Na minha postagem anterior ficou parecendo até que eu sou contra o autor fazer divulgação do seu trabalho. Não é nada disso. Não há nada de errado se o autor opta por divulgar seu trabalho, do jeito que pode. O que está errado é a inversão de prioridades que está ocorrendo: esta disponibilidade do escritor em divulgar o que faz ser percebida pelas editoras como um fator para dar preferência a tais autores.
A tese de Danilo Venticinque diz que nenhuma editora preferiria um autor recluso, a menos que ele fosse um gênio óbvio. Ponhamos de lado temporariamente o fato de que nenhum gênio é óbvio e foquemos num simples raciocínio que serve para explicar o que eu quis dizer:
- Se dois autores têm talento semelhante, mas somente um deles tem disponibilidade e talento para fazer autodivulgação, então a editora prefere o segundo ao primeiro. O que significa que o critério para se discernir entre autores de talento equivalente é uma questão extraliterária. Houve uma época em que os autores pobres tinham grande dificuldade para serem reconhecidos. Houve uma época em que os autores das regiões periféricas tinham grande dificuldade de serem reconhecidos. Isto não ocorria porque eram autores piores, mas porque tinham menos poder de influenciar no mercado. A injustiça que se pratica nesse caso é idêntica à que se praticava, no passado, quando a editora ignorava quem residia nos cafundós do país, sem sequer avaliar sua obra. Disponibilidade para divulgação envolve residir em uma metrópole de vida cultural intensa, de forma que a editora possa organizar eventos e vender muitos livros lá. O autor que não reside e/ou não tem contatos em uma cidade assim estará bloqueado por um fator extraliterário.
- Se dois autores têm capacidade equivalente de autodivulgação, mas somente um deles escreve obras de qualidade, cabe perguntar se para a editora a qualidade faz alguma diferença neste caso, ou se a capacidade de ambos os autores para a autopromoção justificaria que ambos fossem contratados. Nesse caso, temos novamente um critério extraliterária determinando que uma obra de qualidade inferior receba a mesma atenção que uma obra de boa qualidade, apenas porque o seu autor consegue se ombrear com os bons autores em termos de divulgação.
- As editoras fariam diferença entre um extraordinário talento para a autopromoção e um talento literário? Evidente que não. Aí está Paulo Coelho que não nos deixa mentir. Seu talento literário não justifica a atenção que teve e tem, nem a difusão que a sua obra alcançou. Mas ele é um gênio do marketing pessoal como poucos. O que equivale a dizer que se você tem uma capacidade sobrenatural para se promover, você será percebido como um autor genial mesmo que não seja. O “gênio óbvio” a que Venticinque alude não é necessariamente um gênio literário. Donde concluímos, novamente, que são fatores extraliterários que definem a publicação.
Estes três pontos nos sugerem que, de fato, as editoras não estão mais interessadas em boas obras literárias, mas em autores dotados de capacidade para autopromoção. Assim como as gravadoras não se interessam mais por talentos legítimos, preferindo grupos ensaiados por “produtores” e praticantes de estilos musicais estudados segundo prioridades de marketing.
Houve um tempo em que as gravadoras tinham “olheiros” nas casas de shows para detectar jovens artistas talentosos. Quando um desses olheiros percebia alguém dotado de potencial, tratava de fazer com que assinasse um contrato. Assim foram descobertos os maiores nomes da música popular mundial, entre as décadas de 1950 e 1980. Esta não foi a época de ouro da música popular devido a um mero acaso: isto se deveu à busca deliberada pelo talento por parte daqueles que detinham o poder dos estúdios.
Hoje as gravadoras não mantêm mais esse tipo de profissional e os artistas, por mais talentosos que sejam, não conseguem contatos através de seus shows. O que faz sucesso são personalidades histriônicas, que mais dançam (ou dão pulos a que chamam de dança) do que cantam, que se esmeram mais no figurino do que no arranjo, que investem mais em cenário do que em produção musical. O produto que se vende é o artista, não a música. Quantos nomes da música pop tocam o tempo todo no rádio, mas você não consegue se lembrar de mais do que uma ou duas de suas músicas de sucesso, nem sempre recente. Qual foi a música que Ivete Sangalo, Daniel, Cláudia Leitte e Carlinhos Brown emplacaram nos últimos meses? Não importa, eles sempre estão nos programas da televisão. Se você é um artista de talento, não se iluda achando que participando dos raros festivais da canção ou concursos televisivos você vai a algum lugar. Quem vai é o artista jovem, de boa aparência, vestido conforme a moda.
Algo equivalente aconteceu com as editoras. Elas também estão perdendo o interesse por jovens de talento. Elas não procurarão mais os ganhadores de concursos. O que atrai agora é aquele cara que tem um blogue dotado de bom visual, mesmo que sua escrita seja apenas correta. Estão interessadas no sujeito que vive numa capital, pois noites de autógrafos lá atrairão mais gente do que em Afogados da Ingazeira ou Jampruca. Querem um cara jovem e de boa aparência (e todos sabemos o que isto significa, não é?). A boa aparência é essencial porque o produto que se vende não é o livro, mas o autor. O autor tem que ter dentes bonitos para sorrir para a fila de autógrafos. Tem que ter corpo sarado e “modificado” segundo a última tendência. Tem que estar disponível para a televisão, se ela o convidar, tem que ter o pescoço grosso para carregar a melancia que for preciso. E se escrever bem, melhor ainda. Mas nem precisa.
Quero deixar bem claro que eu não estou aqui para execrar os autores que se autopromovem. Eles sempre existiram e o fato de ser “arroz de festa” nunca denegriu a literatura de ninguém. Na verdade este estereótipo do autor recluso sempre foi minoritário. O que estou criticando é essa inversão de valores ocorrida na literatura nacional, segundo alguns editores e articulistas. A elevação do marketing pessoal acima da excelência do trabalho. Isso é pensar que o rabo abana o cachorro.
Entre as razões de minha crítica, uma secundária, mas não irrelevante, é o fato de que esta exigência de autopromoção é feita aos autores nacionais, mas não aos estrangeiros. Certamente há autores do mundo todo que se promovem, mas vários dos best-sellers mais vendidos foram escritos por pessoas que não se enquadram no modelo proposto por Draccon e Venticinque. E não estou falando de obscuros nomes da periferia, mas exatamente dos autores das obras de maior sucesso: J. K. Rowling, Stig Larsson, George R. R. Martin, James Redfield, Khaled Hosni… Todos são pré-históricos, segundo a visão desses editores. Porque não têm blogue, não são arroz de festa, não aparecem em reality shows, não têm a “boa aparência” que se quer. Estes autores não se promovem com a fúria almejada pelos nossos editores nem mesmo em seus países de origem, MUITO MENOS NO BRASIL. Mas eles fazem sucesso aqui porque seus livros já fizeram sucesso lá fora. E os nossos autores têm de concorrer contra eles em uma luta desigual por atenção porque as nossas editoras seguem o caminho do menor esforço e preferem publicar traduções do que investir no risco da novidade nacional. Claro que isto ocorre porque o negócio editorial está em crise. Livrarias fecham e editoras têm de reinventar-se.
As editoras precisam cortar custos como nunca. O horizonte para cálculo da Taxa Interna de Retorno ficou mais curto. Não dá para ter “autores de catálogo”, nem para usar as sobras de um best-seller para publicar um livro de arte. Toda edição tem que se pagar, e tem que sobrar para pagar custos acessórios e recuperar os inevitáveis prejuízos dos fracassos. Publicar traduções é um caminho de menor esforço, ainda que seja um caminho que mata a galinha dos ovos de ouro.
Nossos leitores já são colonizados, e tendentes a achar “chique” qualquer porcaria que venha de fora. “Importado” ou “tipo exportação” sugerem qualidade. Uma tradução de um livro que já fez sucesso nos lugares certos tem um apelo. “Dez semanas na lista dos mais vendidos do New York Times” é uma chamada que provavelmente assegurará pelo menos várias semanas na nossa lista de mais vendidos. Não se questiona a origem da lista do N.Y.T., e nem porque o jornal tem esse renome, e nem porque nós achamos que estar no New York Times dá status. Se um livro esteve semanas na lista do N.Y.T., seu autor não precisa vir aqui fazer pajelança para vender, basta que sua obra seja traduzida a toque de caixa e ele já começa a ser sucesso. A longo prazo, nosso mercado encolhe ainda mais para o autor nacional, a menos que ele se enquadre em um papel predeterminado, “popificado”.
No fim o que nos espera é o deserto. O que aconteceu com a TV aberta e com a música popular brasileira não serviu de lição.