitos. Como também vimos, a ênfase no cenário (no caso de ashton smith, em detrimento dos personagens) não é necessariamente uma marca de boa ou má qualidade, apenas uma característica que merece ser analisada e que, no caso dele, devido a circunstâncias que lhe são muito peculiares, resulta em uma obra sui generis.
Continuando nossa análise da obra de ashton smith, abordaremos mais especificamente três contos nos quais, a exemplo de “A Paisagem com Salgueiros”, o cenário é a própria motivação da história, a ponto de esta prescindir de um conflito ou de uma sinopse, rompendo radicalmente com certos concietos muito arraigados da crítica literária moderna, como a jornada do herói. Refiro-me, especificamente, a “Uma Noite em Malnéant”, “Abandonados em Andrômeda” e “As Abominações de Yondo”. Se ainda não os leu, sugiro que o faça agora, pois este artigo contém spoilers.
As inclinações artísticas de ashton smith (que se dedicou principalmente à escultura e à pintura durante praticamente a metade de sua vida) explicam a sua obsessão com detalhes e nos ajudam a compreender a riqueza de cores e formas e materiais com que ele faz suas descrições mas não ajudam a entender os motivos pelos quais este detalhismo raramente é estendido ao personagem. Tenho uma teoria para isso, um tanto ousada para alguém que não tem nenhuma formação em psicologia ou crítica literária: o autor estava interessado em descrições de paisagens e lugares para compensar a pobreza de suas experiências sensoriais.
Como vimos na breve biografia que lhe escrevi, com base nos textos da Wikipedia e do Eldritch Dark (que, por sua vez, dependem muito reciprocamente um do outro), ashton smith nasceu, viveu e morreu em uma área relativamente restrita nas proximidades da costa da Califórnia, sem jamais deixar o estado, ou mesmo aventurar-se a mais que umas dezenas de quilômetros de Auburn, onde esteve baseado durante quase toda a sua vida. A paisagem domesticada, a falta de contato com culturas estrangeiras (a não ser por meio de livros ou pela interação com os imigrantes) e a relativa falta de acontecimentos dignos de nota em sua biografia nos fazem pensar que Smith concebeu maravilhosos cenários exóticos para vivenciar neles, por meio de seus personagens, ex periências que ele mesmo não poderia vivenciar pessoalmente, dados os recursos parcos com que tinha de viver e a sua dificuldade pessoal para interagir com pessoas (há indícios de que sua excessiva timidez possivelmemte tenha sido relacionada com algum tipo de síndrome cogênere do autismo, como Asperger, ficando descartada a possibilidade de quadros de depressão pelos fatos conhecidos de sua biografia).
Neste sentido, alguns de seus personagens poderiam ser alter egos seus, e isso de fato ocorre com relativa frequência, não necessariamente de forma restrita às histórias narradas em primeira pessoa. Entre estes personagens, Gaspard du Nord (“O Colosso de Ylourgne”), Phillip Hastane (“A Cidade da Chama Cantante”, “O Devoto do Mal”, “Genius Loci” e “Os Caçadores do Além”) e Henry Chaldane (“A Prole Inominável”) são alguns dos candidatos óbvios. Porém não há evidências de que as histórias exóticas de Smith contenham uma quantidade expressiva de alter egos seus (de fato, na maioria, não parece haver um persoangem claramente identificável como tal). Este fato sugere que, para além do escapismo, exista outro fator atuante no exotismo, e uma vez mais a chave pode estar em “A Paisagem com Salgueiros”.
Nesto conto temos um personagem solitário, vinculado a um compromisso familiar (no caso, a educação do irmão menor) que lhe impede de dar curso aos próprios desejos. Tal personagem, o desafortunado mandarim chinês a quem ashton smith chamou de Shih Liang, é o mais perfeito alter ego do autor, pois, em vez de se dedicar às aventuras que o autor não pode viver, ele se dedica exatamente a um tipo de contemplação artística que não difere muito daquela de ashton smith (que, por sua vez, não pôde viver livremente pela necessidade de cuidar de seus idosos e frágeis pais). Shih Liang vive a admirar uma pintura cara, herdada de gerações anteriores. ashton smith não tinha tal pintura para admirar, mas cria em suas histórias um simulacro de paisagens fantásticas que ele podia contemplar da mesma forma que o mandarim. Em algumas destas paisagens ele claramente poderia desejar habitar, mas, em sua maioria, são apenas saudades artificiais que são, para o autor, aquilo que a paisagem com salgueiros era para o mandarim chinês.
Quando passamos a ver os cenários fantásticos da obra de ashton smith com os mesmos olhos com que Shih Liang encarava a sua paisagem com salgueiros, entendemos finalmente porque as descrições do autor são tão profusas e ganham mais relevo do que qualquer desenvolvimento de personagem: não se trata meramente do estabelecimento de um cenário para situar a ação, o cenário não é concebido para ser meramente um pano de fundo, mas é a própria razão de ser da história em si.
Transpondo a conclusão para uma história como “Uma Noite em Malnéant”, podemos ver como ela explica o desenvolvimento escolhido por ashton smith para todo o texto. Não há nenhuma localização temporal para a história (que, no entanto, evoca de forma tímida um cenário medieval, o que nos remete ao ciclo de Averoigne) e tudo o que sabemos é que o personagem narrador, cujo nome não é nunca revelado, padece de um profundo complexo de culpa pelo suicídio de Mariel, uma jovem com quem estivera envolvido (e cujo título de donzela sugere não ter havido jamais qualquer consumação desse envolvimento afetivo). A partir deste tênue pano de fundo o autor começa a desenvolver uma poderosa descrição de uma metrópole onírica, aparentemente empoçada no tempo e no espaço, eternamente dedicada a velar a falecida Mariel como se fosse uma princesa morta. À parte as possíveis implicações deste cenário funeral com qualquer episódio da biografia do autor (e este aspecto funeral será explorado em outra oportunidade), o todo da história nos sugere a construção de uma obra a ser admirada fixamente. O caráter estático de Malnéant sugere ser uma descrição de um cenário vivamente imaginado por ashton smith (mais tarde, em sua vida, ele passou a se dedicar primordialmente à pintura e à escultura, dando forma mais tangível às fortes imagens mentais que concebia). O nome escolhido, por sua vez, possui várias conotações possíveis, sendo que néant significa nada em francês. Considerando o parco conhecimento que o autor teve dessa língua, é possível que ele tenha imaginado Malnéant como significando quase nada ou mal nenhum (a tradução exata depende da profundidade do referido conhecimento). A impressão que nos resta ao final do conto é a de total inação, como se nada tivesse realmente acontecido e tudo não passasse de uma breve alucinação do personagem-narrador, consumido pelo remorso. Mas a força da descrição se impõe sobre esta impressão de falta de sentido e o conto acaba por ficar profundamente marcado na mente de quem o lê.
Um fenômeno semelhante se nota em “As Abominações de Yondo”, o primeiro conto fantástico publicado por ashton smith nas revistas pulp (e por isso dotado de uma significação especial). Parece haver nesse texto uma intenção deliberada de construir um cenário não convencional, imaginando um mundo plano (pois tem uma borda que fica em um dos cantos e que está por isso mais próxima que qualquer outro lugar dos abismos inferiores) e um cenário absolutamente surrealista, onde convivem ruínas de civilizações esquecidas, restos de mares evaporados, criaturas mutantes (algumas possivelmente de origem alienígena) e obras de feitiçaria. No entanto, este cenário não é aproveitado para desenvolver qualquer tipo de conflito visível. Todo o conflito da história se situa fora de Yondo (nome que certamente deriva do arcaico advérbio yonder, que significa distante ou além) e a presença do narrador no deserto é apenas um intervalo de uma trama da qual sabemos muito pouco. Assim, o narrador entra e sai do deserto brevemente, no espaço de um único dia, trombando pelo caminho com uma série de fenômenos inexplicados até finalmente decidir retroceder e acertar suas contas com os Inquisidores de Yig. Por ser um conto produzido ainda no início da carreira de ashton smith como ficcionista, esta obra contém imperfeições gritantes, das quais a mais evidente é a falta de coerência dos fatos em relação ao tempo-espaço, pois o narrador leva quase um dia inteiro penetrando no deserto para depois, no espaço de poucas horas, conseguir retornar ao ponto de partida, estando já cansado e faminto. A incoerência deste retorno é a grande frustração ao final, apesar da beleza das descrições feitas ao longo de todo o texto.
Mas o ponto mais alto do talento descritivo de ashton smith se encontra mesmo em “Abandonados em Andrômeda”. Praticamente uma noveleta (por alcançar mais de 50 páginas), esta obra consegue um feito raro no âmbito da ficção curta: a concepção e a realização de todo um cenário alienígena. O segundo planeta de Delta Andrômeda é descrito de forma tão eficiente pelo autor que quase podemos nos imaginar em sua paisagem árida e desolada, habitada por formas de vida surpreendentes e hostis. O feito ainda é mais admirável pelo fato de que a história não se restringe a uma única paisagem, o que já seria em si surpreendente, mas abarca uma sucessão de cenários, que incluem até mesmo um tipo de floresta tropical e uma ilha no meio de um mar seco, sobre a qual existem ruínas de uma misteriosa civilização.
A história começa dentro de uma espaçonave onde ocorreu uma tentativa de motim, e o duro capitão Volmar decreta que os rebelados serão abandonados (não existe tradução exata em português para o termo marooned, que evoca um ato de pirataria) em um planeta qualquer. A ação transcorrida dentro da espaçonave serve apenas de prólogo para o que se verá a seguir, a partir do momento em que os amotinados; Albert Adams, Chester Deming e James Roverton; são deixados em uma planície desolada no lado noturno de um planeta alienígena sem terem consigo nem armas e nem provisões. É neste momento que ashton smith consegue se ombrear com os grandes nomes da ficção científica, criando uma atmosfera sufocante de suspense que poucos autores são capazes de imaginar. Este é, sem dúvida, o tipo de texto que motivou H. P. Lovecraft a elogiá-lo em O Horror Sobrenatural na Literatura, dizendo que:
Entre os americanos mais jovens, ninguém executa a nota de horror cósmico tão bem quanto o poeta, artista plástico e ficcionista californiano Clark Ashton Smith, cuja escrita, desenhos, pinturas e histórias bizarras são um deleite para os poucos que têm sensibilidade para tal. […] Por sua ousada estranheza demoníaca e a fertilidade de concepção, o Sr. Smith talvez não seja igualado por nenhum outro autor, vivo ou morto.
Diante da imensidade do terror que assola os três personagens, de quem, aliás, muito pouco se falara além dos nomes, não sobra mais tempo para explorar conflitos entre eles (aliás, é bastante verossímil imaginar que, em tal situação, três pessoas tendessem a agir de forma unida como fazem os protagonistas) ou para que conversem sobre antigas namoradas ou tempos de escola. A ação transcorre em um ritmo alucinante, interrompido apenas pela noite de sono que os protagonistas experimentam entre os pigmeus — e mesmo esta é induzida pela bebida que tomam. Cada um dos cenários é detalhadamente descrito, tornando possível que seja até mesmo traçado por um leitor mais dotado de talento para o desenho.
“Abandonados em Andrômeda” é, aliás, um entre muitos dos contos de Smith que adota um desenvolvimento circular, fazendo os personagens retorarem ao ponto de partida, ainda que modificados pelas experiências vividas. Estrutura semelhante já se nota nos dois comentados (Yondo e Malnéant), mas se repete em vários outros, como “O Demônio da Flor”, “A Ilha Que Não Estava no Mapa”, “Uma Aventura no Futuro”, “Mudança de Estrela”, “As Mulheres-Flor” e “O Colosso de Ylourgne” … nesse caso o aspecto cíclico apenas se insere no plano geral da história). Este caráter circular da história serve ainda mais para enfatizar a importância da experiência em si, descrita em minúcias, diminuindo a importância do desfecho, que só completa o ciclo.
Assim, quando os sobreviventes são resgatados pelo arrependido capitão Volmar (cujo arrependimento, aliás, é motivado por razões práticas e não éticas), eles deixam o planeta sem dele levar qualquer memento a não ser as lembranças (e traumas) das experiências nele vividas. Da mesma maneira que o torturado herói das Abominações de Yondo ou o enlutado protagonista de Uma Noite em Malnéant. O que muda é a atitude dos protagonistas em relação a esta falta. Certamente o herói que foge de Yondo fica feliz por nada trazer, os amotinados de Andrômeda talvez futuramente se arrependam de terem desperdiçado a oportunidade de fazer mais estudos científicos e o visitante de Malnénat decerto gostaria de ter trazido algo de lá.
Em todos os três casos, porém, o cenário em que a história se desenrola é mais importante do que os personagens, e foi certamente concebido muito antes que eles. Prova disso é a possibilidade de reutilizar estes cenários em obras derivadas (algo que, até o momento, só ocorreu com Malnéant, revisitada por outros autores) de uma forma relativamente fácil. Como os cenários não dependem essencialmente dos personagens, é possível colocar outros personagens neles, e assim conceber histórias radicalmente diferentes. Eu, particularmente, gostaria muito de saber mais sobre o segundo planeta do sistema Delta Andromedæ. Quem ousará escrever?