Em um mundo literário no qual o meu modo de pensar é visto como um desvio, uma falta de educação, é reconfortante, de quando em vez, ler alguém que também não se conforma com as nuvens róseas que pretendem predominar na literatura. Gustavo Czekster lavou a minha alma esta semana ao publicar no LiteraTortura [um artigo devastadoramente bom]) que expressa, melhor do que eu próprio o faria, aquilo que penso sobre literatura. E havia tanto tempo que não lia nada assim, que não me deparava com um espelho de minhas próprias ideias, que eu já quase não me lembrava mais como penso.
E o que penso é: estamos ouvindo demais aqueles que pensam uma literatura conformista, e atacando demais aqueles que propoem uma literatura com ideias (a tal literatura “feia” a que Gustavo se referiu).
Sinto saudade quase física de ler uma obra que não esteja submetida às normas das políticas editoriais e do lucro fácil. Vontade de ler literatura, e não livros.
Eu já começo a acreditar que o autor não vale a leitura quando ele diz que escreveu um “livro”. Livro é o objeto físico que contem a obra, não é a obra em si. Sonhar em escrever livros é uma compreensão fetichista, infantilizada, do fazer literário. Durante milênios os livros não existiram, existiram papiros, pergaminhos, manuscritos iluminados, tabuinhas de argila, mas a obra literária já existia. Futuramente o “livro” deixará de existir, ainda que eu lamente isso, mas a obra persistirá. Autores que tem alguma remota ideia do que estão falando pensam em escrever contos, romances, novelas, fábulas, poemas, não “livros”.
E se existe algo trágico que aprendi é que, quanto mais bonito o livro, mais frágil e inconstante é a sua trama.
Quando o livro se torna um fetiche — e é disso que estamos falando — é natural que se concentre muito esforço em torná-lo um produto bonito. Mais de uma vez recebi ofertas de editores para publicar obras minhas, mediante módicos pagamentos, utilizando papel “de primeiríssima qualidade”, capa dura ou com acabamento fosco, projeto gráfico feito por designers premiados etc.
Certa vez, em uma comunidade de literatura no Orkut, eu afirmei que gostaria de ver milhões de exemplares de minhas obras, mesmo que impressas em papel higiênico sujo e com capa de papel de pão com manchas de manteiga. Eu não penso em meu livro como um objeto de luxo para eu enfeitar minha estante e para exibir às visitas “olha que livro bonito eu fiz” — mesmo porque o “bonito” de tal livro não foi feito por mim, mas pela editora.
A resposta que me deram foi que tal livro, publicando segundo meu desígnio, seria um “desrespeito ao leitor”. Com a devida vênia aos que gostam de ter exemplares bonitos dos seus livros favoritos, eu digo que não pode haver maior desrespeito ao “leitor” do que o livro ser ruim. Ele ser feio pode até desrespeitar a estética da casa, o padrão de decoração da estante, a necessidade de impressionar visitas que não vão ler o que está escrito. Mas não desrespeita o leitor.
Alguns dos meus autores favoritos começaram escrevendo em revistas que eram impressas em papel de baixa qualidade. Lovecraft, Asimov, Bradbury, Heinlein, ashton smith. Outros começaram publicando em jornais. Dostoiévski, Machado de Assis, Manuel Antônio de Almeida. Não acho que qualquer desses autores desrespeite ou tenha desrespeitado o seu público. E se você se sente ofendido com uma edição barata dos Irmãos Karamázovi, sinto muito dizer que você não entende o que é literatura.
Quem sabe técnica literária ou teoria consegue ver com clareza as escolhas narrativas do autor, o motivo da personagem principal ser uma criança ou um rapaz da classe média, a razão do tempo da narrativa ser no presente ou no futuro, a escolha do cenário urbano ou rural.
Isso, claro, na literatura best-seller, que é produzida segundo parâmetros devidamente estudados. Em algum lugar alguém acha que decodificou os fatores de sucesso dos grandes clássicos, e todos os jovens autores são aconselhados a seguir estas instruções de sucesso. É sério, mas um editor me aconselhou a utilizar a “Jornada do Herói”, de Joseph Campbell, como padrão para definir os meus protagonistas. A obra deste autor é vista, por certos editores, como uma bíblia para quem pretende escrever épicos. Não importa que os mitologistas torçam o nariz para a interpretação de Campbell, considerando-a simplificada, falocêntrica e limitadora de interpretações alternativas.
Ler também é ser desafiado pelo autor e pela visão do mundo que ele descreve, e os livros atuais evitam confrontar o leitor, como se ele fosse feito de cristal.
Essa é a diferença profunda entre os livros publicados como negócio e os livros publicados como arte. Os livros publicados como negócio dão lucro, mesmo quando não são um sucesso internacional. Este sucesso é para poucos, e necessariamente para gringos. Mas os jovens nacionais podem fazer fanfic ou imitações palatáveis destas fórmulas que caíram no gosto público e assim vender alguns milhares de exemplares, que darão lucro à editora.
A mediocridade que vende é a maldição de nosso mercado editorial colonizado, que vive permanentemente de costas para as novidades nacionais, para Portugal, para a África lusófona, para outros países onde não se fale inglês.
Esta mediocridade se cria com as “antologias”, que dão muito lucro às editoras e vampirizam os autores ingênuos. Publicar numa antologia é um trote que alguma editora impõe ao autor que deseja tentar uma publicação solo. Isso não é invenção. Isso me foi dito por um editor: “Nós nos comprometemos mais com os autores que primeiro se comprometeram conosco. Participe de nossas antologias primeiro, para abrir seu espaço na Casa.”
Para publicar na antologia o autor precisa ser aprovado, o que significa que o seu texto tem que se conformar com os objetivos comerciais da editora, traduzidos em um arco temático ou até mesmo em regras de escrita mais determinadas. Normalmente o autor pagará para publicar-se em tais arapucas literárias, com a desculpa de que está “adquirindo exemplares” (o número varia de acordo com a quantidade de autores) para fazer seu lançamento, ou então “indenizando” despesas que a editora teve para a publicação. O autor que fizer tal evento de lançamento estará, de fato, lançando o produto da editora, cujo nome fica na capa, e não a própria obra. Fazer tal lançamento é passar um atestado de burrice tão extrema que até comove. É gastar dinheiro para anunciar o trabalho de quem se cria explorando o seu trabalho.
E, não custa repetir, a publicação em tais antologias condiciona o autor a seguir as normas.
A arte necessita do feio, do desagradável, do grotesco, do repugnante, do malfeito. A beleza eleva o espírito, mas a feiura nos fala a verdade.
E exatamente por isso a literatura sempre recebe a acusação de ser uma arte decadente entre decadentes artes. E por causa disso a arte sempre é vista como algo perigoso pelos controladores do status quo, a ponto de todos os regimes opressores incluírem alguma forma de opressão da arte. Sem querer recuar no tempo, pois não temos elementos suficientemente detalhados para explicar os processos de séculos passados, ou pelo menos eu não tenho, é sintomático que o totalitarismo soviético tenha produzido o realismo socialista, que o macarthismo tenha criado o “Comics Code Authority” e o nazismo tenha proposto uma “arte alemã”. Sempre que uma botina se assenta no trono, os artistas pagam o pato.
[…] alguns autores buscam o feio da forma mais primária possível, qual seja, tratar de temas revoltantes e de fácil apelo popular, encher as obras de palavrões e descrições chulas de sexo ou distorcer a linguagem com a utilização de termos usados no dia a dia.
Existe em alguns autores uma obsessão pela violência que é quase pornográfica. Mas esta violência agressiva e revoltante não é “feia” no sentido empregado por Gustavo, como ele esclarece (“A simples ideia de usar imagens ou itens feios para fazer uma “arte feia” envolve uma estilização do próprio conceito de beleza.”). Esta violência excessiva é uma estética, é calculada, é vista como um padrão de beleza em negativo. Existe tanto formalismo nessa profusão de dentes quebrados, tiros e torturas quanto no delicado acariciar de uma flor pelos dedos macios de uma elfa no cio. Tudo é estética. E portanto é tudo vazio: […] ao tentar transformar o feio em arte, ele se torna esteticamente apreciável e, por conseguinte, falso como uma nota de três reais.
Os escritores (e o mercado) superestimam o leitor, dando-lhe mais importância e carinho do que ele merece. O leitor não sabe o que quer; prova disto é que boa parte das maiores obras de arte só foram reconhecidas depois da morte do seu criador.
Irretocável em relação à arte, mas não em relação ao best-seller. É evidente que, para muitos autores e quase todos os editores, esse negócio de reconhecimento é só uma palavra bonita. O importante é ganhar dinheiro. A editora quer fechar o balanço no azul e continuar existindo, não quer falir cedo mas passar a história como a publicadora original de uma obra genial. Não censuro quem pensa assim, focado no feijão a ponto de esquecer o sonho, mas é uma tragédia que em um mundo tão grande não exista espaço para quem pensa o diferente, para quem trabalha o “feio.”