Ocorreu-me ontem, ao ler mais uma sinopse de romance, o quanto nós ainda estamos presos ao passado de formas que não percebemos. Os índios do Xingu tem um conceito que expressa bem isso. Segundo narrou Orlando Villas-Boas, quando ele e outros sertanistas acompanhavam os índios em caminhadas pela floresta, se os brancos forçavam muito o ritmo, os índios pediam para fazer uma parada. Depois de ver isso ocorrer várias vezes, perguntaram-lhes por que e os índios disseram que os brancos queriam andar muito depressa, mas era preciso parar quando em vez, para dar tempo às suas almas para alcançarem os seus corpos. Sim, parece-me que o mundo evolui tão depressa que deixamos nossas almas perdidas lá atrás. Isso talvez explique porque, mesmo no mundo louco e tecnológico em que já vivemos ainda estejamos pensando segundo modelos mentais de um passado recente.
Um bom exemplo são os diários. Muitos autores ainda fazem seus personagens escrevê-los, mas nada é tão anacrônico. Quem em sã consciência ainda abre um caderno para escrever “querido diário” no alto de uma folha? Só crianças, mas elas ainda o fazem porque o conceito ainda está na televisão e na literatura infantil.
O diário surgiu com os alquimistas, que tomavam notas diárias de suas experiências para acompanhar o seu desenvolvimento. Os navegadores também tinham o seu tipo de diário, que costumava incluir as coordenadas geográficas em que cada entrada era escrita. Ambos tinham uma obsessão com a contagem do tempo, embora por motivos diferentes. O diário pessoal surge mais tarde, na Europa, por influência do diário de navegação. As famílias de marinheiros, ou os próprios marinheiros aposentados ou em folga, ou o hábito destes de registrarem em forma de diário suas vicissitudes. Porém, diferente dos outros, o diário pessoal tinha uma forma mais livre. Afinal, as coordenadas geográficas não mudam muito quando você está curtindo a aposentadoria sentado em uma cadeira de balanço.
Com o tempo o diário se tornou “coisa de menininha” ou de dona de casa entediada que, sem ter com quem conversar, enchia cadernos escrevendo “querido diário”. Foi essa a imagem de diário que mais se perpetuou. O diário de bordo praticamente já não tem uso, porque os navios são acompanhados em tempo real através de GPS e radiocomunicação. O diário científico ainda é usado, embora já não seja parecido com o que se fazia no passado, e hoje se chama “relatório”.
O diário pessoal é um anacronismo porque já não existem as razões pelas quais era escrito. As donas de casa entediadas quase já não existem, e os diários foram substituídos por blogs e redes sociais. Portanto, é extremamente improvável que seu personagem escreva um diário, a menos que ele seja um personagem de época, ou um personagem meio ridículo.
Por sua vez, o hábito de escrever cartas já desapareceu, e desapareceu tão rápido que mal o vimos desfazer-se no ar. Em 1997 a carta ainda era o principal meio de comunicação. Quando criei a revista literária “Trem Azul”, em parceria com o Emerson “Toquinho” Teixeira Cardoso, reunimos um fichário com os endereços de mais de 500 escritores do Brasil e do mundo. Quando voltei de minha inatividade literária, em 2005, subitamente aquilo não tinha mais nenhum valor.
As cartas perderam o sentido com a invenção do e-mail e a popularização de telefones celulares. Da segunda vez que fiz uma revista literária, toda a comunicação foi feita por correio eletrônico. Uma situação como a do filme “Central do Brasil”, em que pessoas analfabetas pagavam a uma outra para que escrevesse cartas para a família distante, nos parece mais alienígena do que uma civilização marciana. Aquele filme talvez não tenha ganhado o Oscar porque nos EUA a revolução do e-mail já acontecia, enquanto nós ainda estávamos presos no século XIX. Hoje um filme como aquele não seria feito, não só porque o assunto já não existe, mas porque o público de hoje já teria dificuldades para entender: o analfabetismo praticamente desapareceu e quase ninguém escreve cartas.
A ideia de esperar semanas pela resposta parece exasperante aos jovens de hoje, e eles tem razão: cartas eram uma merda para fins de comunicação, e sua única vantagem era a possibilidade de serem colecionadas e posteriormente publicadas. Uma das perdas do futuro será não termos mais a “correspondência” dos escritores editada. Será uma perda grande. E-mails e redes sociais são precários e provavelmente se perderão no buraco da memória. Se eu amanhã ou depois me tornar uma lenda da literatura, os filólogos e críticos do futuro não terão como desencavar minha correspondência com meus pares: ela não existirá, embora eu tenha sido muito atuante nas redes sociais (Orkut, Formspring, Facebook, Plus e VK.com).
O desaparecimento da carta foi tão grande que se você fizer seus personagens trocarem cartas os leitores jovens provavelmente entenderão o contexto mais ou menos como a iluminação de pergaminhos na Idade Média. Para os adolescentes de hoje, não há muita diferença entre uma carta e um pergaminho de feitiços. Em duas gerações, já não sentirão diferença entre um livro físico e um grimório. O livro, aliás, já está se tornando uma espécie de fetiche, o que denuncia sua decadência como mídia. As pessoas cheiram livros como se eles fossem entes queridos, querem tê-los em edições de luxo como se fossem tesouros. Antigamente os livros eram vistos de uma forma estritamente utilitária: ninguém valorizava mais uma obra por ter “capa dura” ou “papel pólen”. Muitos livros de qualidade só foram ganhar edições de luxo décadas após sua publicação original. Muitos autores famosos foram publicados inicialmente em revistas impressas em papel rústico (“pulp”) e de capa mole. Essa mudança já é reflexo do papel místico que está sendo atribuído ao livro, e o futuro nos reserva uma revisão radical do papel e da forma da leitura na sociedade.
Uma revolução comparável à do mapa rodoviário (e dos mapas em geral, mas o caso do mapa rodoviário é tangível). Antes da invenção do GPS as viagens de férias precisavam do infatigável “Guia 4Rodas”, com seu “Mapa Rodoviário do Brasil”, que representava as principais estradas do país através de linhas coloridas e códigos engraçados. Em caso de dúvida, parar na beira da estrada, estender o mapa sobre o capô e tentar descobrir para onde ir. Quase sempre a cena indefectível dos antigos filmes de viagem: o marido que teimava em confiar no mapa em vez de perguntar pelo caminho aos transeuntes acabava indo parar em algum fim de mundo assombrado. Ainda nos anos 1990 a revista “Piratas do Tietê” publicou uma tirinha sobre um entregador de pizza que foi parar no inferno tentando seguir um mapa rodoviário até Guaianases. Se suas histórias estão ambientadas no passado, seus personagens precisam passar por essa dificuldade.
Mas hoje em dia ninguém compraria o Guia 4Rodas, talvez ninguém mais saiba ler um mapa rodoviário. Eu mesmo já me esqueci como era. Estamos acostumados à ideia do Google Mapas (ou do iMaps, para você que prefere produtos da Apple) e dos GPS. O mapa não pode ser uma folha de papel dobrada, precisa ser algo dinâmico, que se pode consultar enquanto dirige. A ideia de parar na beira da estrada para ler um mapa nos parece tão absurda quanto esperar semanas pela resposta a uma carta de amor. Vivemos a velocidade, em todos os aspectos, e precisamos da instantaneidade, do macarrão ao amor de nossas vidas, tudo tem que vir em três minutos, e ser consumido igualmente rápido.