Fernando Pessoa escreveu em 1914 um poema chamado “Uns Versos Quaisquer”, que pode ser interpretado como um breve ensaio sobre a saudade, ou ainda melhor, sobre a “saudade falsa”, este sentimento que tanto faz parte da minha poesia (nem tanto da dele).
Já ao vivê-lo…
Barcas vazias, sempre nos impele
Como a um solto cabelo
Um vento para longe, e não sabemos,
Ao viver, que sentimos ou queremos.
A ideia de que o momento já deva ser vivido com saudades e que a vida está sempre a nos impelir para longe do que queremos, eis o centro de uma parte significativa da poesia de Pessoa, que coincide com o centro de boa parte da melhor poesia que já se escreveu.
Tomei consciência desta divergência temporal entre o momento e saudade quando comecei a perceber que as minhas lembranças não coincidem com os fatos documentados, e que as coisas de que mais sinto falta não foram necessariamente as que mais valorizei quando as vivi. Esta discrepância é resultante de viver o momento já com saudades dele, viver já pensando na lembrança, pesar cada dia como prenúncio de um futuro, em vez de vivê-lo rendido a si mesmo. Tenho vivido muito com essa ideia de planejar, pouco com a de realizar. O fruto agora é eu ter de me entender com entulhos de momentos que não tiveram importância alguma, mas ocuparam muito espaço em minha vida, que atrapalham a lembrança dos pequenos instantes que, em retrospecto, valem a pena ou teriam valido.
“Saudades falsas” são uma reação natural a isto. Se vinte minutos de um verão quase esquecido teriam valido mais do que semanas, por que não estender estes minutos, mesmo que na fantasia. Por que não revisitá-los, na imaginação se não for possível reencontrar os atores para uma remontagem, como um grupo de teatro que encena uma peça antiga.
Infelizmente a companhia debandou, os atores estão ocupados com novas montagens, ou interessados em remontar outras peças que não a minha. Sobra tentar abreviá-la como um monólogo, ou transformar o drama em uma obra de ficção em prosa, esta forma de solitário teatro que será encenado na mente do leitor, e não sobre um palco.
Então os melhores momentos não aconteceram de fato, ou aconteceram muito pouco, ou aconteceram de outra forma. Os melhores momentos acontecem agora, depois de terminado o ensaio. Nenhuma ficção seria melhor do que a escrita de além-túmulo, porque somente então o autor teria controle completo das lembranças, conheceria o encadeamento de todos os fatos, e poderia selecionar melhor sobre que escrever.