Letras Elétricas
Textões e ficções. Tretas e caretas. Histórias e tramóias.
by J. G. Gouvêa

O Terceiro Episódio de Vathek, a Fanfic de Ashton-Smith

Publicado em: 17/01/2014

Foi através da mera citação deste título intrigante que eu fiquei sabendo da existência de Clark ashton smith e de sua relação com H. P. Lovecraft. Na época eu estava lendo vorazmente todos os textos do cânone lovecraftiano e a sua relação com ashton smith me chamou a atenção. Infelizmente, porém, por ser um texto longo e de linguagem rebuscada, demorei muito a empreender sua leitura. Quando terminei, passei dias estupefacto.

Capa de uma antiga edição inglesa da obra de W. Beckford

Uma sexualidade mórbida que transpira das páginas de ashton smith (diferente do ascetismo lovecraftiano). Este texto é um dos que mais contribuem para esta impressão: uma história de terror sufocante envolvendo personagens absolutamente adoráveis (não há de fato nenhum “mocinho” e nenhum “vilão” nesta história) que cometem atos horríveis ou se metem em situações “inomináveis”. Incesto, violência, religião (islâmica, no caso), feitiçaria; elementos que completam um universo “oriental” construído a base de leituras de enciclopédia e das Mil e Uma Noites.

Mas mesmo depois de lida a história, ainda tardou para que as minhas dúvidas fossem esclarecidas por completo: quem é Vathek? onde estão o primeiro e o segundo episódios? existe um quarto episódio? A única coisa que consegui entender foi a razão pela qual Lovecraft elogiou tanto a obra original de Beckford.

Vathek, o Romance

Vathek é um romance de autoria do inglês William Beckford, publicado em 1786 (ou 1787), escrito originalmente em francês (mas com uma tradução em inglês publicada antes do original). O nome é uma germanização (bastante bastarda) do árabe Fatiq (atestado desde, pelo menos, o século XI) — e o leitor deverá se acostumar com esta obscenidade, visto que não havia, na época, uma notação fonética convencional para a transcrição de nomes árabes.

O romance é uma obra inclassificável de fantasia orientalizante, com forte inspiração nas Mil e Uma Noites e abundante em referências literárias, sátira de costumes e um humor às vezes até grosseiro. O apelo exótico garantiu à esta obra uma longa influência sobre a ficção fantástica ocidental.

Os Episódios de Vathek

A obra original e famosa de Beckford se chamava pura e simplesmente “Vathek”, sem subtítulos. Em 1909, cerca de 65 anos após a morte de Beckford, foram descobertos os manuscritos de outras histórias curtas, os “episódios de Vathek”, que contavam histórias ligeiramente relacionadas, segundo o ponto de vista dos infelizes coadjuvantes da história original (esta narrada em terceira pessoa por um narrador-onisciente-interveniente). Os Episódios são:

  1. A História do Príncipe Alasi e da Princesa Firouzkah
  2. A História do Príncipe Barkiarokh
  3. A História da Princesa Zulkaïs e do Príncipe Kalilah

Destes, os dois primeiros se encontram completos e revisados, mas o terceiro somente existe como um mero rascunho, com várias lacunas e interrompido em meio à ação.

A Intervenção de ashton smith

Como todo leitor compulsivo que se torna fã de uma obra, ashton smith se sentiu extremamente frustrado ao perceber que o terceiro episódio de Vathek nunca fora terminado por seu autor. Diferente da maioria dos leitores, porém, e ajudado pelo fato de o original já estar em domínio público, ashton smith pôde levar a efeito o sonho de muito jovem autor: terminar a obra inacabada de seu autor favorito.

ashton smith se prestou excepcionalmente para isto. Fortemente influenciado pelo próprio Beckford, mas beneficiado por um amplo conhecimento da literatura fantástica e exótica, Smith desenvolvera um estilo irônico e sinestésico que, se não é semelhante ao de Beckford, casa-se bem com o seu. Além disso, a imaginação exagerada e sensível de ashton smith, abastecida pelas informações extraídas da leitura da obra restante de Beckford, permitiu-lhe desenvolver a história de uma forma muito próxima ao que o próprio autor teria feito, embora ele provavelmente o fizesse com um estilo diferente.

Autoria

Esta obra tem, de fato, uma autoria compartilhada. Os primeiros parágrafos são integralmente de Beckford, mas a mão de ashton smith vai se manifestando gradualmente em acréscimos e deleções cada vez menos sutis até que, lá pelos dois terços, Beckford já não existe e a história flui completamente pelas mãos de Clark ashton smith.

No geral, são de Beckford cerca de dois terços das 19001 palavras utilizadas (em inglês) para narrar a história e a contribuição de ashton smith, além de pequenas correções (de um original que era um rascunho), inclui apenas o desfecho da história, narrado de acordo com as informações fornecidas pelo romance Vathek e pelos dois primeiros episódios. Não é justo, portanto, considerar esta obra como outra coisa que não “fanfic”, pois é exatamente o tipo de coisa que eu faria se tentasse terminar um dos contos inacabados de Kafka ou se quisesse expandir em forma de novela o argumento de um conto do Eça de Queirós. A fidelidade ao estilo e ao conteúdo do original evidenciam a homenagem que Smith buscou render a Beckford e, por tal razão, acho justo considerar-se uma coautoria:

Se você é um completista absoluto e não quer ler o terceiro episódio antes de conhecer a sequência dos fatos e mitos:

  1. Vathek, de William Beckford
    Ebooks do Projeto Gutenberg. HTML.
  2. Os Episódios de Vathek, de William Beckford.
    Ebook do Archive.org.
  3. O Terceiro Episódio de Vathek
    a História da Princesa Zulkaïss e do Príncipe Kalilah, de William Thomas Beckford e Clark ashton smith. Versão em HTML do Projeto Eldritch Dark.
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