Eu juro que tento me concentrar em escrever os meus textos em vez de me preocupar com as últimas polêmicas da internet, mas o mundo anda muito louco e nada mais me espanta, se eu te contar esta história o cabelo levanta.1
Os concursos literários normalmente são irrelevantes (embora não tanto quanto os festivais de música popular), e os poucos que não o são tendem a ter regulamentos tão surpreendentes que a gente tem que se perguntar o que vai na cabeça de seus organizadores. Esta semana tomei conhecimento de um caso desses de levantar o cabelo, graças ao Antônio Luiz Monteiro Coelho da Costa, colunista de nome principesco que escreve na Carta Capital. O concurso em questão, promovido pela FNAC e pela Editora Novo Século, contém vários dos vícios regulamentares dos concursos literários e uma adição inacreditável.
Primeiro falemos daquilo que o regulamento tem de bom: não se trata de um sorteio, nem envolve pagamento por serviços ou venda de produtos:
[…] não estando subordinada a qualquer modalidade de álea, sorte, risco ou pagamento pelos concorrentes, nem vinculação destes ou de seu contemplado a aquisição ou uso de qualquer bem, direito ou serviço.
Este é um aspecto honesto deste concurso, pois muitos que vejo por aí são somente esquemas disfarçados para induzir o autor incauto a custear a publicação de um texto seu em uma “antologia”, sem qualquer consideração de mérito literário e com um trabalho editorial sofrível.
Agora comecemos a tratar dos vícios regulamentares, aproveitando este caso prático. Em outras oportunidades analisarei outros regulamentos para fins de comparação. Comecemos pelo prêmio:
A premiação para os 10 melhores contos será a edição de um livro exclusivo intitulado Fnac Novos Talentos da Literatura — Categoria Contos, além de sua divulgação nas mídias sócias, através dos canais das organizadoras. Os selecionados também serão divulgados no blog fnac (blog.fnac.com.br). Além do livro editado e publicado, os vencedores ganharão 10 (dez) livros Fnac Novos Talentos da Literatura — Categoria Contos da Editora Novo Século.
Os autores não receberão qualquer prêmio em dinheiro e nem qualquer promessa adicional. Sequer serão contemplados com livros grátis do site da FNAC. A premiação é apenas a publicação, com direito a dez exemplares. Nem considero a divulgação nas mídias sócias como um prêmio, visto isto não custará absolutamente nada aos organizadores.
Mas o que torna esta proposta indecente é que nem mesmo este prêmio é garantido ao participante. O jovem escritor que entre nessa arapuca pensando em ganhar dez belos exemplares de uma antologia contendo sua obra para poder ter o direito de se jactar de ter sido publicado pela Editora Novo Século poderá se decepcionar bastante:
Se o prêmio não estiver disponível por qualquer razão relevante, poderá ser substituído por outro equivalente ou similar a exclusivo critério das organizadoras.
Traduzindo: se a Editora não gostar da qualidade dos dez contos selecionados, poderá desistir de fazer a edição e entregar dez livros quaisquer de seu catálogo (certamente extraídos do encalhe). Em outras palavras: o único prêmio que realmente importa nesse concurso, a “griffe” Novo Século, pode ser retirado dos vencedores ao bel prazer dos organizadores, e os participantes nada podem fazer pois:
A simples participação neste concurso exclusivamente cultural implicará no total e integral reconhecimento das condições e aceitação irrestrita deste Regulamento, bem como presumir-se-á condição de que o contemplado não possui qualquer impedimento fiscal, legal ou outro que o impeça de receber e/ou usufruir os prêmios concedidos.
Se você era uma das pessoas que me acusava de “convencido” por não participar de concursos literários, a não ser para matar o tédio, quando algum regulamento me parecia promissor,2 pergunto-lhe o que levaria alguém a participar de um concurso assim, sem nenhuma garantia de sequer receber reconhecimento por ter participado.
Mesmo o prêmio sendo entregue (o que depende unicamente da palavra e do caráter dos organizadores), continua sendo um prêmio amador. Este é mais um concurso literário que não oferece oportunidade para quem deseja viver de literatura. Pode procurar com uma lanterna que você não encontrará nem revistas e nem blogues e nem concursos de editoras que se proponham a pagar aos participantes. E querem que o autor nacional compita com o estrangeiro.
Nos Estados Unidos e na Europa, há muito tempo, existe um mercado para histórias (que já foi maior, mas ainda existe). Autores consagrados se criaram vendendo histórias para revistas. É difícil imaginar a literatura americana do século XX, por exemplo, sem considerar os autores que começaram assim (não citarei nomes).
Sei que a falta de oportunidades de renda para os autores amadores não é culpa do concurso FNAC, mas não posso deixar de ressaltar que ele é mais um que não só oferece nuvens para os participantes. E querem que o autor nacional compita com o estrangeiro.
Mas se você me leu até aqui achando que eu me dei ao trabalho de escrever este artigo só para lamentar que os concursos literários no Brasil não tenham prêmios em dinheiro, saiba que a falta de dinheiro é o menos dos vícios regulamentares deste concurso (na verdade é um vício pequeno, que só se torna grande porque todos quase o têm).
O escândalo do concurso FNAC/Novo Século é a extensão das exigências feitas aos participantes:
Os participantes, ao participarem do Concurso, manifestam sua total concordância com as regras deste e também concordam em ceder os materiais enviados gratuita e irrevogavelmente às empresa organizadoras, com direito de manipulação, concordando em assinar os recibos e cessões para tal efeito, sempre que necessário, inclusive aqueles relativos a direitos patrimoniais de autor, incluindo os direitos morais e/ou de propriedade intelectual, em seu todo ou em parte, sob pena de desclassificação, respeitado o disposto na cláusula 20 acima. As organizadoras terão o direito ilimitado de utilizar toda a informação sem a obrigatoriedade de notificar ou entregar qualquer contraprestação ao participante que as enviou, respeitado o disposto no item 20 acima.
Parte do que está escrito neste parágrafo é aceitável. Os organizadores não podem se responsabilizar, por exemplo, pela devolução dos originais, ou por seu sigilo. A organização se exime desta responsabilidade porque é impossível configurar uma “devolução” de um arquivo digital, de que podem ser feitas cópias ilimitadas. Além disso, é tradição em concursos literários que os originais remetidos fisicamente sejam destruídos pela organização, não tendo o participante nenhum direito de esperar que esta custeie a devolução ou se responsabilize pelo seu arquivamento.
Mas aí começam os “pulos do gato”. O primeiro é este aqui:
[…] concordando em assinar os recibos e cessões para tal efeito, sempre que necessário, inclusive aqueles relativos a direitos patrimoniais de autor.
Lá mais acima no texto do regulamento havia sido dito que:
Ao mesmo tempo, cedem às organizadoras, sem quaisquer ônus, custo ou remuneração todos os direitos autorais pertinentes à obra participante deste Concurso (a “Obra”), para fins de publicação de sua primeira edição, limitada a 1.000 (hum mil) exemplares e sua respectiva divulgação, por qualquer meio.
As pessoas tendem a ler textos longos mantendo a atenção fixa em números. Por isto o autor incauto passará por este parágrafo achando que sua renúncia de direitos está limitada à edição de 1.000 exemplares.3 Ocorre que a cessão se estende à divulgação, “por qualquer meio”. A editora pode utilizar ilimitadamente os textos selecionados, desde que não seja em uma edição impressa.
O segundo “pulo do gato” é ainda mais incrível: a editora se propõe a retirar do autor até mesmo o controle de seus direitos morais sobre a obra: incluindo os direitos morais e/ou de propriedade intelectual.
Para que o jovem autor que me lê compreenda a enormidade do que está sendo pedido, vejamos o que a Wikipédia nos diz sobre os “direitos morais” do autor:4
“Direitos morais” são os direitos dos criadores de obras protegidas por direitos autorais, reconhecidos nas jurisdições que usam direito escrito e parcialmente nas jurisdições de direito consuetudinário. Incluem o direito de atribuição, o direito de publicar anonimamente ou sob pseudônimo e o direito à integridade da obra. A preservação da integridade da obra impede a alteração, distorção ou mutilação desta. Qualquer coisa que desvie a relação do artista com sua obra, mesmo depois que esta saiu de seu controle ou propriedade, pode trazer à baila os referidos direitos. Direitos morais são distintos de todos os direitos relacionados ao direito de cópia (copyright). Mesmo que um artista ceda seus direitos de cópia a um terceiro, ele ainda mantém os direitos morais de seu trabalho.
Estes direitos foram estabelecidos inicialmente pela Convenção de Berna, entre França/Suíça/Alemanha, em 1886, e posteriormente estendidos a todos os países que aderiram às sucessivas versões desta Convenção. O Brasil é um destes países, desde 1922. Atualmente 165 países são signatários.
Em suma, os direitos morais são aqueles que ninguém teria o direito de exigir que um criador renunciasse. Você pode ceder os direitos de uma obra em troca de dinheiro, mas é inconcebível ceder a autoria em si. Imagine se alguém compra um quadro e resolve dar mais umas pinceladas nele, ou adquire os direitos de um livro e resolve publicar uma versão intensamente revisada, assinada por outro autor? É disso que estamos falando.
“Direito de atribuição” é o de ser reconhecido como autor de uma obra. Trata-se de um direito tão sério que se um ghost-writer alegar (e provar) que é o autor real de um livro publicado sob o nome de outra pessoa ele não será processado, mesmo tendo sido pago para escrever no anonimato. O que impede os ghost-writers de fazerem isto é uma combinação de fatores que envolvem a responsabilidade profissional e o desdém que este tipo de profissional costuma ter pelas obras que faz sob encomenda.
“Direito ao anonimato” é o de não expor sua vida pessoa com a publicação de uma obra. Um pacato professor que deseje, por exemplo, escrever contos eróticos poderá fazê-lo sob pseudônimo, sem que isto afete sua reputação profissional.
“Direito à preservação da integridade” é o que garante que a obra acabada seja a expressão da vontade e da capacidade de quem a escreveu. Ele protege o autor de ver a sua obra resumida de forma agressiva (“Reader’s Digest”), descaracterizada por uma revisão pesada ou empastelada por acréscimos de qualidade discrepante. Um trabalho como “Orgulho e Preconceito e Zumbis”, por exemplo, não pode ser feito com a obra de um autor vivo sem o seu consentimento, mesmo que o autor tenha cedido os direitos de sua obra a uma editora que se interesse em autorizar tal coisa.
Vale lembrar que os Estados Unidos somente aderiram à Convenção de Berna em 1989 (e mesmo assim de forma parcial). Várias agressões ao direito autoral eram permitidas naquele país, como por exemplo a expiração do direito em vida se o autor não republicasse sua obra periodicamente para “renovar o copyright”. Assim, autores pobres perdiam o controle de sua obra e acabavam não ganhando um tostão quando ela era eventualmente recuperada. Se a sua editora, por exemplo, esquecesse de acrescentar a notícia de “Copyright ©” ao seu livro e ele fosse vendido efetivamente e sem contestação de sua parte, ficava configurada à cessão da obra ao domínio público. Você já deve ter lido contos sobre autores temerosos de que roubassem sua obra (o mais famoso destes é “Janela Secreta, Secreto Jardim”, de Stephen King) e ficado imaginando como isso seria possível. Pois bem…
Quando analismos os tipos de direitos que ficam assegurados sob o título de “direitos morais” e analisamos os tipos de violações que aconteceram nos Estados Unidos (e chegaram a impactar a cultura de massas), vemos que a exigência de renúncia a tais direitos não pode de forma alguma ser considerada sem importância.
Não existem razões honestas para que uma editora pretenda se assenhorar dos direitos morais de uma obra. Obviamente a editora só pode estar pretendendo fazer alguma(s) das coisas que os direitos morais dão ao autor o poder de proibir. Ou seja: ou a editora pretende se assenhorar da obra em si (ou de seu argumento) sem dar crédito ao autor, ou pretende modificar a obra ao seu bel prazer, ou está em falta de boas ideias e retende, após a publicação, utilizar a obra como inspiração descarada para outras obras sem pagar nada ao autor.
Não quero, com isso, dizer que a desonestidade seja a única razão possível para tal exigência. Incompetência também explicaria. Podem ter pego um regulamento de algum concurso feito nos Estados Unidos e na Grã Bretanha (onde o direito moral pode ser renunciado contratualmente) e simplesmente o reutilizaram sem dar crédito (aha!). Ou poderia haver uma terceira explicação, que eu não posso imaginar, mas os organizadores do concurso poderão fornecer se forem questionados por muita gente.
O que quero dizer, isso sim, é que a exigência pegou fenomenalmente mal, passou a impressão de que o concurso é uma armadilha para jovens talentosos e inocentes. O dano que isso causa à literatura é extenso, porque são muitos os jovens que têm receio de partilhar seus trabalhos exatamente pelo medo de que sejam apropriados indevidamente. Então esse concurso simplesmente aparece com essa proposta que faz parecer que os jovens podem ter razão nesse medo.
Então, se você é dos que não lê regulamentos antes de dizer que os aceita, saiba que a participação neste concurso teoricamente poderia lhe retirar todos os direitos sobre sua obra. Digo teoricamente porque este disposição do regulamento é ilegal, configurando-se como cláusula leonina e, adicionalmente, também como uma violação da Convenção de Berna, da qual o Brasil é signatário. Mas jovens autores idealistas não têm dinheiro para pagar advogados em um processo que não envolve valores, não é mesmo? Aliás, por que será mesmo que concursos literários não dão prêmio em dinheiro?
Pensar enlouquece. Pense nisso.
Versos de “Taca a Mãe para Ver se Quica” (Dr. Silvana & Cia.)↩︎
O que só ocorreu três vezes em toda a minha vida.↩︎
Dos quais 100 serão concedidos aos 10 premiados e os outros 900, supostamente, postos à venda na livraria FNAC.↩︎
Traduzido da Wikipédia anglófona, pois eu já desisti da nossa, dominada por trolls e sabichões ignorantes.↩︎