Letras Elétricas
Textões e ficções. Tretas e caretas. Histórias e tramóias.
by J. G. Gouvêa

O Crítico e os Crânios de Cristal

Publicado em: 01/06/2014

Uma das principais características da mediocridade é o seu amor pela unanimidade. O medíocre, não sendo capaz de causar emoções duradouras e conquistar afetos sinceros, tem verdadeira paúra de ter apontados os seus defeitos. Ele ama e deseja um ambiente confortável de camaradagem e reciprocidade, “eu coço as suas costas e você coça as minhas”. Nesse ambiente se busca o aplauso, a maioria é o poder legitimador e uma simples curtida dada por um “mestre” é exibida como um troféu.

Uma das funções mais importantes da crítica literária é romper este “saudável” conluio dos medíocres. Um crítico que repita o senso comum é um não-crítico, seu trabalho é essencialmente inútil, e até nocivo. Uma crítica exagerada e injusta tem mais valor culturalmente do que uma resenha bem comportada que falha em detectar as qualidades e os defeitos. Porque o despropósito causa indignação, produz ondas de reação, moções de aplauso, sacode as cabeças que estavam conformadas, produz luz. A função do crítico é explodir uma bombinha durante o sono das musas.

Mas o medíocre não deseja contestações. Diante de opiniões contrárias, ele deseja a censura. Uma pluralidade de opiniões é sempre uma ameaça à mediocridade, porque em um embate verdadeiro entre teses e realizações, o medíocre sempre corre o risco de ser exposto. E ele teme esta exposição.

O mundo literário não é uma democracia. A maioria não tem nada a dizer sobre o valor intrínseco das obras. Todos sabemos que as editoras promovem os livros que lhes interessa promover. Ademais, em um país que tem mais de 1/3 de analfabetos entre os próprios universitários, o gosto popular deve ser, necessariamente, nivelado ao rés do chão.

Tudo então se mostra um engodo: um “mercado literário” manipulado e baseado em ilusões e simplificações, onde não há espaço para autores que não morem no lugar certo ou não abordem os temas certos. Editoras que focam na facilidade de vender traduções de obras que já tem fama por sua relação com o cinema ou prêmios literários internacionais ou resvalam na rasteirice da autoajuda e da literatura místico-esotérica, que ordenha eficientemente a ignorância e as superstições de um povo que ainda hostiliza atores que interpretam vilões em novelas.

O crítico teria a função de sacudir esta mesmice, enfiar os dedos nas feridas dos ídolos e levantar da sarjeta algum anônimo valioso. Mas eles não têm permissão para isso. Criticar um nome de sucesso é considerado “despeito” ou “inveja”. Apontar talentos desconhecidos é associado a uma tentativa de favorecer amigos, formar panelinhas ou algo assim. Qualquer tentativa de influenciar os novos autores é rejeitada ou tachada de “arrogância”. Apontar erros alheios é “arrogância”, rejeitar toda crítica e prometer “insistir no que acredita” é prova de “humildade”. Quem tente exercitar alguma crítica começa a subir o cadafalso.

Existe uma percepção equivocada de que as pessoas deveriam ser recompensadas pelo seu “esforço” em fazer literatura. É uma atitude típica de gente que atravessou inteiro esse novo sistema educacional baseado em “progressão continuada” e que, para dizer de forma educada, odeia o mérito, abomina o talento e combate vigorosamente a excepcionalidade. Um sitema que tem uma forma e um martelo e uma missão de adaptar todos a um esquema inteiramente baseado na mediocridade e no nivelamento por baixo. Este sistema produz o jovem que acredita que ser criticado por suas falhas é uma ofensa, que o seu “esforço” tem valor igual ao da realização dos outros e que, principalmente, não diferencia entre si e sua obra.

Este último problema é o maior de todos. Existe certo misticismo em relação à figura do escritor. Especialmente entre esses jovens mal resolvidos. Eles não pensam tanto em termos da obra, mas em termos do autor da obra. São tietes do sucesso alcançado por seus ídolos, mas de fato pouco comentam o conteúdo das obras. No passado a discussão era se Capitu traiu Bentinho, hoje se discute como George R. Martin chegou ao sucesso que chegou.

Esta situação favorece a dita confusão entre a obra e seu autor, o que explica a reação extrema dos jovens autores quando sua obra é criticada. Não entra em suas cabeças que possa haver uma solução de continuidade entre o autor, o indivíduo, que pode ser um cara legal ou um filho da puta, e sua obra, que pode ser boa ou ruim. Quando você critica a linguagem pobre de um autor, ele se sente acusado de pobreza mental. Se diz que ele apresenta pouca maturidade estilística, ele interpreta isto como uma acusação de imaturidade.

O passo seguinte, corolário de toda esta situação desfavorável à crítica e à discussão literária, é o autor, munido desta confusão entre suas personalidade e seu trabalho e influenciado pela ideia de que seu esforço não pode ser menosprezado, passa a usar a própria biografia como uma base para exigir legitimidade.

História do escritor Parece óbvio, diante deste raciocínio, que ter superado maior quantidade de obstáculos dá mais relevância ao trabalho de um autor. Desloca-se, assim, o âmbito da avaliação literária para a figura do autor, e não a obra. Não é preciso ter muita noção de filosofia para perceber que este argumento é irracional, trata-se da óbvia falácia do apelo à misericórdia (argumentum ad misericordiam): “veja como eu sofri para escrever como escrevo, você precisa me amar assim”. Ocorre que a literatura não é um videojogo, e partir de um contexto cultural e educacional mais favorável não é um “cheat” para passar de fase. Ter enfrentado dificuldades para se tornar escritor aumenta o mérito pessoal do autor, mas não o mérito de sua obra. Machado de Assis comeu o pão que o diabo amassou, mas a sua obra é bem avaliada por suas qualidades, não porque ele era um negrinho pobre que venceu na vida no Brasil escravista do século XIX. Houve outros negrinhos bem sucedidos, mas que nunca escreveram tão bem quanto ele.

Uma vez que a avaliação passa a ser influenciada pela vida pessoal do escritor e suas dificuldades, a crítica objetiva se torna ilegítima, porque o crítico só pode analisar o texto em si, que é o aspecto intrínseco e explícito que tem para avaliar:

Best Seller Ao recusar a crítica de quem não seja “autor de best-seller” o garoto também recusa toda crítica (“muito menos tem o direito de criticar quem está começando”). Não temos apenas a enviesada valorização da vendagem em detrimento da qualidade (uma forma disfarçada do apelo à multidão, outra conhecida falácia), mas a ideia de que o crítico, em si, não tem o direito de criticar por não ser capaz de produzir uma obra semelhante à que critica.

Este é um pensamento desonesto também, porque o talento para enxergar um erro é diferente do talento para fazer o certo. Um leigo pode, perfeitamente, detectar que a estrutura de uma casa está comprometida ao perceber que ela estala e apresenta rachaduras. Uma pessoa que não sabe dirigir pode, perfeitamente, perceber que o causador do acidente foi o motorista que vinha pela contra-mão. E o crítico, que nunca escreveu nenhuma obra literária de mérito, pode, perfeitamente, discernir quais obras têm mérito ou não.

Além de desonesto, este é um argumento também ignorante, porque ele desconhece que a crítica literária, sendo um gênero textual (o ensaio), é também uma forma de literatura de não ficção. Então, se o crítico desenvolve o seu argumento com qualidade, ele está fazendo literatura legitimamente.

Resta saber se um ensaio crítico profundo e embasado seria sequer lido por estes jovens, ou se seria tido como “arrogante”, “caga-regra”, “motivado pela inveja” ou comprometido com o desejo de destruir uma pobre alma de cristal:

Cuidado ao criticar Veladamente o crítico recebe a notícia de que, ao criticar o trabalho de um jovem autor, ele pode ser o responsável pelo suicídio de uma dessas crianças de cristal que nunca foram criticadas, jamais foram repreendidas por seus atos e acreditam que a vida é uma grande estrada asfaltada ladeada de flores que segue direto até a realização de todos os seus sonhos. E que andam com uma navalha afiada prontas para cortarem os pulsos se alguém ousar dizer que elas não são perfeitas. Só que essas crianças não existem, nem mesmo o autor do post é assim. Vale como uma ameaça, porém, de que sempre se poderá iniciar um processo contra tal crítico pela prática de bullying contra o jovem que se matou porque disseram que sua trilogia escrita aos quatorze anos não será o novo “Senhor dos Anéis”.

Para os que são assim, eu gostaria de dizer a cada um:

“Matem-se! Salvem o mundo da sua irrelevância, de sua autopiedade e de sua ilusão! Matem-se ou cresçam! Matem-se ou aprendam a enfrentar estradas arriscadas, flores que têm espinhos. Matem-se na ilusão de que são perfeitos ou descubram que tem defeitos, e também que têm qualidades que ninguém lhes contou: como coragem, caráter, perspicácia e vontade de melhorar a cada dia.

Mas imaginar que alguém se imole metaforicamente, desistindo da carreira literária, é um pensamento facilmente detectado como “elitista”. O sistema educacional nos acostumou com a ideia de que ninguém deve ficar para trás:

A vida não é uma escola Às vezes as pessoas levam a sério demais a metáfora de que a vida é uma escola. Tão a sério que a metáfora começa a virar catacrese. Mas a língua não é espelho perfeito da realidade, mas uma tentativa bruta de reproduzi-la. A vida é diferente da escola. A vida não tem progressão continuada, não tem pedagogos, não tem recuperação. Na vida é possível ser reprovado, muitas vezes. A vida não tem didática para nos “ensinar” o que achamos que ela ensina e não costuma nos dar segundas chances.

Sim, é errado professores rasgarem cadernos. É errado escolas não terem pedagogos para diagnosticar disléxicos. É um tremendo erro chamar um aluno de burro. Mas o erro desses professores foi justamente ter tratado esses alunos como a vida nos trata a todos. Com injustiça e insensibilidade. Só que o modelo de escola que hoje se propaga é o oposto disso, é a escola tão tolerante que não valoriza as realizações. Uma escola que dá nota por presença só pode induzir o aluno a achar que gritar “presente” num meio literário já é motivo bastante para ser bem recebido. Só que o mundo não e assim: o mundo está cagando e andando para cada um de nós. O “mundo” abstratamente, soma das ideias e defeitos dos milhões de humanos que o compõem, não dá atenção a indivíduos, não colhe cuidadosamente os talentos para pôr num pedestal. Tratar as pessoas assim não as eleva, mas as relega.

Precisamos, urgentemente, de mais gente que critique, de mais gente que polemize. E menos gente de cristal, de porcelana, de vidro. Se os de vidro se quebrarem o mundo nada perderá. Não há falta de pessoas que desejam se tornar autoras. Há falta de pessoas capazes disso. Os que são capazes, eles não tem apenas o talento certo, mas a atitude certa. E a atitude certa não é a condescendência, mas a ambição. Infelizmente, a opinião corrente é a de qua humildade supera o intelecto, quando ambas têm valor e não necessariamente precisam vir juntas.

Por causa desta situação eu percebi que não devo e não vou mais debater literatura nas redes sociais. Continuarei a dar meus pitacos por aqui, ocasionalmente fazendo ainda mais inimigos, mas não vou mais discutir com quem ouve o galo cantar e não sabe onde, com gente que pode resolver se matar se eu não amar seu último poema. De fato há certa razão na crítica resumida dos prints acima: escritores não devem debater em comunidades literárias, tal como jogadores profissionais não devem disputar partidas em meio aos dente-de-leite.

E antes que me acusem de arrogância, sim, sou um escritor. Posso ter apenas um livro e algumas traduções avulsas publicadas. Posso ser apenas um blogueiro. Mas eu escrevo. Sou um escritor amador, mas sou um escritor. E mesmo que não fosse, o simples fato de me ver como um já legitima que eu escolha me abster daquilo que acho que não faz bem à minha imagem. Posso não ter um talento grande, mas pelo menos não me quebro com críticas.

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