Recebi um comentário do Antônio Luiz Monteiro C. da Costa sobre o conto “Residente em Vênus”, no qual ele dizia que meu conto não poderia nem de longe ser considerado ficção científica “hard” por várias razões. Algumas das razões que ele apontou realmente são inquestionáveis, como o fato de que tal tipo de ficção se concentra mais em tecnologias do que em interações entre indivíduos ou sociedades. Mas existe uma razão que ele apontou que me pareceu defensável: que a minha descrição de Vênus não é realista e que seria impossível colonizar o planeta. Acredito que o Antônio pensou assim porque eu não expliquei o cenário suficientemente (afinal, trata-se de um conto apenas). Quando eu expandir a história até uma noveleta pelo menos, ficará mais fácil admitir a plausibilidade, especialmente considerando as ideias loucas que alguns cientistas têm para colonizar o planeta. Uma das características da ficção científica é nunca admitir algo como impossível.
O cenário em que se passa a história é uma cidade “flutuante” — um conceito criado por Geoffrey Landis. A ideia é simples na concepção, problema é como executar.
Landis afirma que, com o que hoje sabemos sobre Vênus, é possível afirmar que encontraríamos, entre 50 km e 65 km acima da altitude média da superfície, pressão de aproximadamente uma atmosfera e temperaturas médias acima de 0 °C e abaixo de 50 °C. A esta altitude se estaria, também, acima da camada de névoa ácida e altamente refletiva que envolve o planeta (composta principalmente por ácido sulfúrico).
Nessas condições, e considerando que a atmosfera venusiana é composta por 92% de dióxido de carbono, uma molécula mais pesada do que o ar, a existência de uma cidade permanentemente flutuante seria uma possibilidade interessante: o próprio ar (oxigênio + nitrogênio) teria uma capacidade de flutuação semelhante à do gás hélio. Alem disso, 7% da atmosfera venusiana é nitrogênio, o que significa que somente o oxigênio precisaria ser produzido.
Os problemas começam pelo material utilizado na construção, que deveria ser resistente ao ácido sulfúrico, uma das substâncias mais corrosivas que se conhece, e também combinar resistência e leveza. Se tal elemento não tiver características adequadas de resistência, ele poderia ser usado apenas para revestimento da estrutura, que seria feita de algo mais leve, como algum tipo de cerâmica de consistência esponjosa.
Tal hábitat seria certamente muito problemático, e resultaria numa sociedade tão infernal quanto a que eu descrevo. A estrutura deveria ser hermeticamente fechada, não tanto para manter o ar dentro, visto que a pressão interna poderia ser mantida no mesmo nível da externa, mas para evitar a entrada do ácido sulfúrico. Mesmo que os habitantes acabassem gostando do cheiro permanente de ovo podre, esta invasão seria nociva a praticamente tudo dentro da cidade, inclusive a saúde de seus habitantes. Com 99% da massa da atmosfera abaixo da cidade, o céu seria claro (amarelado) e dominado por intensa luz solar. As temperaturas poderiam ser relativamente amenas, mas o sol poderia ser, sim, “causticante”.
Viver em tal cidade envolveria contínua precaução. Serviços de manutenção preventiva deveriam ser feitos quase que diariamente, para detectar antecipadamente qualquer indício de possível futura falha estrutural (queimaduras de ácido onde o revestimento trincou ou foi danificado por algum tipo de colisão, rasgos no balão de ar, fadiga de material em alguma peça importante de sustentação etc.). A estrutura deveria ser construída de forma a permitir a substituição das peças de reposição. Fazer estes serviços seria, também, algo muito difícil. Os operários precisariam de roupa protetora (não necessariamente pressurizada, mas uma espécie de roupa de mergulho), óculos especiais e balão de oxigênio. Qualquer centímetro de pele exposto ao ar seria queimado pelo ácido sulfúrico em suspensão. Sair e entrar da colônia envolveria escotilhas.
Todo habitante viveria em contínuo terror da “queda” na atmosfera venusiana. Não só da queda coletiva — caso os balões de flutuação explodam, furem ou se desprendam — mas da queda individual. Atirar alguém de um parapeito seria o crime perfeito: o cadáver seria destruído quase instantaneamente, talvez antes de chegar ao solo. Não havendo câmera de segurança para detectar o feito, o crime não seria nunca descoberto. Certamente as leis da colônia incluirão penas inimaginavelmente cruéis para quem cometa um ato destes. Atirar alguém na atmosfera seria também uma forma de punição capital muito econômica: não gastaria energia e nem balas, bastando abrir um alçapão. Não acredito, porém, que a cidade fizesse isso com seus mortos de forma frequente (apenas como algum tipo espetaculoso de punição exemplar). Tendo de sobreviver com recursos limitados, a cidade certamente reciclaria os cadáveres.
A existência em um ambiente onde um rígido controle seria necessário à própria sobrevivência da comunidade seria determinante para dar à cidade um sistema de governo despótico ou totalitário não muito diferente das sociedades orientais antigas, baseadas em grandes obras públicas hidráulicas (Egito, Mesopotâmia, Índia, China etc.). A manutenção preventiva da estrutura forçaria quase todos os habitantes a um tipo de servidão voluntária por longos períodos. No cenário por mim imaginado, a falta de mão de obra levaria os governos a atrair jovens terráqueos com a promessa de estudos. Em troca de diplomas universitários gratuitos, tais estudantes teriam de se submeter as agruras da vida venusiana, incluindo salários baixos e longos períodos de servidão. Mas só seria possível manter um fluxo contínuo de estudantes se retornassem todos, ou boa parte deles. Uma taxa relativamente alta de mortalidade não demoveria interessados, ou ninguém se alistaria no exército americano para estudar.
O que faltou ao meu texto foi desenvolver melhor o cenário, explicando as circunstâncias da colonização venusiana. Por se tratar de um conto, julguei que seria inadequado e desinteressante dar tanta informação, mas se for expandi-lo eu fatalmente terei que gastar páginas e páginas explicando estas coisas que eu mal delineei aqui.